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1 MODERNIDADE, CONTEMPORANEIDADE E CAMPOS SOCIAIS

1.1 SOCIEDADE MODERNA: A RACIONALIDADE CONDUZINDO O PROCESSO SOCIAL

Embora haja divergências quanto a sua temporalidade, a maioria dos historiadores concorda que a modernidade tenha surgido das grandes revoluções (SZTOMPKA, 1998), ou seja, seria o resultado de um longo processo de revoluções (comercial, científica, cultural, política, industrial, dentre outras). É consenso também que a mesma compreenda, especialmente, a Revolução Francesa, do século XVIII, com seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, como também as revoluções socialistas dos séculos XIX e XX.

Com a Revolução Francesa, a referência da monarquia começa a perder importância no mundo, que se torna cada vez mais urbano, econômico e gerido por outras formas de relação. A queda das ordens antigas é marcada por processos decisivos na história humana: a morte da divindade e o fim do domínio aristocrático. Silva (1999) destaca que:

Após as supostas trevas que teriam obscurecido o pensamento humano na Idade Média, teria nascido um mundo novo com a pretensão de ser sempre novo, sempre moderno, iluminado pelas luzes inequívocas da razão e amparado na crença da liberdade incondicional do ser humano para reger seu destino. (SILVA, 1999)

Assim, o embrião da sociedade moderna surge a partir de 1450, com a multiplicação das companhias do comércio e com o deslocamento do eixo econômico das cidades italianas para o Atlântico. Esse deslocamento conduz ao descobrimento das Américas e, consequentemente da Amazônia. Nessas grandes expedições, a burguesia mercantil se alia à realeza – da mesma forma que a nobreza se apegou às Cruzadas, mais especificamente no período de 1086-1244, para tentar manter-se rica e poderosa. As mudanças econômicas advindas da Era Moderna trazem a Revolução Comercial e, com esta, os sistemas bancário e monetário, além da acumulação capitalista.

Na Europa, o poder absolutista dos reis se consolida na Inglaterra e na França, países adversários. Mas a economia política defendia o estatismo, os territórios nacionais e seus mercados. Era o poder centralizado comandando nações e estados nacionais; o nacionalismo econômico baseando-se no expansionismo colonialista - o mercantilismo da época. No campo religioso, a reforma protestante luterana começa a enfraquecer a hegemonia católica, valorizando o trabalho e favorecendo a disseminação do capitalismo.

Por causa dessas transformações, pode-se dizer que a sociedade moderna nasce como uma sociedade racional, substituindo os dogmas religiosos e as profissões de fé pela razão e

pela ciência. É onde o individuo passa a ter direitos de cidadania e um sistema institucional legal para protegê-lo (HERCULANO, 2006). É onde nasce, realmente, o indivíduo.

Ana Silva (1999) diz que a perspectiva de independência que surge na Modernidade tem, entre seus fundamentos, o entendimento do indivíduo como um ser moral, independente, autônomo. A autora ressalta que esse entendimento vai se constituir, concretamente, apenas entre os séculos XVIII e XIX, e passa a ser interiorizado no século XX. A modernidade é o momento de culminância de um processo em que não só se encontra a separação entre ser humano e natureza, como também a separação, ainda que formal, entre todos os seres humanos que se tornam, desde então, indivíduos (SILVA, 1999).

O indivíduo passa a ter direitos e também expectativas, inclusive de posição econômica e social. Ao falar sobre limites e possibilidades de cidadania, em palestra proferida durante o Fórum Social Mundial, em 2002, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, o português Boaventura de Sousa Santos faz uma comparação simples e esclarecedora sobre esse novo cenário: “Na sociedade antiga, quem nascia pobre, morria pobre; quem nascia analfabeto, morria analfabeto. Na sociedade moderna, tornou-se possível que quem nasce pobre, morra rico, e quem nasce analfabeto possa morrer letrado, ou até doutor”.9

Essa possibilidade expressa o novo, o inusitado - outra marca da modernidade, compreendida como uma invenção do Ocidente. Para Costa (2001), a palavra moderno expressa um modo de ser que se distancia do passado e faz do presente uma constante busca do novo, num movimento infinito em direção ao futuro que seria sempre melhor do que o passado. É a perspectiva do novo como algo perfeito. A autora ressalta que, contraditoriamente, o mito do progresso estaria nascendo no berço da racionalidade ocidental, constituindo-se, também, uma das características do homem moderno: a obsessão pela novidade.

