• Nenhum resultado encontrado

Estratégias pessoais: Estigma e manipulação

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 53-55)

Face ao grau de expetativas reduzidas que os professores mantêm sobre os alunos menos capazes de corresponder aos conteúdos escolares, o estigma tende a abater-se sobre estes, marcando-lhes, profunda e perenemente, a identidade. Essa estigmatização “interpreta um comportamento não conforme, ligado a uma situação específica como sendo uma caraterística negativa estável da pessoa” (Walgrave, 2000: 82). O estigma é, assim, assumido como um atributo que, dado o estereótipo inerente, assume uma relação entre quem o apresenta – de forma desacreditada ou desacreditável – e o “normal”, através de um processo no qual cada um dos indivíduos assume e interpreta ambos os papéis – normal ou estigmatizado – em alguma fase da sua vida (Goffman, 1988).

No que concerne ao aluno que apresenta caraterísticas não condizentes, como já se viu, à expetativa que o professor tem de “cliente ideal”, para remediar a situação que o estigmatiza – que emerge da desadequação face à Escola -, tende a suportar-se de “técnicas de neutralização” (Walgrave, 2000). Assim, a convivência com o grupo de pares, mesmo que enveredando por comportamentos transgressores à rigidez das normas, traz a este aluno gratificações pessoais que lhe devolvem, em certa medida, a autoestima que lhe fora destruída dentro da sala de aula, por via dos maus resultados escolares. Porém, isto conduz a uma questão paradoxal que surge, sobretudo, quando se observam turmas mais ou menos homogéneas, onde se destaca um aluno pelas suas capacidades cognitivas e pelos resultados positivos apresentados. Não poderá ser este aluno vítima de estigmatização por parte dos alunos “normais” daquela turma, cujas notas medianas e baixas tendem a tornar normal o insucesso e a assumir o sucesso como anómalo? Não tenderá o bom aluno a “baixar a guarda”, no que diz respeito ao investimento escolar, para se aproximar dos seus colegas de turma a esse nível? A liderança assume aqui um papel importante, pois, dependendo da forma como a

turma olha para o membro que apresenta melhores resultados, assim os membros tenderão a agir – quer motivando-se para almejar melhores resultados, quer assumindo-o como o indivíduo díspar, a ser evitado nas interações ou até humilhado. Não obstante, é diferente o julgamento geral do bom aluno por parte de quem não influi no seu quotidiano social ou a apreciação feita em relação ao bom aluno quando é conhecido o contexto, por vezes contraditório, da sala de aula. Por outras palavras, o reconhecimento cognitivo que existe do “bom aluno”, faz presumir que este goza de um estatuto positivo na turma e na comunidade escolar. Porém, procedendo à análise dos vínculos sociais que este cria no seio escolar, subentende-se que nem tudo é um “mar de rosas” e que o seu reconhecimento social não lhe traz grandes vantagens ou gratificações em termos práticos no quotidiano. O ato de perceção é dissonante do ato de comunicação e interação (Goffman, 1988) e esta é uma das ambivalências com que o aluno, quer tenha bons, quer tenha maus resultados, tem de lidar na sua rotina escolar.

Assim, além de se destacar a vulnerabilidade a que está sujeito o aluno portador de um

habitus familiar divergente do escolar, é importante discutir também os mecanismos e as

estratégias que os próprios agilizam para lidar com as expetativas a que estão constantemente submetidos (Room, 2000). Essa capacidade de manipulação do meio envolvente é um indicador da maneira como, quer oportunidades, quer vulnerabilidades – escadas ou serpentes, na linguagem do autor inglês – ativam ou protegem, respetivamente, o aluno perante as adversidades e novidades presentes no universo escolar. Como demonstra Lahire (1995) num dos seus exemplos, além da capacidade de neutralizar as fracas expetativas face ao hipotético ingresso na universidade, o aluno pode assumir um papel de total compromisso, mesmo contra todas as expetativas geradas por si e por quem interage diariamente com ele. Como se pode observar, o “compromisso” e o “afastamento” assumidos em relação à Escola têm, por vezes, uma linha muito ténue a separá-los e os alunos, através das suas expetativas académicas e dos critérios que usam na formação do grupo de pares, tendem a manipular, quer a sua trajetória, quer a dos próprios colegas (Van Zanten, 2005). O aluno estigmatizado assume uma espécie de “carreira moral” (Goffman, 1988) dentro do ambiente escolar. O mesmo é dizer que, por um lado, este incorpora e apreende as expetativas que os outros têm de si – aprendendo a agir em consonância - e, por outro, ganha consciência do processo ambivalente que tem pela frente – ora de aceitação e confrontação, ora de ocultação e manipulação -, onde a própria família assume um papel de inequívoca importância. É interessante fazer um paralelismo com os quatro modelos diferenciados de carreiras morais do estigmatizado, apresentados por Goffman. Assim, salienta-se: 1) uma incapacidade congénita do aluno, sendo socializado dentro de um quadro de insuficiências cognitivas; 2) o facto de a família ou o grupo de pares amenizarem o estigma, protegendo-o dentro do ambiente familiar ou comunitário, onde encontra gratificações que a cultura dominante escolar não oferece; 3) o aluno que descobre no decorrer do seu percurso académico que não se encontra dentro dos trâmites exigidos pela Escola no que à habilidade

de aprendizagem e familiaridade com os conteúdos escolares diz respeito e 4) a necessidade de aprender a cultura escolar, mesmo tendo nascido numa comunidade que não destaca sobeja importância às questões educativas dos seus membros.

São, de facto, diversas as maneiras que o aluno – cuja origem familiar, a montante, e o grau de expetativas diminuto em relação ao seu rendimento escolar, a jusante, o precipitaram para uma trajetória escolar negativa – tem para manipular a sua trajetória escolar. A este respeito, Pajares (2005) fala na “síndrome do impostor”, para evidenciar como o aluno internaliza de tal maneira as más expetativas, que se torna incapaz de reconhecer mérito próprio nos seus resultados positivos. É exemplo disso, o mau aluno que, devido a um esforço inconsciente, conseguiu ter uma nota positiva no teste – algo impensável para ele e para aqueles que o rotulam negativamente. Este aluno inclina-se a atribuir esse resultado a forças externas (Fachada, 2003) ou apenas à sorte. Com isto, evita a criação de novas expetativas – de um aluno em recuperação -, quando o próprio já internalizou e tornou perene a sua – pelos vistos apenas aparente – incapacidade escolar. Assim, abriga-se de novo rótulo – o de “aluno em recuperação” -, permanecendo próximo da ideia enraizada que tem de si mesmo – também construída pelos outros -, onde pode voltar a ser o aluno ao qual já não se aponta o dedo, por se assumir a sua debilidade escolar como um dado adquirido, apesar de atribuído. Tal como Pajares (2005), Goffman (1988) cunhou a situação em que o mau aluno prefere não se afastar muito do estereótipo inicial criado sobre si, a fim de evitar explicações adicionais que o poderiam descredibilizar ainda mais, com o nome de “síndrome de Cinderela”.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 53-55)