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O fardo familiar do Guilherme

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 97-101)

Nasceu numa freguesia do concelho da Covilhã e tem 24 anos. Concluiu o 12º ano através de um curso profissional na área da Informática. Neste momento encontra-se desempregado. Vive com o pai, reformado por invalidez, de 61 anos e com a mãe, auxiliar de enfermagem num lar, de 57. Ambos completaram o 9º ano. Tem um irmão de 34 anos, que já é casado e tem um filho. Completou também o 12º ano pela via normal.

A entrevista com o Guilherme decorreu serenamente, na esplanada de um café, numa manhã soalheira de Outono. Quando era mais novo, explica que os pais trabalhavam muitas horas, o que lhes deixava pouco tempo para acompanhar os estudos dos filhos. Seria a avó materna a dar o apoio que os seus parcos estudos possibilitavam. Aponta os problemas familiares ao longo do secundário como a causa principal do insucesso escolar. O pai era vendedor de café, mas teve de se reformar em 2010, derivado a problemas cardíacos. A mãe, antes lojista, viu decrescer o fluxo de rendimentos da loja e teve de a encerrar. Esteve um período de tempo no desemprego e, hoje em dia, é auxiliar numa instituição para idosos. A avó sofria de

alzheimer e acabou por falecer nesse período. “Foi um processo um bocado decadente” – é

nestes termos que começa a conversa.

Ao ter-se focado em demasia no vasto rol de problemas familiares, o Guilherme descurou a sua vertente escolar. Até ao 9º ano, o facto de estar atento nas aulas era suficiente para obter bom aproveitamento. A partir daí, sugado pelos episódios familiares, ao maior grau de dificuldade do secundário juntou-se a falta de motivação escolar. Nessa altura, o irmão casou-se e saiu de casa, perdendo o esteio “que tinha sempre ali ao lado”. A reprovação no 11º ano acaba por ser relativizada e justificada face a todas estas ocorrências na vida familiar, aglutinadas “na altura dos exames” desse ano letivo.

Os pais nunca acompanharam de perto os seus estudos e sentiu falta de um “puxãozinho de orelhas”, sobretudo nessa fase crucial. Ao longo da escolaridade do Guilherme, o apoio que teve era quase sempre da avó que, enquanto teve saúde e apesar de “analfabeta”, fazia o “típico papel de mãe”. Ela é que tomava as decisões básicas da vida académica do neto, pelo menos até ao 5º ano. Apesar das condições de saúde degradantes, lembra com saudade o facto de a avó sempre o ter apoiado para seguir os seus sonhos. Contudo, por vontade dos pais, no 10º ano ingressou no curso de Ciências e Tecnologias, não obstante a sua paixão pelas Artes: “andei ali a arrastar durante 4 ou 5 anos”. Desanimado com a ida para Ciências e com todos os desafios familiares que surgiram, no 10º ano ainda “se safou”, mas no 11º “esbarrou- se ao comprido”.

Ao contrário de si, o irmão não experienciou in loco a espiral negativa pela qual a família passou: “eu morava lá e vi tudo diariamente. Ele não”. Estava quase a casar e já vivia com a futura mulher. Além disso, não deixava que houvesse interferências entre a sua vida pessoal e a vida familiar. No desenrolar da conversa, diz sentir-se “muito injustiçado” e revoltado,

referindo que o irmão mais velho teve uma escolaridade bem mais tranquila que a dele: “quando eu cheguei à parte de precisar de ajuda, eu é que tive de ajudar os outros”.

Em termos de hábitos culturais, revela que o seu irmão o influenciou muito na vertente artística: “teve até uma banda (…) influenciou-me muito na parte das Artes”. Quanto ao gosto pela leitura, apesar de o pai “gostar de se informar”, não transmitiu esse hábito ao filho. Não sabe precisar se foi por culpa do pai, que não teve a capacidade de o influenciar, ou se foi culpa sua, por nunca se te interessado. Além da influência artística, o irmão foi quem o acompanhou mais nos estudos a partir do momento em que a avó deixou de ter essa capacidade – por volta do 7º ano. Daí em diante, assume que seguiu o modelo que tinha em casa: “como o meu irmão era um bocado desleixado e preguiçoso, não sei até que ponto ele me influenciou nisso”. No 12º ano, quando o Guilherme decidiu sair da escola e optar por fazer um curso profissional em Informática, o seu intuito era o de tirar um curso superior logo de seguida. Porém, o irmão aconselhou-o a estagiar primeiro, trabalhar, e só depois decidir o seu futuro.

