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Jornalista multitarefa ou trabalho em equipe?

No documento marinaaparecidasadalbuquerquedecarvalho (páginas 72-78)

3.2 As redações convergentes e o trabalho multidisciplinar

3.2.1 Jornalista multitarefa ou trabalho em equipe?

Os estudos de convergência apresentados sugerem a figura de um jornalista multitarefa, com múltiplas habilidades, produzindo conteúdos a serem distribuídos por diferentes canais. No entanto, uma pesquisa de Hofstetter e Schoenhagen (2016) apontou alguns problemas enfrentados por profissionais desse tipo. Os pesquisadores realizaram um

estudo em redações da Suíça que produzissem, no mínimo, um jornal impresso diário e combinassem, pelo menos, duas plataformas (impresso e online). Foram selecionadas duas redações de língua francesa, três de alemã e uma bilíngue, nas quais foram conduzidas trinta entrevistas semiestruturadas com os editores chefes, jornalistas e o CEO da empresa de mídia principal. Também foram entrevistados jornalistas que deixaram as redações durante ou após a reestruturação para a convergência, fornecendo uma visão mais crítica sobre o processo.

Os entrevistados consideraram que a união da equipe em um mesmo espaço ajudou a superar os fluxos de comunicação separados e melhorou a cooperação. Entretanto, embora os jornalistas de quatro redações usem câmeras e smartphones, a qualidade dos vídeos geralmente não é suficiente para a publicação e, por isso, a ideia de um jornalista multitarefa foi adaptada ou reformulada. Os jornalistas acrescentaram, ainda, que há uma expectativa irreal em torno deles, como se eles tivessem uma competência apurada para várias habilidades. Os repórteres especiais, usualmente do impresso, reclamam, também, que sua rede de fontes, essencial para seu serviço, está diminuindo, pois não têm mais tempo para manter um relacionamento.

Por outro lado, os entrevistados disseram haver espaço para maior qualidade com apurações mais profundas, já que gastam menos tempo com notícias de rotina. Além disso, um leque maior de tópicos está sendo coberto nas diferentes plataformas por causa da maior colaboração e comunicação. Tais vantagens, no entanto, dependem de mais recursos humanos, mas eles têm diminuído em muitos casos, conforme a bibliografia apontou no último capítulo. A maioria dos entrevistados acredita que as múltiplas habilidades é um diferencial no mercado de trabalho e relatam que produzir para mais de uma mídia deixa o trabalho mais interessante. Entretanto, ao mesmo tempo, temem se tornarem jornalistas generalistas, que fazem várias coisas, mas nada bem, um problema principalmente nas redações pequenas. Assim, poderiam desaparecer, com o tempo, as habilidades para produzir reportagens exclusivas e profundas.

Já autores como Souza (2017) e Kischinhevsky (2009) condenam de forma veemente o que consideram a exploração do profissional, obrigado a assumir múltiplas tarefas. Souza (2017) discorre sobre o capitalismo em sua fase atual, com empresas de múltiplas mídias, plataformas e tarefas que exigem um profissional heterodoxo e multitarefa. Para ele, a globalização das novas tecnologias aliada à mercantilização generalizada dos produtos jornalísticos promove uma fragmentação da profissão de jornalista, além da precarização da contratação e remuneração. Nesse cenário, os jornalistas precisam dominar todo o processo produtivo, a jornada de trabalho é ampliada com as redes sociais e os

notebooks, assim como a possibilidade de trabalho em casa, e o trabalho freelancer passa a ser valorizado, enfraquecendo os laços trabalhistas oficiais. Além disso, os sindicatos perdem força.

Para Kischinhevsky (2009), a pouca oferta de emprego faz com que os jornalistas aceitem situações abusivas de trabalho, acreditando que elas sejam normais. Para ele, no Brasil, as múltiplas habilidades são, na verdade, múltiplas funções, tendo em vista que as empresas não querem oferecer treinamento para seus profissionais, mas apenas contratar aqueles que já possuem conhecimentos de edição de áudio e vídeo e, assim, não haveria, de fato, desenvolvimento de habilidades.

O autor reitera que, para fazer uma cobertura em texto, áudio e vídeo, o jornalista está como em uma “gincana”, precisando apurar em tempo hábil para meios com horários de fechamento diferentes. Além disso, descumpre-se a legislação no que diz respeito à necessidade de formação específica de repórter fotográfico ou cinematográfico. Por fim, para não extrapolar em demasia sua carga horária, o jornalista acaba abrindo mão de uma apuração mais acurada e, portanto, da profundidade. Muitas vezes, repórteres de redações convergentes não conseguem se adaptar e resistem às modificações; o compartilhamento do mesmo local de trabalho leva a choques de cultura, e a demissão está sempre pairando no ambiente.

