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1 MODERNIDADE, CONTEMPORANEIDADE E CAMPOS SOCIAIS

1.4 TEORIA DOS CAMPOS SOCIAIS: RELAÇÕES DE FORÇA E DE PODER

1.4.2 Capital e Habitus: a espinha dorsal da teoria de Bourdieu

Para favorecer a compreensão do mundo social, a Teoria dos Campos Sociais ampara- se também nos conceitos de habitus e de capital. Ao lado de poder simbólico (visto mais adiante), ambos os conceitos constituem-se a espinha dorsal desta teoria. Na obra de Bourdieu, o conceito de capital discute a quantidade de acúmulo de forças dos agentes em suas posições no campo, distinguindo quatro principais tipos de capital: o social, o cultural, o econômico e o simbólico. É neste último que se inclui o capital científico e o político, dentre outros.

Portanto, este trabalho detém-se ao capital simbólico, o qual seria aquele que depende do reconhecimento fornecido pelos próprios pares para legitimar-se. Isso ocorre rotineiramente nas comissões do Congresso Nacional quando os parlamentares apresentam seus projetos, requerimentos, ideias e críticas. Todos querem adesão às suas proposições e, para tanto, fazem o seu ‘espetáculo’, adotam diversos recursos – especialmente recursos midiáticos - para tentar corroborar a importância do assunto abordado por eles e garantir legitimidade às suas ações.

Segundo a teoria de Bourdieu (2006), a legitimidade pode afirmar-se formal ou informalmente e é considerada o critério fundamental de um campo social, incidindo sobre todo o processo de institucionalização dos valores que lhe são próprios, desde a sua criação e gestão até à inculcação e sanção. “Por valor devemos aqui entender quaisquer objetivos para a obtenção dos quais os indivíduos e os grupos estão dispostos a renunciar a algo” (RODRIGUES, 1990, p. 145)

A obtenção de reconhecimento, muitas vezes, ocorre através da visibilidade (adquirida especialmente no campo midiático), considerada por Rodrigues (1990, p. 145) como “a característica principal do corpo social” . Para este autor, a visibilidade seria maior ou menor conforme a formalidade da organização do campo, ou seja, quanto mais formal, maior a visibilidade. As formas de visibilidade de um corpo social podem se manifestar materialmente

(fardas, emblemas, máscaras, etc.) ou implicitamente – as quais predominam nos campos modernos.

Mesmo as instituições informais [...] possuem o seu próprio corpo social e asseguram a sua visibilidade através, nomeadamente, de modalizações dos discursos, dos gestos e dos comportamentos. Estas modalizações marcam distintivamente os detentores da legitimidade institucional nos mais diversos domínios da vida coletiva. (RODRIGUES, 1990, p. 146)

Rodrigues (1990) sugere que através da comparação das modalizações dos discursos e dos comportamentos dos atores e agentes sociais seja possível determinar o seu pertencimento a um determinado corpo social e o lugar relativo que ocupam na sua ordem hierárquica – mesmo que este lugar e este pertencimento não sejam claramente manifestados. Este catedrático da Universidade Nova de Lisboa acrescenta que um campo social constitui uma instituição social, uma esfera de legitimidade e define esferas que impõem com autoridade indiscutível atos de linguagem, discursos e práticas conformes, dentro de um domínio específico de competência – e de acordo com o capital simbólico dos agentes.

Em sua leitura sobre a obra de Bourdieu, Afonso (2004) lembra que as relações no campo, por ser este um espaço de conflitos, estão sempre em movimento. Dentro de um mesmo campo, os capitais podem ser convertidos entre si, ou seja, um agente pode usar um tipo de capital para aumentar o outro – pode-se citar como exemplo o caso de um agente que usa o seu capital econômico para alcançar determinada posição social.

Bourdieu emprestou (também) do marxismo a noção de capital como relação social e a idéia17 de que a posse do capital econômico confere, aos que o possuem, poder sobre os desprovidos. Mas ele estende essa noção a outras formas de riqueza, criando conceitos como o de capital cultural, que designa uma relação privilegiada com a cultura erudita e a cultura escolar; de capital social, designando a rede de relações sociais que constitui uma das riquezas essenciais dos dominantes; e de capital

simbólico, formado pelo conjunto de signos e símbolos que permitem situar os agentes no espaço social. (LOYOLA, 2002, p. 66 apud AFONSO, 2004)

Tomando novamente o campo científico como exemplo, Bourdieu (2004) explica que o capital científico é uma espécie particular de capital simbólico, que consiste no reconhecimento (ou no crédito) de uma competência, dado por seus pares-concorrentes no interior deste campo. Esse capital “proporciona autoridade e contribui para definir não somente as regras do jogo, mas também suas regularidades, as leis segundo as quais vão se

17 Apesar da retirada do acento agudo na grafia da palavra ‘ideia’ após a Reforma Ortográfica que unificou o registro escrito nos oito países cujo idioma é o português (Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste), optamos por manter a fidelidade na redação de todos os textos reproduzidos nesta pesquisa, mantendo a palavra como era escrita na ocasião de sua publicação.

distribuir os lucros nesse jogo” (BOURDIEU, 2004, p. 27). São essas leis que fazem que seja ou não importante abordar determinado tema.

Já o conceito de habitus é compreendido por Bourdieu como o conjunto das disposições inconscientes que estariam presentes em diferentes sujeitos, levando-se em conta – o que é decisivo – que tais disposições seriam o resultado da interiorização de complexas estruturas objetivas presentes numa sociedade.

