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Entre escadas e serpentes

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 57-59)

Tem-se salientado que, quer o aluno apresente bons resultados, quer apresente resultados negativos, em algum momento do seu percurso académico passará por períodos de sentimento ambivalente em termos do significado que atribui à sua trajetória. O bom aluno, numa turma homogénea em termos de maus resultados, poderá, em determinado momento, sentir-se um “peixe fora de água” e, inclusive, ser vítima de coação por parte dos colegas que não apresentam apetência para uma trajetória escolar de sucesso. Por outro lado, o aluno que contesta a legitimidade e os benefícios escolares pode, em certas ocasiões, martirizar-se pelo seu fraco desempenho escolar, ao articular o seu insucesso com outros exemplos dentro do seu grupo de pares, que, tal como ele, se distanciaram desde cedo dos propósitos escolares. Não será descabido que, em ambos os casos, a dúvida que assola o aluno o possa precipitar para situações de contratrajetória escolar. A filiação grupal é importante – como foi visto mais acima – na definição do aluno em termos identitários, pois é possível “que quanto mais o indivíduo se alie aos normais, mais se considere em termos não estigmáticos” (Goffman, 1988: 118), o que explica, principalmente em turmas homogéneas, o afrouxamento do bom aluno (na turma fraca) em termos de resultados e crie interrogações no mau aluno (na turma boa), acerca do rumo nefasto do seu percurso escolar.

Em primeiro lugar, convém referir que esta ambiguidade emerge através de forças sociais e relacionais que modelam as identidades e influem nas trajetórias escolares do aluno. Em segundo, estas trajetórias não são estanques nem irreversíveis, existindo, portanto, a possibilidade do aluno – em consonância com a sua família, comunidade, grupo de pares e Escola – modelar a sua perspetiva escolar ao longo dos anos, num caráter dinâmico. Assim, falando da trajetória escolar (Walgrave, 2000), que age como a força motriz do (in)sucesso social e profissional futuros, o estudante terá de lidar, em primeira instância, com a capacidade ou a incapacidade da família em lhe oferecer os suportes e os ajustes necessários para a adequação aos trâmites escolares, pelos recursos que tem à sua disposição - quer culturais, quer económicos. De seguida, a própria comunidade onde o aluno está inserido pode incitar ou coibir – em articulação com a esfera familiar - o seu investimento escolar. Posteriormente, face à Escola, o aluno verá reproduzido o seu habitus, podendo encontrar continuação ou diferença no que que à variante cultural familiar diz respeito. Resumindo, na instituição escolar o aluno vê confirmados ou contrariados os referenciais sociais e culturais que traz, quer da família, quer da comunidade – as instâncias de socialização anteriores. Ora em termos curriculares, ora na influência da formação de novos grupos de pares, a instituição escolar poderá facilitar e orientar as relações sociais, por um lado, e as oportunidades de

ascensão académica, por outro. Desta forma, funcionará de forma privilegiada “como a instituição da socialização secundária, mas também como a instituição da discriminação social primária” (2000: 93).

A verdade é que este caráter dinâmico das trajetórias não medeia apenas a mudança do sentido da direção – do positivo para o negativo ou vice-versa -, mas também a acentuação da trajetória inicial. É com esta ideia em mente que Room e Britton (2006) ressalvam que aqueles que se encontram numa espiral negativa terão tendência a experimentar, futuramente, desvantagens que desconhecem no imediato. De facto, a capacidade de negociação das classes inferiores na Escola é enfraquecida por terem perdido “batalhas” em instituições sociais no passado. Esse fardo que carregam na Escola transforma-se num fardo que carregam da Escola para outra “arena” – o ensino superior (os que lá chegam) e o mercado de trabalho. O aluno inserido numa família cuja posse de capitais passíveis de transformação em privilégios escolares é insipiente, poderá experienciar um círculo vicioso de desvantagens que o sistema de ensino poderá mitigar ou perpetuar, dependendo do modo com que trate as desigualdades sociais e da forma como as desigualdades escolares estão, ou não, subjugadas às primeiras.

Enquanto umas famílias concebem o sistema de ensino como um passaporte para postos de trabalho bem remunerados e bem posicionados hierarquicamente no que concerne ao prestígio social (Quaresma, Abrantes & Lopes, 2012), outras olham-no de forma dúbia, misturando sentimentos, quer de esperança, quer de resignação, em relação à ligação que o aluno mantém com o ensino (Lahire, 1995). No primeiro caso, a Escola torna funcionais as escadas, ou seja, as oportunidades de que a família dispõe para o investimento escolar, havendo congruência na trajetória escolar. No segundo caso, os recursos à disposição da família tornam o investimento mais arriscado, estando este dependente, sobretudo, da vontade pessoal do aluno em assumir a Escola como um meio de mobilidade social que é inaudito para aquela família, em particular.

Deste modo, é o próprio desejo de ascender, quer social, quer culturalmente, que pressupõe o investimento familiar na escolaridade do seu descendente. Uma “necessidade que se faz virtude” (Abrantes & Amândio, 2014; Mendes & Seixas, 2003; Seabra, 2009), onde as serpentes que aparecem no percurso de vida familiar, ao invés de a precipitarem para uma espiral negativa de vulnerabilidades múltiplas, são maniatadas, quer por oportunidades de mobilidade ascendente momentâneas, por um lado, quer, por outro, por via de amortecedores que emergem da comunidade: através de um indivíduo que possui habilitações unívocas no seio familiar, pelo acompanhamento próximo da trajetória escolar por parte de um docente, entre outras causas. Não obstante os fatores relacionais anteriormente mencionados, a própria Escola revela-se um espaço importante na fomentação de contratrajetórias, na medida em que opera sobre duas dimensões que se imiscuem no aspeto relacional: é um espaço de socialização, por um lado, e de sociabilidades, por outro. A

sociabilidade, mais do que pressupor a rigidez da transmissão de valores e imposição de normas institucionais, exalta uma “forma lúdica de socialização” que se dá entre iguais, naquele espaço (Simmel, 1978: 169 in Neves, 2011: 576). Por esta via, o aparelho escolar não subtrai do estudante o seu aspeto identitário, facilitando, na linguagem de Room (2000), o acesso às escadas (oportunidades) e deixando do lado de fora dos portões as serpentes (vulnerabilidades sociais) que tantas vezes impedem a solidificação das primeiras no contexto escolar, rumo a um percurso escolar que culmine no acesso a patamares mais elevados em termos académicos.

No documento O (in)sucesso (re)escrito a cada momento (páginas 57-59)