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Capítulo 3 – A Concertación chilena e a linha fronteiriça

3.1.4. Carta Capital: Liberal e populista

Em “O Brasil visto por eles e por nós” (26/4/00), o articulista de Carta, o historiador Nicolau Sevcenko, delineava um projeto político para o século 21, no qual ele exigia das antigas metrópoles europeias “medidas de democratização” nas ex- colônias latino-americanas. Para ele, a elite local não se importava com a situação de má-distribuição de recursos, injustiça social, destruição do meio ambiente, pois ela se espelhava nas “camadas dominantes da sociedade metropolitana como expressão de sua própria imagem”. Sevcenko entendia que esse caos político, econômico e social, resultante das desastrosas ditaduras, transformava ex-governantes “em párias, sujeitos a cortes internacionais de justiça para crimes contra a humanidade”, cujo exemplo marcante na virada do século era “a humilhação de Pinochet”. Com isso, ele enalteceu a nova ordem instalada em diversos países sul-americanos, como no Chile de Ricardo Lagos.

Em “Tempo de reflexão” (27/1/2010), Carta entendeu a vitória do direitista Sebastián Piñera como uma mudança na correlação de forças no subcontinente, pois “exige renovação da centro-esquerda”. Piñera venceu por que houve um “desinteresse popular por uma disputa política aparentemente incapaz de fazer diferença para” a vida dos eleitores. O enunciador criticou tanto a esquerda derrotada quanto a direita vencedora. A esquerda da Concertación foi acusada de comprometer-se com a herança econômica ditada por Pinochet – informação não compartilhada pelos demais veículos midiáticos –, e a direita da “Coalizão para a Mudança” reafirmou sua condição de umbilicalmente conectada ao partido do general, expondo à dúvida e ao medo a

capacidade administrativa do recém-eleito, mesmo diante de um currículo de empresário mais bem-sucedido do Chile.

As atribuições de Carta direcionadas a Piñera não exprimiram simpatia. O enunciador menosprezou o presidente chileno quando este “procurou mostrar-se como um executivo moderno e liberal”. “Procurar” não significa “ser”, mas Piñera era um executivo, detentor de um doutorado em Economia na Harvard, proprietário de companhias de telefonia, cartão de crédito, aviação, mídias e até mesmo de um clube de futebol, o Colo-Colo, de Santiago. Faltou à Carta interpretar os significantes “moderno e liberal”.

O fato de a mídia demarcar a alteridade, separando em seu discurso o Brasil dos demais países latino-americanos, ora com o intuito de erigir uma cultura da expectativa e da prudência, outras vezes da confiança, da sedução, do afeto e do fascínio, e outras ainda do medo e da rejeição em relação aos governantes dessas nações, demonstra que o Outro não é uniforme. Além do mais, os discursos midiáticos se ligam a certos imaginários desses líderes políticos, cujos governos sustentados por eles podem ser um risco à democracia ou necessários para a perpetuação e confirmação do ideal democrático defendido pelo Mesmo. De acordo com Steinberger (Op. Cit., p. 213), a mídia tem a capacidade de “fabricar” seus próprios “amigos”, bem como rotular depreciativamente seus “inimigos”. Nesse cenário político, enquanto poucos presidentes recebem carga valorativa positiva, outro grupo, mais numeroso, tem seu perfil configurado desfavoravelmente. Ao longo do tempo, não obstante a fidelidade aos partidos de direita e centro-direita e ao liberalismo, a mídia modifica o discurso sobre as figuras dos presidentes de acordo com

as ações e discursos desses governantes. Os enunciadores dos impressos fazem uso de diversos artifícios para construir diferentes visões de um mesmo acontecimento.

Depois do terremoto que abalou o sul do Chile, Carta elogiou os engenheiros e criticou os governos da

Concertación (Figura 30), anteriores a Piñera (“Prédios firmes, sociedade

frágil”, 10/3/10). “Os engenheiros civis do Chile estão de parabéns: na quase totalidade dos casos, suas construções mostraram-se capazes de resistir a um terremoto centenas de vezes mais intenso que o do Haiti”, mas “o Estado e a sociedade civil deixaram a desejar”. Para o enunciador, a “imagem de disciplina e eficiência é colocada em xeque”. O enunciador mencionou o problema e, em seguida, sua origem. A lentidão do governo em socorrer as vítimas e a falta de prevenção aos saques teve como culpa o “individualismo e concentração de renda”, culturas da Concertación herdadas do governo Pinochet.