Em casa, os seus pais interessavam-se mais pelas notas de Português e de Matemática do que pelos resultados obtidos nas disciplinas que mais lhe agradavam. Começou a sentir isso, antes de ter de escolher o curso no secundário: “fui muito obrigado a seguir aquilo que eu não gostava (…) nunca segui aquilo que eu gostava realmente”. A propósito da escolha da escola a frequentar a partir do 10º ano, salienta que foi encaminhado pelos pais para a Frei Heitor Pinto, apesar de todos os seus amigos do Ciclo do Tortosendo terem ido para a Campos Melo. Guarda “mágoa” e refere que a sua relação com os pais não é a melhor. Neste momento, alega que é o irmão quem mais o ajuda na procura de opções, embora revele que precisava que esse apoio tivesse surgido alguns anos antes e não agora: “agora tenho cabeça também”. Apesar de associar a reprovação no 11º ano a questões familiares, também admite uma quota- parte de culpa. De facto, toda a trajetória familiar colocava a escolaridade do Guilherme em segundo plano, mas a falta de comprometimento académico já estava presente no seu percurso escolar, segundo sugere o seu discurso. Até nas áreas que mais gostava, como Educação Visual, denotava falta de esforço. A partir do secundário, com disciplinas mais vocacionadas para o curso onde estava, alheio à sua vontade, as dificuldades aumentaram. Teve explicações a Matemática no 9º e no 11º ano, mas enfatiza a desresponsabilização dos pais nesse período: “pagaram-me as explicações (…) não chega (…) eu chegava a casa, se calhar, com um 5 a Matemática, era a mesma coisa que chegar com um 15. Era igual”.

No secundário, não tem a certeza se teve sorte ou azar em estar inserido em turmas onde, em média, o aproveitamento de todos os colegas era bom. Sente que os professores não se preocupavam “com as ovelhas negras”. Contudo, reconhece que o facto de o terem colocado em turmas heterogéneas pode ter sido um incentivo para ter um melhor desempenho, sobretudo após ter chumbado de ano.

Voltando atrás no tempo, confere importância à sua professora primária na aquisição de valores e condutas necessários para a sua integração intragrupal: “quando era garoto era muito envergonhado e muito calado”. Até em termos de aquisição de conhecimentos, conta que essa professora chegava a ir a casa dos alunos para dar fichas e exercícios. Porém, a referência à presença constante de “filhos de professores” nas turmas por onde passou, leva- o a considerar que o grau de expetativas dos docentes foi sempre mais elevado em relação a esses alunos do que propriamente em relação a si e aos seu colegas. De facto, teve na sua turma um colega que era filho de um professor. Refere que todos os docentes mantinham com esse aluno conversas mais informais, quer no início, quer no fim das aulas. Foi algo que marcou o Guilherme, apesar de referir que esse tratamento discriminatório dos professores nunca o prejudicou diretamente.

Apesar das parcas expetativas que fomentou nos professores do secundário, o orgulho próprio fazia com que recusasse apoio por parte deles: “sempre fui um bocado desenrascado dentro de mim e nunca gostei que ninguém influenciasse (…) já tinha pessoas a influenciar-me nas minhas decisões e mal”. Aqui, refere-se ao facto de os pais o terem persuadido a seguir Ciências e Tecnologias no 10º ano. Olhando para trás, reconhece que deveria ter tido outra postura nos momentos críticos a nível familiar. Não tem dúvidas em afirmar que poderia ter tido um percurso bem-sucedido, tal como os seus três melhores amigos: o Vasco, a Anabela e a Letícia, todos eles licenciados.

Foi na Frei Heitor Pinto que acabou por conhecê-los, fazendo todos parte da mesma turma. Apesar de querer seguir Artes, o Guilherme reconhece que precisava de um “choque de realidade” que lhe permitisse um ganho de autonomia que não possuía até então. Assim, em convergência que os pais – para eles, era imperativa a escolha do curso de Ciências -, acabou por optar pelo liceu. O lado positivo, conta, foram as amizades criadas nesse período: “foi onde conheci amigos para a vida”. De facto, nesse espaço de tempo focou-se na criação de amizades, algo que não havia feito anteriormente, pois as amizades emergiam todas da proximidade e da convivência obrigatória com os seus colegas de bairro e de escola. No secundário, estava dentro de “um meio maior”, num estabelecimento de ensino novo, no centro da cidade da Covilhã.

