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A vivência da exclusão escolar decorrente da condição de deficiente mental leve

Capítulo 4 – Histórias de alunos egressos de classe especial para deficientes mentais leves

55 Fato pitoresco é que em 1996 quando fiz a pesquisa do Mestrado com os prontuários dos alunos, este

4.2 A história de Beatriz

4.2.3 A vivência da exclusão escolar decorrente da condição de deficiente mental leve

O problema da exclusão escolar, decorrente da condição de deficiente mental leve, pode ser considerado a partir do ato legitimador, no caso, o parecer psicológico acerca das potencialidades e capacidades daquele que é avaliado. No entanto, essa delimitação não é satisfatória para a compreensão da história de Beatriz, sendo necessário assinalar que a sua condição de inspiradora de cuidados e atenções especiais é anterior ao parecer de 1984. Ao nascer, Beatriz despertou desconfiança em sua mãe, por ter demorado mais que o primeiro filho para ir até o quarto mamar, assim como, ao longo do período de aleitamento materno, Dona Margarida percebia que ela era diferente, pois sempre, depois que mamava, parecia que ia regurgitar. A causa dessa estranheza no comportamento da filha está associada à diferença de RH entre ela e o marido. Vale lembrar, é uma menina que, desde os quatro meses de idade, apresenta um quadro de epilepsia bastante difuso, segundo relato da mãe. Sua passagem pelo ensino comum na pré-escola foi descaracterizada pela presença da mãe e irmão em sala de aula, bem como a rápida estadia na 1ª série, marcada pelo escárnio, em virtude de sua produção escolar e de seu comportamento em sala de aula.

Em relação ao ato legitimador, há uma outra ressalva a ser feita, a saber, o único Relatório Psicológico disponível é datado de 1984, época em que Beatriz tinha 13 anos de idade e 7 anos de escolarização, majoritariamente na condição de aluna especial. Ainda em 1984, foi transferida de uma classe especial para outra, sendo que seus últimos três anos de escolarização seriam na escola em que seu prontuário estava arquivado. O conteúdo desse relatório restringe-se a um texto esquemático, contendo os resultados nos testes aplicados e o encaminhamento para a classe especial, o que será reproduzido abaixo:

Beatriz de Orlando Material de estudo

* Raven – Pontos 11 IC= 12a 5m IM= 6a

* F.H.Goodenough – Pontos= 8 IC= 12a 5m IM= 5a

* Desenho da Casa - Pontos= 12 Idade Gráfica= 6a * Bender – Habilidade viso-motora de uma criança de 5a

Por estes dados solicito que permaneça com a aluna Beatriz na Classe Especial para seu melhor desenvolvimento intelectual.

Atenciosamente

É um relatório que aparentemente cumpre uma função burocrática, diante do histórico e da condição de Beatriz, ou seja, é necessário formalizar sua permanência na classe especial e delimitar suas potencialidades e capacidades com base nos resultados dos testes. Enfim, reafirmar que muito pouco se pode esperar de Beatriz, referendando-se, então, na discrepância entre sua idade cronológica e a classificação dos resultados obtidos.

É possível afirmar que essa formalização burocrática de sua presença na escola pode ser percebida nas notas que constam na Ficha Individual de Beatriz nos anos de 1984 e 1985, conforme tabela abaixo:

1984 – Retida na 1ª série da classe especial

Disciplina 1º Bimestre 2º Bimestre 3º Bimestre 4ºBimestre Conceito Final

Língua Portuguesa D D C D D Matemática D D D D D Educação Artística C C C C C Educação Física C C C C C Estudos Sociais C C C C C Ensino Religioso F F F F F

1985 – Retida na 1ª etapa do nível I da classe especial

Disciplina 1º Bimestre 2º Bimestre 3º Bimestre 4º Bimestre Conceito Final

Língua Portuguesa D C C C C Matemática C D D C C Educação Artística C C C C C Educação Física C C C C C Estudos Sociais C B C C C Ensino Religioso F F F F F

Em 1984, fica retida em Português e Matemática. Em 1985, suas notas finais, apesar do conceito C, não são suficientes para que seja aprovada e promovida para o nível II da classe especial, bem como reencaminhada para a classe comum. Em 1986, a mãe tira Beatriz da escola, antes mesmo de terminado o 1º semestre. É uma permanência estagnada, na classe especial, sem que as notas possam servir de referencial para o acompanhamento do desenvolvimento da aluna.