Carta desdenhou a possibilidade de crescimento do Chile ao considerar “improvável uma guinada social ou econômica, até porque a Concertación não trouxe mudanças muito radicais em relação a Pinochet”. É bem verdade que Piñera se posicionou como um executivo moderno e liberal durante a campanha presidencial, cujas propostas foram chamadas pelo enunciador de “populistas” e “socialistas”, tais como a da “renda familiar mínima”, semelhante ao “fome zero” de Lula. Em suma,

Carta não visualizou perspectivas de mudança e retomada do crescimento sob a gestão do presidente Piñera. O enunciador desconfiou de sua capacidade gerencial pública e analisou o resultado das eleições como uma amostra do fracasso da Concertación devido ao descomprometimento com as demandas exigidas. A ausência de simpatia para com a figura de Piñera se mostrou uma constante da parte de Carta, ora tratando o presidente como Outro-adversário, ora como Outro-inimigo. Carta dissipou essa imagem somente depois do desastre com os mineiros, a ponto de chamá-lo de “herói” e não mais de “burocrata frio” (“Deus, o diabo e a Mina de San José”, 20/10/10).

3.2. Pelo estilo da Concertación e da Coalizão

A Latinobarómetro perguntou aos cidadãos de diversos países do continente se eles não se importariam “que um governo não-democrático chegasse ao poder se solucionasse os problemas econômicos” (O’Donnell, Op. Cit., p. 197). As respostas reveladas deveriam tirar o sono dos favoráveis à via eleitoral para se chegar à presidência, pois 53% dos entrevistados responderam positivamente, que abririam mão do direito à escolha de qualquer líder político em troca de ver suas demandas atendidas pelo novo governante, antidemocrático ou autoritário. A média mais alta ficou com os paraguaios (69%) e a menor com os uruguaios (31%). O Paraguai sofreu com uma

ditadura durante mais de três décadas e ainda não sanou o temor de futuros golpes e o distanciamento do autoritarismo.46 O Uruguai também amargou momento semelhante, com um período mais curto, o suficiente para eles rejeitarem a sustentação de tal possibilidade. O perturbador é verificar o Chile com 49% e a Costa Rica com 54%, pouco abaixo do Brasil (57%) e México (61%) e mais altas que a Argentina (43%). Justamente Chile e Costa Rica, que conseguiram estabilizar seus regimes com eleições livres e periódicas alternações no poder. Democracia não pressupõe a igualdade de pensamento entre as pessoas, mas a equivalência nos direitos. Mouffe (Op. Cit., pp. 55- 6) defende a democracia como uma diferenciação entre indivíduos e não como uma tentativa de transformar esses indivíduos em iguais. Para ela, devem-se respeitar as especificidades de cada cidadão.

Nas análises desenvolvidas, encontramos um discurso narrativo uniforme sobre a figura de Lagos na mídia brasileira. Lagos foi considerado civilizado em todos os veículos – em Carta, não encontramos referência direta ao presidente chileno nos períodos pesquisados. Em 2000 e 2005, Pinochet ocupou as manchetes dos cadernos internacionais, enquanto Piñera foi tratado com deferência por Veja, Folha e Estadão;

Carta chamou-o de populista. Carta percebeu no estilo de governar de Piñera a alteridade, o local de tematização das diferenças entre o “nós” e o “eles”. Veja, Folha e

Estadão detectaram nos estilos de governar de Lagos e Piñera a mesmidade, o local de tematização das semelhanças. Poderíamos afirmar que Lagos era o Outro-ausente e, Piñera, o Outro-enfatizado.

As invenções da mídia estabelecendo linhas fronteiriças, separando os lados do Mesmo e do Outro e determinando quem deve ser amigo, inimigo ou adversário não fazem parte de ações inesperadas, desprovidas de critérios. Resende e Ramalho (2006, p. 114) afirmam que diversificadas abordagens “de um mesmo evento” erigido pela mídia podem “ser um princípio para uma leitura crítica” envolvendo grupos diferentes, mesmo minorias em defesa de suas particularidades, nas “lutas hegemônicas”. Os enunciados erigidos seguem as ordens da rotina política, conforme as normas regulamentadas em cada veículo. Inventar é sinônimo de criar, que, por sua vez é sinônimo de nutrir. Todorov (2012, p. 20) fala em conceitos que “alimentam” a reflexão em torno de determinada tematização. Ao convocar seus públicos e tentar modalizá-los,

46 O presidente paraguaio Fernando Lugo sofreu o processo de impeachment, aplicado pelo Senado, em

22/6/2012, sendo destituído da liderança executiva do país. Diversos países consideraram o afastamento de Lugo como um “golpe de Estado branco”. Ou seja, o legislativo usou a Constituição para torná-lo incapaz de continuar à frente da presidência.

a mídia “nutre” sistemática e periodicamente seus leitores com o propósito de totalizar seu discurso.