Mudança, transformação, progresso, novidade, cisão, racionalidade. Palavras que podem expressar o sentido de modernidade, considerada o resultado de um conjunto de transformações institucionais fundamentais, cujas principais linhas são definidas por Thompson (1998) em três tipos de mudanças: econômicas (com a passagem do feudalismo europeu para o sistema capitalista de produção e de intercâmbio), políticas (sistema

9 Texto da palestra proferida por Boaventura Souza dos Santos no painel Quais os limites e possibilidades da cidadania planetária?, no Fórum Social Mundial 2002. Ver demais informações nas Referências.

centralizado de administração e tributação através dos estados-nações), e concentração do poder militar por esses estados e monopólio do uso legítimo da força.

As análises feitas sobre a modernidade são muitas, sempre realçando suas virtudes e mazelas, como os trabalhos do francês Alain Touraine (Crítica da Modernidade), do sociólogo inglês Anthony Giddens (As Consequências da Modernidade), dentre outros pensadores. Touraine (1998) identifica a modernidade com a “difusão dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa”, caracterizando-se pelo “desenvolvimento produzido pelo progresso técnico” e definida como a tentativa de libertar o homem de todo pensamento dualista (Deus, alma, lei divina).

Giddens (1991), por sua vez, acredita que a modernidade refere-se aos modos de vida e organização social que emergiram na Europa a partir do século XVIII e adquiriram influência mundial. Devido à pressão do tempo, intensidade de trabalho e às novas tecnologias, este sociólogo considera que estejamos no estágio mais radical da modernidade, vista como um modo de vida totalmente diferente dos anteriores. Giddens (1991) acredita que a modernidade seja marcada pela descontinuidade da ordem tradicional e não necessariamente por uma ruptura, o que provoca mudanças estruturais na ordem social. Tal mudança é rápida, exige reflexibilidade e surge no campo da ação política.

A sociedade moderna é uma sociedade que se torna complexa, cujo funcionamento é regido pela burocracia racional e cuja característica, segundo o sociólogo Max Weber (2007), é acreditar-se racional. Para muitos pensadores, o advento da sociedade moderna seria a transformação de um mundo social mais simples para outro mais complexo e diversificado. Weber fala da mudança de uma sociedade tradicional para outra burocrática, de uma sociedade marcada pela cisão das esferas de atividade que antes eram integradas. Ou seja, na divisão social do trabalho, o econômico, o religioso, o político e o científico são esferas separadas, sendo que a esfera econômica assume uma posição de hegemonia (HERCULANO, 2006).

Em sua pesquisa referente às teorias da sociedade moderna, Herculano (2006) enfoca os grandes clássicos destacando o olhar de cada: para Durkeim, por exemplo, o predomínio das funções econômicas provocava a ausência de uma moral coletiva; já Karl Marx dizia que o trabalhador, oprimido pela burguesia, precisava libertar-se da lógica do capital através da luta de classes, pois a alienação de um homem tido como livre submete-o a novas formas de exploração: o modo de produção feudal foi substituído pelo modo de produção capitalista, mas o homem continuava explorado. Weber, por sua vez, ressalta que o capitalismo racional

cede lugar a uma luta de todos contra todos. No entanto, ambos viam aspectos positivos e inovadores na sociedade moderna.

Para Durkeim, esta sociedade torna-se mais livre e mais desenvolvida com a criação do indivíduo e do Estado; a sociedade segmentar passa agora a ser organizada. Para Marx, a capacidade inventiva e inovadora da burguesia revoluciona os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção e as sociais; da separação entre o político e o privado vem o estado moderno – que caracteriza a sociedade moderna. Já Weber aponta como aspecto inovador o surgimento de uma racionalidade burocrática potencialmente essencial para o funcionamento da democracia igualitária. A própria democracia de massa acaba tornando-se um sintoma da irracionalidade e a burocracia transforma-se, em seu seio, em um arremedo (HERCULANO, 2006).