Enquanto na primária se foi superando em termos de aproveitamento, por conta da competição saudável que reinava no seio da turma, posteriormente foi mais “cada um por si”. Conta que perdeu contacto com a maioria dos colegas que fizeram o percurso com ele antes da entrada no secundário. Uns emigraram e outros já se formaram no ensino superior. Chegou à Frei Heitor Pinto como uma “folha em branco”. Talvez por esse motivo, segundo menciona, tenha conseguido manter até hoje a amizade com o Vasco, a Letícia e a Anabela. As duas raparigas tiveram um percurso similar. Ambas já concluíram o mestrado, sem grandes dificuldades no percurso. O Vasco, apesar dos obstáculos que teve ao longo de toda a vida, soube superar-se, estando prestes a terminar a licenciatura: “ele passou por muito, durante

muito mais tempo que eu (…) ia com uma bagagem para o secundário que eu não tinha.” Apesar do tempo escasso que têm para combinar saídas, diz que dá mais valor a estas amizades do que às do passado.

No aspeto comunicacional entre a Escola e os encarregados de educação notou um grande contraste na passagem do 9º para o 10º ano: “no secundário não havia a preocupação de chamar os encarregados”. Refere que faltava algumas vezes na Frei Heitor Pinto e, embora nunca tenha estado tapado por faltas, os professores sabiam quem ia e quem não ia às aulas. Havia colegas que faltavam as mesmas vezes que ele, mas “conseguiam ter notas boas”. Sempre que faltava, os seus pais nunca tinham conhecimento, pois a escola não mantinha contacto com a família nesse sentido. Sente que faltou esse diálogo para que pudesse ter mantido um foco e uma motivação maiores nos estudos. Anteriormente, no Ciclo, considerava-se um “menino exemplo”. Quer o pai, quer a mãe, julgando que o filho ia manter essa postura no secundário, permaneceram algo alheados do diálogo com a instituição escolar no período mais crítico do Guilherme a esse nível. Por esse motivo, sentiu falta da preocupação por parte dos seus pais em relação às suas vivências escolares.

A sua experiência no curso de Informática foi marcante. Apesar de ter sido “um bom exemplo para toda a gente”, refere que poucas pessoas ali estavam a tentar, realmente, tirar algo de positivo do curso, o que os levava a importunar constantemente o seu funcionamento. Chegou a fazer queixa dos formadores por negligência: “houve um ou outro que deixaram de dar formação naquele curso por causa disso”. Quanto aos “marginais” – é assim que se refere aos formandos que causavam distúrbios -, procurava não ter contacto com eles fora daquele contexto. Além da influência dos amigos no secundário, principalmente da Letícia – que lhe “deu nas orelhas” -, salienta que, durante a formação, um dos formadores incentivava-o constantemente a retomar a via normal de ensino.

Em suma, o Guilherme tem um pé na realidade laboral – de que gostou, após a experiência enriquecedora no estágio profissional – e outro no regresso aos estudos, dado o desejo de entrar na universidade. Revela que são os motivos financeiros que o fazem retrair na hora da decisão pela segunda via. Apesar de assumir que a sua entrada na formação tinha como finalidade a sua ida para o ensino superior, considera que “foi muito tempo desperdiçado”, estando sem motivação para abraçar de novo a carreira académica. Encontra-se num hiato em termos ocupacionais e a experienciar um período de forte indecisão.

Sente-se prejudicado pela espiral negativa pela qual a família passou ao longo do seu ensino secundário, embora reconheça a premência dos motivos dessa oclusão de apoio. Colocou de parte as ajudas pontuais que surgiam e hoje reconhece que foi um erro. O Guilherme sempre se habituou a ser autónomo, mas não estava preparado para ter de vivenciar sozinho o acumulado de desafios familiares naquela fase particular da sua vida: o desemprego súbito da mãe, os problemas de saúde do pai, a morte da “mulher mais importante da sua vida” e a saída de casa do irmão. Os pais nunca lhe faltaram com a componente material, mas as

exigências e as expetativas reduzidas por parte de pais e professores – “ir passando de ano” -, além da escassez de acompanhamento emocional, reduziram substancialmente o seu interesse escolar.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 97-101)