O habitus, sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores, é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para esse fim. (BOURDIEU, 1983, p. 94 apud AFONSO, 2004) 18

Para Rodrigues (1999), é a experiência que produz o que Bourdieu chama de habitus: “sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas para funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objectivamente adaptadas à sua finalidade” (BOURDIEU, 1980, p. 88 apud RODRIGUES, 1999, p. 3)19.

Martins (2004), por sua vez, explica que as condições sociais distintas produzem nos sujeitos disposições distintas e, consequentemente, habitus de classe: grupos identificáveis de subjetividades que, partilhando certas características em comum, se articulam por esta via indireta com as diferenciadas posições objetivas das classes sociais. Seria a percepção de mundo, ou seja, como diz o próprio Bourdieu (2006), habitus são as estruturas incorporadas de percepção, ação e comportamento que regem as ações cotidianas.

Loyola (2002 apud AFONSO, 2004) explica que a constante exposição às condições sociais definidas imprime nos indivíduos um conjunto de disposições permanentes e transferíveis, que são a interiorização da realidade externa, das pressões do meio social. Esta autora traduz assim o conceito de habitus:

O habitus constitui um sistema de esquemas de percepção, de apreciação e de ação, quer dizer, um conjunto de conhecimentos práticos adquiridos ao longo do tempo que nos permitem perceber e agir e evoluir com naturalidade num universo social dado. Constitui uma espécie de segunda natureza inconsciente, [...] Enquanto coletivo individualizado pela incorporação do social, ou indivíduo biológico coletivizado pela socialização, o habitus não é uma invariante antropológica, mas uma matriz geradora, historicamente constituída, institucionalmente enraizada e socialmente variável. O

habitus é um operador de racionalidade, mas de uma racionalidade prática, inerente a um sistema histórico de relações sociais; assim, transcende o indivíduo. O habitus é

18 A obra de Pierre Bourdieu citada aqui por Afonso é Questões de sociologia, da editora Marco Zero (RJ). 19 Já Rodrigues adota, dentre outras obras de Bourdieu, o livro Le Sens Pratique, da parisiense editora Minuit.

criador, inventivo, mas nos limites de suas estruturas. (LOYOLA, 2002, p. 68-89 apud AFONSO, 2004)

Habitus, portanto, estaria relacionado à capacidade de uma determinada estrutura social ser incorporada pelos agentes por meio de disposições para sentir, pensar e agir. Bourdieu localiza no conceito de habitus o primado da razão prática, uma disposição incorporada, quase postural. “O lado ativo do conhecimento prático que a tradição materialista, sobretudo com a teoria do reflexo, tinha abandonado” (BOURDIEU, 2006, p. 61). Assim como o habitus religioso, artístico ou científico, o habitus político exige uma preparação especial, isto porque “nada é menos natural do que o modo de pensamento e de ação do que é exigido pela participação no campo político” (BOURDIEU, 2006, p. 169). Para este teórico, o mercado da política é um dos menos livres que existem e sobre o habitus político, acrescenta:

É, em primeiro lugar, toda a aprendizagem necessária para adquirir o corpus de saberes específicos [...] ou das capacidades mais gerais tais como o domínio de uma certa linguagem e de uma certa retórica política, a do tribuno, indispensável nas relações com os profissionais, ou a do debater, necessária nas relações entre os profissionais. Mas é também e sobretudo esta espécie de iniciação, com as suas provas e os seus ritos de passagem, que tendem a inculcar o domínio prático da lógica imanente do campo político e a impor uma submissão de fato aos valores, às hierarquias e às censuras inerentes a este campo. (BOURDIEU, 2006, p. 169-170) O conceito de habitus leva a identificar quais os mecanismos que influenciam na forma de representar o mundo. Os campos constroem representações da realidade feitas para a sociedade, a qual entende que os agentes do campo têm propriedade e autoridade sobre o tema abordado que gera tais representações.

Aquilo que se defronta no campo são construções sociais concorrentes,

representações [...], mas representações realistas que se pretendem fundadas numa

‘realidade’ dotada de todos os meios de impor seu veredito mediante o arsenal de métodos, instrumentos e técnicas de experimentação coletivamente acumulados e coletivamente empregados, sob a imposição das disciplinas e das censuras do campo e também pela virtude invisível da orquestração dos habitus. (BOURDIEU, 2004, p. 33-34)

Por isso, como já foi dito anteriormente, é importante verificar como se dão as disputas em cada campo, a fim de identificar quais as representações geradas por cada um. Bourdieu (2004) explica, ainda, que o campo político exerce um efeito de censura porque limita o universo do discurso político e, consequentemente, o universo daquilo que é ou não pensável e/ou dizível politicamente – isso aconteceu com o presidente Lula no início de seu primeiro mandato no Brasil, quando foi amplamente criticado pela mídia devido aos seus discursos improvisados.

A fronteira entre tais universos, segundo a teoria de Bourdieu, estaria na relação entre os interesses que exprime a classe política e a capacidade de expressão de seus membros – assegurada, na maioria das vezes, pela posição que estes agentes políticos ocupam nas relações no campo. Como bem observa Afonso (2004): pelas concorrências que ocorrem dentro de um campo social, em um dado momento, formam-se novos habitus sociais - identificados e incorporados pelos seus agentes, delineando novas representações na estrutura social.