Lagos e Piñera receberam atributos positivos de Veja, Folha e Estadão ao defenderem a solidificação da democracia e a estabilidade econômica do Chile (Quadro 11). Todavia, Piñera seria detratado por Carta, que o acusou de propostas populistas para o social. A palavra de ordem hegemonizada por Veja, Folha e Estadão convocou os enunciatários a enaltecerem a democracia da Concertación. Para Carta, tais mudanças não aconteceram conforme o discurso tematizado pelas demais mídias. Folha e Estadão concordaram com os estilos de Lagos e Piñera. Carta discordou. Somente os motivos do medo são comuns a todos os veículos: a ascensão da direita abriu espaço para o partido no qual Pinochet se afiliou.

Variáveis Veja Carta Capital Folha de

S.Paulo

O Estado de S. Paulo

Atributos Positivos Depreciativos

(Piñera) Positivos Civilizado e democrático (Lagos); negociador e democrático (Piñera) Positivos Palavras de ordem Pela Concertación e favorável à democracia Concertación não trouxe mudanças Pela Concertación e favorável à democracia Pela Concertación e favorável à democracia

Estilo Pela estabilidade

política Populista (Piñera)

Cortesia com opositores e disposição ao diálogo (Lagos); visão empresarial (Piñera) Diálogo com opositores Medo

Volta dos poderes opressores e de

direita

Partido de Direita Volta de Pinochet Volta de Pinochet Quadro 11

As percepções dos fazeres jornalísticos e seus efeitos sobre os leitores- enunciatários propiciam momentos de reflexão e de crítica à mídia. Criticar as ações midiáticas requer atenção, contraposição entre veículos, critérios de avaliação e capacidade de interpretar os discursos e suas intenções, assim como o devido conhecimento das fontes interlocutoras. Longe de tentar desvalorizar a mídia, as análises de suas produções oferecem alternativas de ângulos diferenciados de leitura, interpretação e oportunidade para a correção de direcionamentos.

Independente das caracterizações atribuídas ao Outro-presidente serem aprazíveis, ponderadas ou depreciativas, a mídia seleciona no processo de agendamento aquilo que lhe convém, e é preciso entender por que tudo isso se ajusta à agenda midiática, conferindo-lhe traço distintivo em afinidade aos seus interesses, sejam eles de natureza política, econômica, social ou algo além desse patamar. O que se configurou nessas leituras e análises do corpus foram os indícios de discursos programados com base nas agendas dos enunciadores, expressados por meio de palavras de ordem. Cabe ao leitor, conforme sustenta Alsina (Op. Cit., p. 294), assumir a identidade de crítico das mídias, pois esta condição se configura “a melhor garantia de um futuro para uma democracia mais sólida e um melhor uso dos meios de comunicação”. O modo pelo qual a mídia brasileira atua em defesa das garantias individuais e coletivas tem de ser revisto, a fim de evitar seu descrédito e a deslegitimação da democracia, de uma democracia pluralista, que se articule entre todas as particularidades.

3.3. Um olhar por cima do muro da fronteira midiática

Ao longo dos séculos, diversos povos erigiram muros e cercas, separando-os do Outro. Houve aqueles que derribaram muros para invadir ou fugir do Outro, e também se unir ao Outro. Os chineses construíram durante cerca de 1.700 anos uma muralha para impedir invasões estrangeiras, mantendo-os separados do Outro. Os romanos edificaram dois muros: um na Grã-Bretanha para bloquear as incursões dos “bárbaros” celtas do norte; e outro na Romênia, para impedir as hordas invasoras de povos eslavos e islamizados. Muitas cidades da Antiguidade e da Idade Média eram protegidas por muralhas. Mais recentemente, no século 20, com o objetivo de interromper a migração de pessoas para a Alemanha Ocidental, pró-Estados Unidos, o governo comunista da Alemanha Oriental, pró-União Soviética, construiu um muro em torno de Berlim. Caso similar acontece hoje na Cisjordânia, na qual os palestinos foram isolados em seu território por uma muralha erigida por Israel. O governo israelense constrói outro muro no Deserto do Sinai, fronteira com o Egito, com 250 quilômetros de extensão e até doze metros de altura, para impedir a entrada ilegal de africanos.