A história, que necessita ser reafirmada na escola, pode ser versada explicitando que, anos antes de Beatriz ir para a mesma , freqüentava médicos para acompanhar e compreender seus sintomas: convulsões e crises de ausência. É a história de uma peregrinação por diferentes profissionais da medicina, disponibilizados de acordo com a cobertura do convênio médico particular da época, marcada pela resignação e rebeldia da mãe. A primeira breve incursão de Beatriz, aos quatro anos, nos meios escolares, orientada pelo médico neuropediatra, foi insatisfatória e interrompida, após a constatação, tanto da escola quanto da mãe, de que Beatriz “só queria andar”. Vale ressaltar que esse comportamento não era específico do espaço escolar, mas uma característica de Beatriz, durante um certo período de sua vida, como observa sua mãe: “Sempre foi quieta, mas gostava de andar”.

Na entrevista com Dona Margarida, outras nuanças do contato com os profissionais da saúde puderam ser recuperadas, com o valioso auxílio dos documentos guardados na bolsinha , cuja finalidade era de comprovar a incapacidade e dependência da filha numa eventualidade. Foi possível resgatar que Beatriz chegou a ser encaminhada inicialmente pela escola para uma psicóloga; permaneceu durante seis meses sob seus cuidados, no ano de 1979, quando recebeu alta, sendo esse o mesmo ano em que Beatriz foi transferida da 1ª série do ensino comum para a escola especial. A mãe acrescenta que não se recorda dos procedimentos adotados com sua filha durante esse período, nem mesmo se foi aplicado algum teste de Inteligência. Posteriormente, Beatriz foi, durante três meses, a um psiquiatra que também lhe deu alta. A situação de alta da filha nesses dois profissionais é explicada da seguinte forma:

“(...) lá em casa nós não briga. Aí já acharam que nós tava falando mentira (...) Não, não falaram mais eu imaginei. Depois que foi nós dois lá (Dona Margarida e Seu Geraldo) que ele viu, assim que ele conversou com nós. Aí ele falou que não precisava mais levar ela no psiquiatra. ”

O motivo do atendimento desses profissionais, psicólogo e psiquiatra, não está claro para Dona Margarida. Recorda que a psicóloga foi solicitada pela escola, no entanto não lembra como foi o encaminhamento ao psiquiatra, sendo que sua única recordação é de não haver sido prescrita medicação para Beatriz. A vaga compreensão da situação, do

motivo do atendimento e da condição do quadro clínico da filha, bem como a não vinculação ao processo de aprendizagem podem ser percebidas na seguinte fala:

“Não, isso aí (motivo pelo qual não aprende) ninguém nunca falou, dela não aprender, porque a psicóloga deu alta, não falou nada. O psiquiatra deu alta, nós conversamos. O que ela ia mesmo era no neurologista, neuropediatra. É, ele só falava que tinha ausência, porque quando fazia exame que não dava nenhuma crise, aí dá normal”.

A justificativa da não aprendizagem de Beatriz, conforme explicação da mãe, envolve suas impressões e sentimentos, mesclados com o discurso médico, provavelmente oriundo da peregrinação nos diferentes profissionais da saúde.

“Mas sabe o que eu acho que quando tem muitas crises quando é bebê, cada crise que dá atrapalha o desenvolvimento do cérebro. Eu penso que é desse jeito. É porque eu acho que quanto mais crise tem, alguma coisa que encosta lá dentro, algum fiozinho, alguma coisa, né, que não deve tá funcionando normal.”

Uma outra perspectiva para explicação da não aprendizagem de Beatriz é acrescida pela mãe envolvendo comparações com outros casos conhecidos, principalmente familiares, o que denota o caráter hereditário para a condição da filha. A maior parte desses casos familiares tem em comum a aprendizagem mínima da leitura e escrita, justamente o inverso da condição de Beatriz.