Assim, para Kischinhevsky (2009), a convergência pode dar certo desde que realmente ocorra um trabalho em equipe, de forma colaborativa, não imposta pelo departamento financeiro. Também devem ser levadas em consideração melhores condições de serviço, com salários condizentes ao trabalho de repórter multicódigos e punições para empresas que cometerem abusos. Será necessária ainda uma modificação dos cursos de jornalismo, focadas no exercício de jornalismo em uma única mídia e voltadas, muitas vezes, apenas para a técnica.

Além do trabalho em conjunto de jornalistas com habilidades em diferentes plataformas, Renó e Renó (2015) ressaltam também a interdisciplinaridade do jornalismo. “(...) o jornalismo sempre foi interdisciplinar na sua realização, na sua construção e na sua reprodução. É uma atividade de equipe, com diversidade tecnológica e múltiplas linguagens. Por esta razão, não aceitar a diversidade profissional é uma incoerência difícil de explicar” (RENÓ e RENÓ, 2015, p. 134, tradução livre).

Para os autores, as novas narrativas, entre um conteúdo de hipermídia avançada (e aqui incluímos a GRM) e uma narrativa transmídia57, solicitam uma aproximação conceitual

57 Uma das características da narrativa transmídia é que o conteúdo flui entre plataformas de forma complementar e não repetitiva. O conceito será apresentado em detalhes em capítulos posteriores.

entre o jornalista e o profissional da tecnologia, o que pode acontecer em uma redação interdisciplinar. Renó e Renó (2016) sugerem, assim, um trabalho em equipe no qual cada um usa suas habilidades, de acordo com sua formação profissional, uma forma de colaboração que acontece também na medicina, por exemplo. Os pesquisadores sugerem ainda que, além do trabalho em conjunto, outra solução seria a reformulação do ensino, de forma que o jornalista aprenda conteúdos tanto do jornalismo quanto relacionados à tecnologia.

Longhi e Silveira (2010), em um estudo sobre especiais multimídia do jornal argentino Clarín, constataram que, já naquela época, havia uma equipe ou um jornalista que dirigia o especial, uma outra equipe de oito pessoas para a produção multicódigos, designers que trabalhavam com Flash58 e animação, e um técnico para o som. A maior dificuldade exposta pelos autores era que a publicação possuía uma equipe fixa para os especiais, mas eles permaneciam em uma redação online que não estava no mesmo espaço do impresso, o que complicava a integração.

Assim, se nas antigas redações o comando era de editores e jornalistas, agora é necessária também uma negociação com os profissionais da tecnologia, que trabalham a partir de lógicas distintas, para a construção dos conteúdos (CANAVILHAS et al, 2016). Canavilhas et al (2014) discorrem sobre os tecnoatores, programadores e designers, profissionais que se preocupam principalmente com a tecnologia, tendo em vista a rápida evolução tecnológica.

Para compreender o papel de cada um dos atores no trabalho em equipe para a construção de reportagens, Canavilhas et al (2014) estudou o jornal online português Observador, a partir da realização de um grupo focal com um jornalista, um designer e um programador da publicação. Os pesquisadores concluíram que, dentro da redação, existem três culturas diferentes (jornalistas, designers e programadores), mas o único objetivo de melhorar a experiência dos usuários.

O programador preocupa-se com a rapidez no acesso à informação; o designer, em melhorar a usabilidade e fazer do conteúdo mais apelativo, enquanto, o jornalista oferece informação contextualizada e com credibilidade. O repórter ainda é central na redação, contudo, depende cada vez mais dos tecnoatores. “Num setor onde os formatos e os novos suportes influenciam a escolha dos consumidores, os jornalistas são obrigados a procurar maior aproximação com os profissionais que dominam a parte tecnológica” (CANAVILHAS et al, 2014, p. 93).

58 Como dissemos na introdução, em 2010, ainda prevaleciam os especiais multimídia, construídos a partir de Flash (LONGHI, 2014).

Mais recentemente, Canavilhas et al (2016) realizou entrevistas com jornalistas, designers e programadores em três redações portuguesas e três brasileiras para uma melhor compreensão de como se dão as relações entre esses profissionais na construção de produtos jornalísticos. Diante das respostas, os pesquisadores chegaram a conclusões que foram divididas em quatro vertentes.