Não foram apenas os muros que separaram pessoas e civilizações. Leis e tradições culturais e religiosas alijaram determinados grupos de seus direitos, privilegiando a outros. Diante disso, de acordo com Santos (Op. Cit., p. 31), antagonismos criados, edificados e perpetuados pelos poderes hegemônicos do Ocidente

separaram o ocidental do não-ocidental, julgado primitivo, símbolo do atraso em comparação ao detentor do conhecimento científico e do domínio do Direito, o legalizado.47 Quem não se ajusta ao perfil das metrópoles europeizadas, na concepção de Chomsky (Op. Cit., p. 48), enquadra-se sob as circunstâncias de Estados foras-da-lei e, por extensão, fracassados. Tais Estados são avessos ao Direito das metrópoles por que suas lideranças desprezam as regras e as normas constitucionais e internacionais, cujas leis só se aplicam a “eles”, isto é, ao Outro. São fracassados devido à incapacidade de conceder segurança aos cidadãos. Por analogia, os interesses da mídia somados às pressões externas – política e econômica –, ao compromisso social e aos filtros presentes nas etapas de construção dos enunciados, determinam a criação de linhas fronteiriças. Essas linhas – ou muros – são estabelecidas conforme o Outro é caracterizado pelas paixões malevolentes que lhe são atribuídas.

Quando se dizia que o presidente Hugo Chávez não se ajustava à democracia, a mídia ignorava a possibilidade de haver no contexto da Venezuela demandas configurando novas características ao regime político e que dilatassem ou alterassem a compreensão de democracia. Os impressos brasileiros pesquisados erigem uma linha fronteiriça separando o Brasil democrático da América Latina hispânica assinalada como não-democrática. A designação de um “nós”, segundo Mouffe, pressupõe a existência de um “eles”, delimitados por uma “fronteira”:

A concepção que proponho é claramente diferente da liberal, bem como da republicana cívica. Não é uma concepção de cidadania segundo o gênero, mas também não é uma concepção neutra. Reconhece que qualquer definição de um “nós” implica a delimitação de uma “fronteira” e a designação de um “eles”. Então essa definição de um “nós” tem sempre lugar num contexto de diversidade e conflito (Mouffe, Op. Cit., p. 115).

A flutuação das linhas fronteiriças é explicada por Santos (Op. Cit., p. 41), o qual compreende a polissemia percebida entre os enunciadores quando “o outro lado da linha parece estar a expandir-se, enquanto este lado da linha parece estar a encolher”. Esse movimento das linhas fronteiriças aponta para a difusão do ilegal, da violência em prejuízo do legal, daquele que se encontra regular, sob a regência das normas sociais.

47 Para Vanderlei Dorneles (O último império, 2012, p. 68), na Europa do século 15 ainda vigorava o

conceito de “que o ocidente estava para além das colunas de Hércules”, isto é, a partir de Gibraltar em direção ao Atlântico, “onde o precipício se abriria diante dos navegadores”. “Ocidente” deriva do latim

occido, que significa “cair, morrer, sucumbir”. O Ocidente figurativizava, assim, a “morte” para os europeus da Idade Média.

Do espaço do Mesmo, percebe-se no Outro o que deve ser temido, menosprezado e rejeitado pela mídia, podendo representar, também, o avanço do discurso do Mesmo como modelo de quem se encontra do lado de cá e necessita de um retrato do lado de lá, no espaço topológico-político do Outro, para justificar suas ações.

Analisando o período das relações entre as metrópoles ibéricas e suas colônias americanas, entre os séculos 16 e 19, Boaventura Santos (2010) destaca os tempos de exploração como fases de tensão entre a apropriação e a violência. A apropriação e a violência se ajustavam às conquistas promovidas pelos impérios português e espanhol – estendendo-se tal compreensão à relação do Reino Unido, Holanda e França com suas respectivas colônias. Ao traçar um paralelo do colonialismo europeu com a atualidade, Santos também realça o constante movimento dessas linhas. Por analogia, transpomos essa metáfora para as relações dos enunciadores midiáticos e os enunciatários ao reportarem as temáticas a respeito dos presidentes do continente latino-americano e como isso afeta a percepção e o entendimento de democracia. O próprio Santos (Op.