O caso mais próximo é o da tia de Beatriz, irmã de seu pai. Dona Margarida conta que ela tem muitos problemas desde que nasceu, freqüentou a AACD e sua escola durante um tempo, até que os familiares não puderam mais levá-la; no entanto, mesmo com todas essas dificuldades, a tia aprendeu a ler e escrever com uma senhora que se dispôs a ensiná-la. O outro caso é o da prima de Seu Geraldo, pai de Beatriz, que teve a primeira crise de epilepsia com sete anos, na 1ª série. Aprendeu a ler e escrever, se casou, teve filhos e sempre trabalhou; todavia ainda inspira cuidado, necessitando, muitas vezes, de internações. Do outro lado da família, há o tio-avô de Beatriz que tem epilepsia, porém sua manifestação aconteceu somente quando era moço. Ele aprendeu a ler e escrever, e trabalhou durante anos como gerente de uma grande loja de calçados; Dona Margarida compreende que todo esse êxito foi possível, porque as crises aconteceram após o período escolar. Há um outro caso na família, de uma pessoa jovem, portadora de Síndrome de Down, que dá trabalho para os pais porque é muito

dependente deles, além de ficar sempre doente. Dona Margarida, ao comparar com Beatriz, diz que é um caso pior, porque sua filha quase não fica doente e tem apenas convulsão.

Outros casos conhecidos, fora do âmbito familiar, são descritos pela mãe. Um deles é de Shirley, companheira de classe especial de Beatriz, cuja mãe, pelo fato de trabalhar muito, pedia à Dona Margarida para ajudar a filha a atravessar a linha do trem, que havia no caminho da escola; assim Shirley era capaz de seguir sozinha até sua casa. Dona Margarida exclama: “Pois então, é isso que eu não entendo! Ela era bem assim ruim, mas pra ir sozinha pra casa dela ela sabia ir”.

Na igreja que a família de Beatriz freqüenta, Dona Margarida conta que há um outro caso de “uma amiguinha da mesma idade dela (...) que dá dó de ver” de tanta convulsão. Durante o tratamento no Hospital das Clínicas, foi indicada uma cirurgia que, segundo ela, só piorou o quadro:

“Agora dá as convulsão, do nada. Ela já começa a gritar e toma um monte de remédio. Parece que ficou meia boba sabe, eu não sei, porque antes disso eu não conhecia ela, antes da cirurgia (...) eu acho que uma cirurgia da cabeça tem que pensar bem”.

Ao longo das entrevistas com Dona Margarida, além das relatadas anteriormente, outras histórias puderam ser contadas; todavia a história central de nossas entrevistas estava obscura. A oportunidade de esclarecimento estava se configurando, pois, após seis anos sem comparecer ao neurologista, Beatriz tinha consulta de retorno com os exames pedidos. No exame de sangue não havia nenhuma alteração, todavia, durante a realização do eletro-encefalograma ela tivera crise de ausência o que foi registrado no exame, para satisfação da mãe que “não agüentava mais esses exames darem normal”. Esse momento do exame é descrito por Beatriz da seguinte forma: “mesmo deitada fica tudo escuro, apaga, fica tudo escuro” e parece durar muito mais tempo do que o real.

Logo combinamos que seria interessante aproveitar o retorno ao médico, com os últimos exames, para esclarecer algumas dúvidas que se revelaram nas seguintes perguntas:

* O que ela tem, se os exames dão sempre normal, tanto o exame de sangue quanto o eletro?

* Aos quatro meses a Beatriz tomou Misolini. O que pode ter causado? Na época ela ficava muito mole.

* Ela continuou tendo convulsão, mesmo tomando o remédio. Será que a convulsão, as crises de ausência, os remédios impediram a Beatriz de aprender a ler e a escrever?

* Será que o RH negativo da mãe e o RH positivo do pai causam algum problema no desenvolvimento de Beatriz, que é RH negativo, assim como todos os outros filhos?

Entretanto, na nossa entrevista posterior, Dona Margarida relatou que, com muito esforço, fez algumas das perguntas ao médico, pois havia se esquecido de levar à consulta o que fora preparado, devido às suas muitas preocupações e responsabilidades. Na entrevista, foi relatando, apesar da confusão entre o que o médico falara e suas impressões acerca da situação, o que havia conversado e obtido de informação importante. Primeiramente, que Beatriz tem um quadro de epilepsia, apesar de não gritar durante as crises: “É, essa (crise de) ausência já é da epilepsia, só que então eu acho que não é aquela crise de ataque (...) tá controlado pelo remédio”.

