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Características de um jornalista multiplataforma

No documento marinaaparecidasadalbuquerquedecarvalho (páginas 82-85)

Conforme a bibliografia e as entrevistas apontaram, mais do que um jornalista multitarefa, há a necessidade de repórteres que saibam trabalhar em equipe e, muitas vezes, tenham uma noção de tecnologia. Nesse cenário, Salaverría (2015, p. 82) sugere que os jornalistas precisam ter destreza tecnológica. “Da mesma forma que é inconcebível que um cirurgião ou um arquiteto trabalhem durante anos com as mesmas ferramentas, não se deveria aceitar que nenhum jornalista fizesse o mesmo. E, no entanto, com muita frequência é isso o que acontece”, diz o autor. Trata-se de encontrar usos criativos para novas tecnologias. Além disso, os jornalistas devem se diferenciar dos demais cidadãos ao colocar essas ferramentas a serviço do jornalismo, da apuração e da busca pelo contraditório. “Nisto consiste a verdadeira destreza tecnológica de um jornalista: em dominar as tecnologias para obter resultados informativos de qualidade” (SALAVERRÍA, 2015, p. 82), acrescenta.

Para o pesquisador, o jornalista precisa prestar atenção ainda ao tratamento da informação, uma necessidade a partir do excesso de informação. Assim, além de divulgar assuntos desconhecidos, há a necessidade de selecionar, hierarquizar e interpretar a informação de valor, mas, sobretudo, torná-la relevante, inteligível e amena para adquirir significado e ser interpretada pelo público. Recomenda ainda a exploração de todas as formas de expressão potenciais no meio digital, muitas ainda desconhecidas.

Em 2001, quando Pavlik (2001) lançou seu livro Jornalismo e a nova mídia (tradução nossa), também já previu uma mudança no papel dos jornalistas. Em consonância com Salaverría (2015), o pesquisador fala sobre a abundância de informação, situação em que os jornalistas precisam, não somente contar uma história, mas também guiar os usuários, e melhorar suas habilidades para narrar os fatos, de forma a não somente descrevê-los, mas conectá-los e contextualizá-los de acordo com as circunstâncias. Assim, para o autor, ainda que sejam importantes as notícias que informam os principais fatos, também será necessário desenvolver os acontecimentos de forma contextualizada.

Além disso, Pavlik diz que o papel do jornalista de interpretar os eventos será ampliado e até mesmo modificado, pois a audiência requisitará saber por que alguns acontecimentos são importantes e qual será o impacto deles; caberá ao jornalista, então, transformar-se no que o autor chama de “construtor de sentidos” (sense makers). Acrescenta,

ainda, que esse profissional precisará pensar em formas mais fluídas de contar histórias, além de ser treinado para usar a imaginação em favor das narrativas.

Por fim, Pavlik (2001) destaca que o jornalista também passará a reconectar comunidades. Para o pesquisador, isso significa que, tanto ele quanto as empresas jornalísticas terão de se aproximar mais da audiência, respondendo e-mails (atualmente, comentários nas redes sociais) de usuários que, por vezes, compreenderão mais sobre o assunto do que o próprio jornalista. “O mundo em rede exige que os jornalistas sejam ainda mais precisos e atentos aos detalhes, porque o feedback pode ser rápido, difícil e autocorretivo” (PAVLIK, 2001, p. 219, tradução nossa).

Passando da teoria para a prática, a editora de Digital da Folha, Camila Marques, diz que, na hora de contratar um repórter, atualmente, continuam valendo a preferência por profissionais que se interessam por assuntos diversos, que leem, que se informam e que ouçam. “Mas, no mundo atual, entender a dinâmica das produções, do tempo real e de tecnologia são diferenciais importantes”, ressalta, concordando com a proposta de Salaverría (2015).

Mas, de acordo com o repórter especial Marcelo Leite, para participar da produção da GRM, o repórter precisa ainda ter características específicas difíceis de serem encontradas. “Em primeiríssimo lugar, eu diria que a pessoa tem que ter disposição para a narrativa, que é uma coisa pouco comum, hoje em dia, em jornais diários”, aponta. Segundo Marcelo, isso significa que o profissional precisa ter habilidade para contar uma história e não apenas levantar dados e declarações, reunindo as informações colhidas com os casos dos personagens de forma a levar o usuário a se identificar e se interessar pelas histórias de vida ou dos lugares narrados na reportagem, característica que se aproxima dos apontamentos de Pavlik (2001) em relação a um jornalismo mais contextualizado. “O jornalista de jornal diário, pelos menos na Folha, está muito acostumado a fazer aquela matéria pequena. Vai até o local, observa certas coisas, ouve certas declarações, grava ou anota, volta, senta e escreve. É muito mais que isso”, opina.

Em segundo lugar, Marcelo aponta que o repórter precisa apurar em profundidade, já que, como o nome da seção Tudo Sobre sugere, a proposta é tentar tornar os temas totalmente compreensíveis, tanto por meio da quantidade, quanto da qualidade das informações repassadas. “A terceira coisa que precisa ter e é muitíssimo importante, talvez fosse o caso de colocar em primeiro lugar junto com a narrativa, é a disponibilidade para trabalhar junto”, acrescenta, conforme tratado em seções anteriores. O repórter especial diz

que é difícil encontrar jornalistas com essas características e admite que ele mesmo teve que se adaptar, pois não tinha experiência em trabalhar dessa forma.