A Modernidade, para além de uma etapa da História, pela qual se caracteriza por um complexo de transformações econômicas (industrialização, expansão dos mercados, Capitalismo e Socialismo); transformações políticas (constituição das nações, do Estado constitucional, da democracia liberal, da cidadania, do surgimento da burguesia e do proletariado enquanto novos agentes políticos); transformações culturais (emergência do indivíduo, do ideário do individualismo, do progresso, evolução e desenvolvimento, mudanças tecnológicas, etc.); transformações espaciais (fronteiras nacionais, urbanização, centralização e concentração), a Modernidade é vista como um projeto civilizatório cujos princípios norteadores são os conceitos de universalidade (extensiva a todos os seres humanos, para além das barreiras nacionais, étnicas ou culturais), individualidade (respeito à pessoa concreta em seu valor individua) e autonomia (a capacidade destes seres humanos individualizados pensarem e agirem por si mesmos, sem tutela religiosa ou ideológica). (HERCULANO, 2006, p. 9-10)

Para o filósofo italiano Gianni Vattimo (1996), a modernidade caracteriza-se, de fato, por ser dominada pela ideia da história do pensamento como uma 'iluminação' progressiva, que se desenvolve com base na apropriação e na reapropriação cada vez mais plena dos 'fundamentos', que frequentemente são pensados também como as 'origens', de modo que as revoluções teóricas e práticas da história ocidental se apresentam e se legitimam na maioria das vezes como 'recuperações', renascimentos, retornos.

Pode-se dizer que é a partir da noção de "superação" que a modernidade legitima este desenvolvimento, esta iluminação progressiva do pensamento, que se reapropria e re-significa o seu próprio fundamento e origem. Assim, enquanto projeto social civilizatório, é no Iluminismo que a modernidade tem suas matrizes e sua defesa da Razão como libertadora, emancipatória. O então projeto da modernidade – assim denominado pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas (1989) - equivaleria a um esforço intelectual dos pensadores iluministas “para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas”. (HARVEY, 1992, p. 23)

A aplicação ampla da racionalidade na organização social prometia a segurança de uma sociedade estável, democrática, igualitária (incluindo o fim de estados teocráticos, de perseguições sociais produzidas pela superstição, de abusos de poder por parte dos governantes, etc. A possibilidade de domínio científico representava o aceno de uma ambicionada segurança, que nos afastaria dos infortúnios ligados a imprevisibilidade do mundo natural (desde condições climáticas e de relevo, a doenças físicas e mentais): a natureza deveria submeter-se ao poder da Razão humana. (CHEVITARESE, 2001)

A hipervalorização do conhecimento objetivo e científico teve um valor bastante elevado; o investimento cultural na racionalidade universal e na ciência impôs uma restrição da liberdade individual por conta da objetividade da razão. Mais tarde, as expectativas quanto aos frutos da ciência foram frustradas por eventos trágicos e marcantes, como as duas guerras mundiais, a guerra fria, dentre outros. O progresso advindo da ciência, a indústria, o avanço tecnológico, a invenção de armas de guerra de grande poder destrutivo, a relação também destrutiva do homem com a natureza, entre outros fatores, trouxeram a sensação de caos, incerteza e decepção, ou seja, trouxeram o que Weber (2006) chama de “desencantamento do mundo.

Esse desencanto é acompanhado da crise de conceitos fundamentais ao pensamento moderno, tais como “Verdade”, “Razão”, “Legitimidade”, “Universalidade”, “Sujeito” e “Progresso”, entre outros. A crise na modernidade levaria, segundo alguns estudiosos, ao seu próprio descaminho, ou ao cenário que Rouanet10 (1993 apud HERCULANO, 2006) resumiu como uma “razão enlouquecida” - uma vez que o mundo em que vivemos, segundo ele, caminha em direção à barbárie, com guerras, racismo, xenofobia, crise ecológica, hiper e anti individualismo, totalitarismo, torturas e crimes de toda espécie. Seria a irracionalidade dos tempos atuais, a negação dos ideais iluministas, ou como diria Giddens (1991), a “modernidade tardia” ou “modernidade reflexiva” como prefere chamar a pós-modernidade, ou seja, a cultura que se vive atualmente.