Com relação à sua condição de aprendizagem, Dona Margarida explica que falou para o médico “(...) eu vejo criança, quando eu levava ela na escola, muito pior do que ela e aprendia, sabe o jeitinho assim ... de pior assim, no jeito (...) e aprendeu, com dificuldade, mas aprendeu”. O médico, ao escutar sua história, enfatiza que “é porque ela tinha muita crise quando ela tava na escola”, e Dona Margarida lembra que realmente aconteciam crises na escola. O médico, segundo a mãe, continuou falando que “(a epilepsia) atrapalhou, mas se atrapalhou não foi da hora que ela entrou na escola, foi quando ela era bebê que deu”.

Durante a entrevista, Beatriz estava ao lado, como sempre muito calada e ouvindo a conversa. Quando solicitada sua impressão acerca da explicação do médico, responde: “Ah, tenho que concordar, né, num ... Aí ele, aí ele ... ah, esqueci (Risos)”. Para Dona Margarida, essa frase era reveladora da não atenção da filha com relação à explicação

do médico, no entanto sua Beatriz retruca, dizendo que “Ele tava falando do remédio, se eu tomo direito o remédio, se eu tomo os dois pra dormir, pra levantar...”. Sobre o diagnóstico médico, Beatriz acrescentou saber que tinha convulsão e não epilepsia, o que acabou reconhecendo e identificando como causa de sua não aprendizagem, apesar de enfatizar “que queria até aprender mais”.

Beatriz não sabe quando retornará ao médico e os exames que têm que fazer sempre; sua mãe é quem sabe. Beatriz não se lembra do nome do médico; sua mãe é quem lembra. Recorda que, durante a conversa, ele explica muitas coisas e, na hora de ir embora, sua mãe sempre lhe fala: dá a mão pro médico pra ir embora”.

Na consulta médica houve a prescrição de mudanças na medicação de Beatriz, envolvendo o aumento da dosagem noturna. Não obstante, Dona Margarida desconfia da necessidade dessa alteração: “É, eu dou um de quinhentos pra dormir e um de duzentos e cinqüenta pra ... durante o dia. Agora nem virar quase os olhos ela não vira, ela tá bem melhor do que ela era”. Lembra-se de que, há um tempo atrás, levou a filha até o médico do posto que lhe receitou, segundo Dona Margarida, um “remédio homeopático”, que não foi ministrado à Beatriz. Na bolsinha havia a receita desse médico neurologista, que não era homeopata, sendo possível verificar que o remédio era para ser feito em uma farmácia de manipulação.

A resistência à mudança da medicação e descrença em uma melhora do quadro da filha são explicadas por Dona Margarida da seguinte forma: “sabe, porque eu acho também (...) que esse problema da Beatriz pode ser hereditário”, e novamente menciona os familiares que têm algum tipo de problema de saúde, tentando aproximá-los do caso de Beatriz. Em outra entrevista, com o gravador desligado, uma nova explicação foi dada por Dona Margarida acerca da condição de sua filha. Revelou que sua conversão à igreja que freqüenta tem implicações diretas com o desespero provocado pelo quadro da filha, apesar de sua formação ser totalmente católica. Contou que, um dia, cansada de levar a filha a diferentes médicos, procurar ajuda em diversas religiões e benzedeiras, acabou indo à igreja com uma conhecida. Sentou-se e orou muito, fim de receber alguma luz na situação de sua filha, pois não agüentava mais; logo, acabou ficando emocionada, o que levou o pastor a se aproximar dela e perguntar sobre o motivo de tanto sofrimento. Após

ouvi-lo, se sentiu confortada e amparada; percebeu uma melhora do quadro, por isso tem muita fé e força para cuidar de Beatriz. Essa conotação religiosa aparece novamente ao relatar sua gravidez, após os quarenta anos, e sua preocupação em ter outro filho com problema. Todavia acabou abortando espontaneamente, aos três meses, período este de muita oração a Deus para que não tivesse mais tristeza, pois sua filha Beatriz já apresentava muitos problemas.

A percepção da mãe do quadro de epilepsia de Beatriz tem relação direta com a compreensão de sua escolarização. Parte do pressuposto de que a escola

“não dá educação pra ninguém. Educação vem do berço, aprender a ler e a escrever, né? Quem dá educação é os pais, mas eu acho que nem isso não tão fazendo mais, né? A escola não é pra dá educação (...)”