Cit., p. 39) admite o deslocamento do conceito de “linha fronteiriça” ou “abissal”, ao argumentar que a realidade de séculos atrás “é tão verdadeira hoje como era no período colonial” e “o pensamento moderno ocidental continua a operar mediante linhas abissais que dividem o mundo humano do subumano”, ou, como afirmaria Todorov (2010, pp. 9-65), o mundo dos que praticam atos “civilizados” daqueles que executam ações “bárbaras”.

Assim como durante a Guerra Fria havia o Outro-soviético, tratado como inimigo da democracia, hoje as mídias constroem o percurso passional do medo com o discurso contra o Outro antidemocrático, influenciado pelo “fantasma” da perenização do peronismo – no caso argentino48 –, quando o discurso totalizante midiático é que contém características estranhas à democracia. Todorov (ibid, pp. 223-4) adverte que, se o Outro não receber tratamento equitativo, a democracia corre o risco de ser desqualificada como protetora dos ideais de liberdade, igualdade e direitos humanos. Se a mídia não abre espaço para todas as demandas, procede de modo semelhante àquilo que ela condena como antidemocrático. Ao não ouvir o Outro, a mídia se comporta autoritariamente, desrespeitando a igualdade de condições e o direito do Outro se manifestar, mesmo que ele venha a ser construído mais adiante como adversário ou inimigo.

As linhas fronteiriças que separavam o espaço do Outro-colonizado do espaço idealizado pelo Mesmo-metrópole determinavam, segundo Santos, diferenças nas mais variadas áreas do conhecimento da época, tais como a ciência, a filosofia e a teologia. Para Santos, devido às diferenças presentes na colônia (poderia se referir tanto à América como à África) em relação à metrópole (qualquer império europeu, como Portugal, Espanha, França, Reino Unido ou Holanda), esta percebia a sua identidade sob constante ameaça, pois tudo o que se referia ao Outro-colonizado era problemático:

A linha invisível que separa a ciência dos seus ‘outros’ modernos está assente (baseada) na linha abissal invisível que separa de um lado, ciência, filosofia e teologia e, do outro, conhecimentos tornados incomensuráveis e incompreensíveis por não obedecerem, nem aos critérios científicos de verdade, nem aos dos conhecimentos, reconhecidos como alternativos, da filosofia e da teologia. [...] A linha abissal invisível que separa o domínio do direito do não-direito fundamenta a dicotomia visível entre o legal e o ilegal que deste lado da linha organiza o domínio do direito. [...] Esta negação radical da copresença fundamenta a afirmação da diferença radical que, deste lado da linha separa o verdadeiro do falso, o legal do ilegal. O outro lado da linha compreende uma vasta gama de experiências, tornadas invisíveis, tal como os seus autores, e sem uma localização territorial fixa (Santos, Op. Cit., p. 34).

Fundamentado no fato de a metrópole usar de violência e apropriar aquilo que pertencia ao colonizado no território dele, do Outro, Santos (ibid, p. 37) disserta sobre o conceito de vazio jurídico. A invasão e pilhagem das terras indígenas e dos povos mais avançados na América se justificaram pela ilegalidade, pela ausência de normas jurídicas que poderiam condenar os exploradores e genocidas. Sob esse ponto de vista, os conquistadores aproveitaram o vazio jurídico para intimidar, escravizar e até eliminar o Outro, que era visto como estranho, diferente. As leis não favoreciam o colonizado, apenas o opressor. Esse vazio jurídico não era um espaço desprovido de significado. Havia sentido nas ações ilegais para os representantes da metrópole, o de que eles tinham o direito a todas as riquezas da terra, inclusive sobre a vida dos nativos, os proprietários até então. Havia sentido também para os colonizados, pois eles precisavam desenvolver a capacidade de sobrevivência, resistência e reação. A particularidade do Direito da metrópole se tornou hegemônica e universal na colônia, sobrepujando e desconhecendo as regras pertinentes aos nativos. Ao suturar seu discurso nesse espaço,

do ponto nodal, o colonizador se transformou no agressor que, gradativamente, iria afastar e negar a cultura do Outro e, sempre que julgasse necessário, extingui-lo.

A “impossibilidade da copresença dos dois lados da linha” é a característica mais importante do pensamento abissal, estruturado por Santos (Op. Cit., p. 32). O que se exclui faz parte da construção do Outro, o diferente, o inaceitável. O Outro também