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Envolvimento familiar e relação com o saber

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 41-43)

O investimento escolar depende muito do capital cultural acumulado em períodos anteriores – tal como os hábitos culturais acima mencionados, também o capital escolar familiar é importante. Para a acumulação de capital cultural são agilizados outros tipos de recursos, nomeadamente o capital social. De facto, muitos autores salientam a importância deste capital como mecanismo que permite ganhar contacto com recursos social e moralmente valorizados, como seja o capital cultural nas suas variadas formas - incorporado, objetivado ou institucionalizado (Lee & Bowen, 2006; Nogueira & Nogueira, 2002; Roldão, 2012).

Desta feita, o capital social é um recurso assente numa rede durável de relações sociais e comunitárias de inter(re)conhecimento, que se perpetua no tempo, e que coloca o indivíduo que o possui num grau hierárquico de dependência face aos grupos com os quais mantém essa relação (Bourdieu, 1989 in Mendes & Seixas, 2003; Roldão, 2012). Além disso, comporta, segundo Coleman (1988 in Lee & Bowen, 2006), três componentes: 1) obrigações e expetativas de reciprocidade na relação, 2) normas e 3) controlo social.

Quando assume objetivos face a uma carreira escolar alargada e bem-sucedida, a família – mesmo desconhecendo as três componentes e o controlo que a oferta pressupõe - mobiliza uma rede comunitária de conhecimentos para almejar uma escolaridade de sucesso. Além disso, é provável que quanto maior for essa rede, maior será a probabilidade de o aluno fugir a trajetórias de exclusão escolar, a montante, e de exclusão social, a jusante. Tal como outros tipos de capitais, o capital social pode estar sujeito à reconversão num outro tipo de recurso (Nash, 1990) – e é com esta ideia em mente que os pais apostam nessa rede de relações durável, com maior ou menor grau de institucionalização, desejando vê-la convertida em ganhos escolares para os seus descendentes. Todavia, tal como já foi dito anteriormente, a possibilidade de reconversão dependerá sempre do campo onde as relações sociais se desenrolem, uma vez que um determinado capital “só em certas condições é convertível noutra espécie de capital” (Bourdieu, 1989 in Mendes & Seixas, 2003). Por mais paradoxal que possa parecer, o aluno socializado num ambiente desfavorecido não deixa de ser portador de capital social, pois este também decorre do seu ambiente social privado. Porém, é um “capital social negativo”, que o restringe de uma integração plena na sociedade (Capucha, 2005: 83). Desta forma, interessa fomentar a consciencialização sobre os mecanismos que tornam este tipo negativo de capital social tão ou mais determinante no (in)sucesso escolar do que o “capital social positivo”, adequado a uma participação plena na vida social e escolar.

Em contexto escolar, é sabido que os encarregados de educação de classes mais baixas, tal como Lahire (1995) sublinha no seu livro, têm menor probabilidade de se relacionar de maneira informal com os docentes da Escola. Ora, a falta de convivência informal é paralela ao desinvestimento formal na escolarização dos filhos. Este facto, longe de constituir um caso paradigmático de “omissão parental”, reflete apenas o peso distintivo que a participação em espaços públicos assume para a família de classe baixa, que não se coaduna com a participação da classe média/alta, grupo onde se incluem os docentes. Inclusivamente, existem famílias que se autoexcluem do ambiente escolar (Neves, 2011), confiando de forma inequívoca a educação dos filhos aos professores. Existe, de certa forma, uma separação entre o mundo público da Escola e o ambiente privado familiar, o que - como se tem advogado - cria no aluno um sentimento rotineiro de fragmentação identitária, através do desdobrar diário e constante que lhe é exigido entre a variante cultural familiar e a cultura dominante.

A relação que o aluno mantém com o saber demonstra que, não raras vezes, apesar de não revelar adequação em termos das competências exigidas no contexto escolar, este preserva uma relação com a escrita e com a linguagem que lhe parecem positivas e congruentes com o seu meio social e cultural (Derouet, 2002). Assim, fora do ambiente escolar, o aluno parece descobrir o verdadeiro sentido das palavras, da construção verbal e frásica – de que são exemplo os diários ou os manuscritos que revelam pensamentos, emoções e ideais próprios, incorporados através da sua experiência e exteriorizados através da escrita informal. A verdade é que as dificuldades escolares que alguns estudantes sentem ao longo do seu percurso escolar são, e muito, explicadas tendo por base uma parca apropriação dos saberes escolares, que se revelam demasiado instrumentalizados, em vez de baseados nos interesses e no gosto pela aprendizagem do aluno (Abrantes & Amândio, 2014; Seabra, 2009). A apropriação da cultura legítima difundida pela Escola mostra-se como um recurso não transversalmente distribuído nem adquirido pela sociedade e, em particular, pelos alunos, ajudando a explicar o acesso desigual aos vários privilégios sociais (Lahire, 2003, 2008). A legitimidade concedida à cultura escolar é construída tendo subjacente a ideia da veiculação de uma cultura que se apresenta, dissimuladamente, como neutra e não vinculada às classes mais favorecidas. Ora, este aspeto neutro abre espaço para que a Escola assuma a sua função, quer de reprodução, quer de legitimação das desigualdades sociais e dos privilégios sociais conferidos – estes últimos – a esse quadrante social mais favorecido (Mendes & Seixas, 2003; Nogueira & Nogueira, 2002). Deste modo, podem-se sinalizar dois tipos de relação com o saber: um baseado na aceção escolar - da legitimidade cultural - e outro difundido por via das experiências individuais de cada aluno. O primeiro tipo de relação é aceite, enquanto o segundo pode revelar-se insuficiente para o contexto escolar, já que requer disposições e um tipo de linguagem marcadamente distintos de um quotidiano familiar desfavorecido.

Diante do patenteado acima, a Escola apresenta-se com uma crise dupla: por um lado, a família desfavorecida vê a crise dos valores que levaram a instituição escolar a tornar-se inclusiva; por outro, a família privilegiada vê uma crise de legitimidade, percecionando um decréscimo valorativo do diploma (Dubet, 2003). A obrigatoriedade de aprender, embora interdependente da necessidade, nunca a deve suplantar, principalmente quando se verifica a imposição da primeira em relação a famílias que não encontram benefícios aparentes na sua relação com o sistema de ensino.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 41-43)