Marcelo Soares considera que participou da produção de um Tudo Sobre por causa de sua experiência com jornalismo em diferentes áreas, visto que ele trabalhou na Folha no início da carreira, prestou serviços para a mídia internacional e esteve também na MTV. “Quando eu voltei para a Folha, em 2012, eu trazia essa bagagem muito grande de experiência com outras linguagens. Então, sempre que tinha um planejamento de um projeto como esses, eu era chamado para participar das discussões”, explica. O melhor aproveitamento das linguagens é um assunto tratado também por Salaverría (2015). Segundo Soares, em A Batalha de Belo Monte, ele opinou na navegação, nos vídeos e na distribuição de códigos.

Outro fator que Marcelo considera também ter influenciado para que fosse convidado a participar da construção da GRM foi uma experiência que ele desenvolveu com a turma de trainees do jornal em 2012, um projeto chamado O Custo do Voto61, na primeira eleição municipal em que o financiamento das campanhas foi divulgado quase em tempo real. A ideia era apresentar uma pesquisa histórica do financiamento de campanha no Brasil, todos os escândalos ocorridos e quais mudanças na lei eles geraram ao longo do tempo, em uma produção voltada especialmente para o digital. “Fizemos um pacote bem interessante de análise dos dados, entrevistas, perfis de financiamento de campanha, um panorama dos financiamentos de campanha pelo mundo, um infográfico interativo com a realidade da cidade, ver como foi o voto e a receita”, relata.

Segundo Marcelo, foi a primeira vez, na Folha, que houve o pensamento para o digital primeiro, e não para o impresso, com grande sucesso na redação, pois mostrava o potencial de conteúdo que funcionava melhor na web do que no papel. Assim, Marcelo diz que, na produção de A Batalha de Belo Monte, houve a lembrança de O Custo do Voto, e ele foi chamado para construir a linha do tempo do último capítulo.

Já em o Golpe e a Ditadura, Marcelo Soares relata que já tinha uma planilha com os dados dos mortos e desaparecidos na Ditadura, criada a partir do livro Direito à Memória e à Verdade62. O repórter apresentou a planilha e, a partir dela, surgiu a ideia de se produzir um infográfico interativo no último capítulo de conteúdo da GRM. “Acho que ele poderia ter ficado melhor, mas as fotos [dos mortos e desaparecidos], considero que ficou legal”, conclui.

61 Disponível em <http://ocustodovoto.blogfolha.uol.com.br/>. Acesso em 05 jul. 2017.

62 Disponível em <http://www.sdh.gov.br/assuntos/mortos-e-desaparecidos-politicos/pdfs/livro-direito-a- memoria-e-a-verdade>. Acesso em 30 nov. 2011.

Em O Tempo, para as produções de GRM, são priorizados os repórteres com os melhores textos, agilidade e organização, pois, segundo o secretário de redação Murilo Rocha, essas são características para se produzir rápido. “É a realidade, porque é investimento: investimento financeiro, de tempo e demanda mobilização. Então, a tendência é que a gente coloque as melhores pessoas para ter melhores resultados”, esclarece. Entretanto, Murilo diz que não há exclusividade para que os repórteres com essas carcterísticas produzam uma GRM e que, se qualquer jornalista propuser uma pauta multicódigos, ele poderá desenvolvê-la.

O secretário diz que há, ainda, preferência por profissionais que tenham mais intimidade com diferentes códigos ou, pelo menos, vontade de pensá-los, também em conformidade com o que o Salaverría (2015) recomenda sobre o uso de linguagens. “De fazer um material gravado, em áudio, em vídeo, de pensar um infográfico interativo, não ficar só aquela coisa estática. Sem dúvida, priorizamos essas pessoas”, comenta Murilo.

O fotógrafo Lincon Zarbietti acredita que é escalado para várias GRMs exatamente porque demonstrou interesse em poduzir além de foto, também vídeo. Ele conta que sempre gostou de audiovisual e chegou até a fazer um curso rápido com um editor da TV Folha. Como o fotógrafo tem uma câmera que também grava, começou a fazer filmagens. “Como eu filmei uma vez, aí você vai filmando outra vez, aí depois eu me pautei para fazer um outro vídeo, você vai se pautando, vai criando gosto pela coisa. Digamos que, por uma iniciativa minha, o jornal viu que tinha alguém ali para fazer isso”, esclarece.

Da mesma forma, Natália Oliveira relata que, primeiramente, foi selecionada como repórter responsável pela produção de vídeos, porque sempre gostou do audiovisual, apesar de ser originalmente do impresso. Em seguida, quando o jornal começou a construir GRMs, Natália também se interessou. “Eu demonstrei meu interesse em ir para essa área, porque eu gosto muito de multimídia”, explica.

No documento marinaaparecidasadalbuquerquedecarvalho (páginas 82-85)