Na tentativa de entender a passagem da filha pela escola, sem que tenha aprendido a ler e escrever explana:

“ela (Beatriz) é só na televisão, quando ela vê uma notícia ela vem contar para mim. Quando passa nos lugar assim que a gente lê as coisas, quem sabe lê ...mas quem não sabe..., isso daí que eu acho importante da escola”.

Dona Margarida se percebe como uma mãe muito zelosa, acompanhando seus filhos nas tarefas da escola, participando das reuniões. Não se descreve como uma mãe que levava e largava os filhos para a escola cuidar. No entanto, com a situação de não aprendizagem de Beatriz disse: “eu cansei de ensinar ela a fazer o “A”, depois eu larguei, porque eu vi que não tinha jeito”. Os outros filhos nunca repetiram, e os dois mais novos não fizeram faculdade, como o mais velho, por falta de dinheiro. Por isso, explica que:

“... a Beatriz não sabe ler, então quanto menos tem estudo, eu acho que é mais ignorante, porque não sabe de nada, né? Porque os livros na escola que ele vai aprendendo, mesmo que ele não acompanhe numa escola sabendo lê, pega um livro já vai (...) se atualizando com o que tem”.

Dessa maneira, durante um diálogo difícil, na entrevista em que eu questionava o fato de Beatriz não poder ir sozinha até a casa da tia, que fica a no máximo três quarteirões, Dona Margarida alegava que Beatriz não saberia se defender:

“(...) ela não tá acostumada a andar na rua, se pára um carro e fala “vem aqui que eu vou te pedir uma informação”, pra começar ela não vai saber dar informação e ainda vai atender”.

Beatriz, ao ser convocada a responder, diz que não atenderia e diria: “Não quero papo com você não, pode ir embora”, e Dona Margarida, sem deixar alternativa, explica: “Ela não pode nem falar isso, não pode nem olhar, ela tem que ir embora”. Foi um diálogo de embate entre possibilidades e impossibilidades de Beatriz, sem que houvesse algum avanço na discussão. Outro momento dessa evidência decorreu da minha insistência para que Beatriz voltasse a estudar, e novamente a resposta exata ao embate não produtivo: “Sabe quando nós vamos ter mais um tempo pra mim cuidar dela, depois que a Priscila casar”. Não posso deixar de assinalar que os embates entre mim e Dona Margarida, durante as entrevistas, são reveladores mais do meu incômodo, diante da força das impossibilidades de Beatriz, do que o incômodo das entrevistadas, mãe e filha.

Apesar de todas as preocupações com a condição de Beatriz, há um outro lado que se evidenciou: a possibilidade de contar com alguns benefícios, pela comprovação da incapacidade de cuidar de si mesma, ou seja, por sua condição de inválida. Os documentos da bolsinha podem lhe garantir passagem gratuita no metrô e ônibus municipal; assim como, na condição de dependente da irmã, Beatriz pode se beneficiar também de todo atendimento médico oferecido a um funcionário da prefeitura.

No decorrer das entrevistas, como afirmado anteriormente, as falas de Beatriz sobre si e sua condição eram muitas vezes truncadas; no entanto não impediram que se recuperassem aspectos importantes sobre a vivência da exclusão escolar, decorrente da epilepsia, atrelada à condição de deficiente mental leve.

Com relação ao acompanhamento médico, recorda somente que consultou esse último neurologista, e o oftalmologista para fazer um par de óculos novo. Acerca de seu quadro de sintomas, convulsão e crises de ausência, descreve que, quando acontecem, tudo fica preto e parece durar muito tempo; recorda-se de que são freqüentes desde pequena, o que requer medicação diária. Sabe que tem que tomar um remédio na hora que acorda e outro na hora que dorme, não sabe citar o nome dos mesmos, como tampouco sabe ler o nome em suas embalagens; no entanto diferencia-os pelo frasco, layout das embalagens, e pelo formato e cor das cápsulas. Segundo Beatriz, a finalidade da medicação é “não virar os zóio”, sendo que as crises não são mais tão regulares: “Tem

vez que eu viro, tem vez que não, demoro pra virar”. Pouco esquece de tomar sua medicação, e quando, por ventura, acontece, seu pai a lembra, e Beatriz sempre avisa sua mãe que também precisa ser medicada nos mesmos horários, e esquece com regularidade. O controle dos sintomas, para Beatriz, está relacionado com a sua fé religiosa: “Eu pedi a Deus para não dar ataque nenhum na minha igreja”, pedido que foi atendido.