A primeira está relacionada aos processos de negociação, ou seja, à forma como esses diferentes profissionais se reconhecem mutuamente e partilham conhecimentos. Nesse caso, a maioria dos entrevistados disse que ainda existe uma hierarquia em que permanecem no comando jornalistas e editores, os quais fornecem as diretrizes do trabalho. Por outro lado, percebem que essa lógica vertical está sendo modificada para uma mais horizontal, em que os tecnoatores participam de todo o processo de produção e ainda impedem certos procedimentos. Um dos entrevistados diferencia essa nova realidade da produção do impresso, em que as tarefas são bem divididas, o repórter apurando e escrevendo a reportagem, enquanto o designer apenas diagrama o conteúdo. Os tecnoatores requerem o reconhecimento das suas atividades como os profissionais que possibilitam os meios para a divulgação de conteúdo e acrescentam que o nível de conhecimento tecnológico dos jornalistas influencia no diálogo.

Em relação ao conceito de notícia, ele vai sendo aprendido informalmente pelos tecnoatores, “raramente explicitado pelos agentes envolvidos na troca, mas fundamental para a criação de interfaces laborais”, ressalta Canavilhas et al (2016, p. 10). Contudo, nem todos os entrevistados concordam que essa seria a melhor maneira de aprendizado, recomendando que designers e programadores façam workshops em jornalismo, de forma a não se focarem apenas na tecnologia, assim como os jornalistas não devem ficar presos só às notícias. Por fim, reconhecem que a noção de notícia está sendo construída pelos diferentes profissionais, o que fica bem evidente na fala de um dos entrevistados: “Lanço a ideia para eles, eles rebatem dizendo se isso é possível ou não, ou eles dizem que seria melhor desmembrar a história para poder empacotar dessa forma e entregar o produto final desse jeito” (F.M. apud CANAVILHAS et al 2016, p. 11)

Em distância física versus distância epistêmica, os autores apontam a existência de dois tipos de distância entre jornalistas e tecnoatores. A primeira seria uma epistêmica, que leva em consideração a maneira de pensar e o repertório dos diferentes profissionais, conforme descrito pelos entrevistados: jornalistas são mais do texto, designers, da imagem e programadores, dos números. Este recurso é utilizado pelos entrevistados como forma de identificação entre seus pares e também para ressaltar a diferença entre os diversos

profissionais. Já a distância física, em redações nas quais jornalistas e tecnoatores estão em prédios, andares ou seções diferentes, pode atrapalhar as rotinas produtivas, impondo barreiras que dificultam as negociações, como Longhi e Silveira (2010) haviam ressaltado. “As respostas indicam que existe uma vinculação entre as distâncias epistêmica e física”, conclui (CANAVILHAS et al 2016, p. 13).

Por fim, em hibridismo profissional, os pesquisadores perceberam que estão sendo requisitados jornalistas que tenham noções de interface gráfica e programação, assim como designers e programadores devem saber manipular peças jornalísticas. Tanto jornalistas quanto tecnoatores ressaltam que um repórter com tais conhecimentos também vai pensar na forma da informação, comunicar-se melhor com designers e programadores e saber a potencialidade de cada ferramenta para construir certos cenários. O profissional híbrido passa a ser, assim, um mediador dos processos jornalísticos, tendo um papel importante para diminuir as distâncias epistêmicas. Canavilhas et al (2016, p. 14) conclui:

Aos poucos, vem perdendo espaço a utopia de que a notícia um dia poderia ser produzida por um único profissional com capacidades espetaculares para executar as tarefas mais complexas de todos os domínios laborais. Ao invés disso, nota-se que a valorização do conhecimento que perpassa as três disciplinas – jornalismo, design e programação – é percebida como um componente central para a melhoria do trabalho nas redações online.

O resultado da pesquisa realizada por Ito e Ventura (2016) nas redações dos jornais brasileiros Estado de São Paulo e UOL aponta para o mesmo caminho, pois conclui que, aliado ao trabalho em equipe, é importante que os jornalistas tenham, pelo menos, uma noção sobre tecnologia. O estudou sugeriu que profissionais multiespecializados (jornalistas ou não), os quais se destacam por ter conhecimentos em áreas variadas, como jornalismo, estatística e programação, são valorizados. Segundo os autores, no Estadão, há uma equipe destinada a jornalismo de dados, por exemplo, e alguns infográficos são até apurados e construídos por outros profissionais, mas revisados por jornalistas. O Editor Daniel Tozzi, da UOL Tab (apud Ito e Ventura, 2016), acrescenta que é recomendável que o jornalista tenha pelo menos uma noção de algumas técnicas como linguagem de programação para fazer sugestões ao programador.

[...]. O jornalista atualizado, que está a fim de entrar na brincadeira, ele está antenado com a tecnologia. Ele não precisa ser um às, ter um domínio técnico sobre como funciona tudo, fazer vídeos... Mas [é bom] entender o conceito. Ele deve entender qual é o melhor jeito de contar a história usando os recursos que existem hoje” (Tozzi apud Ito e Ventura, 2016, p. 154).

No documento marinaaparecidasadalbuquerquedecarvalho (páginas 72-78)