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O Estado de S Paulo: Medo do fantasma populista

Capítulo 2 – O enquadramento da mídia do estilo kirchnerista de governar

2.2.4. O Estado de S Paulo: Medo do fantasma populista

Quatro dias depois da morte do ex-presidente argentino Néstor Kirchner, O

Estadão (31/10/2010) noticiou que “Fantasma de Kirchner atuará em 2011” (Figura 23). A explicação se encontrava no enunciado, logo abaixo do título: “Ex-presidente e a comoção causada por sua morte, na quarta-feira, devem exercer influência na estratégia para a eleição de outubro.” Segundo o enunciador, se não morresse, Néstor seria o natural candidato à presidência argentina. Agora, sem ele, restava ao Partido Justicialista confiar o futuro à presidente viúva Cristina Kirchner37 na esperança de obter o apoio da figura do marido morto.

37 Cristina venceu as eleições à presidência em 23/10/2011, tornando-se a primeira mulher eleita e reeleita

O enunciador divulgou periodicamente as batalhas entre a mídia e Cristina, acusada de planejar censurar a imprensa portenha desde que assumiu a liderança do país. O Estadão também vivia situação similar no Brasil ao ser impedido de fazer qualquer menção a Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney. O enunciador se opôs à continuidade do clã dos Kirchner à frente do governo argentino em sua batalha contra os grupos dos jornais

Clarín e La Nación. O Estadão fez o leitor querer esse saber a fim de que o medo do cerceamento da

liberdade de imprensa se acentuasse diante da presença “fantasmagórica” de Néstor em prol da candidatura de Cristina. As narrativas que evocam o medo, ou qualquer outra paixão, destacam a alteridade, mostrando quem é o Outro diferente, repelido como inimigo, e quem é o Outro que se encontra próximo à mesmidade (Franklin Silva, 2012).

Se o universo do Mesmo é o “campo discursivo do público de leitores”, como dizem Prado e Bairon (2007, pp. 251-2), esse espaço do Mesmo é o ambiente da produção midiática. Aqui se constroem as temáticas componentes da agenda dos veículos jornalísticos, fazendo parte do arcabouço político e cultural que mais se aproxima e se torna aceito por seus leitores. No entanto, a mídia determina as distâncias e cuidados a serem tomados de acordo com o afastamento estabelecido pelos leitores em relação ao Outro. Esse tem sido um assunto controverso, pois existe a possibilidade de a mídia delimitar essa fronteira ao agendar as temáticas, ou seja, é ela quem determina e constrói o afastamento ideológico do Outro. Tal construção determina como o Outro deve ser encarado, de modo reduzido, aceito ou enfatizado com caracteres de polaridade negativa. Prado e Bueno (Op. Cit., pp. 7 e 11) afirmam que “a ênfase da alteridade se dá traçando-se uma linha abissal”, deixando o “Outro maléfico”, ou inimigo, “para além da linha”. Se a alteridade é reduzida e o Outro deixa de ser “maléfico”, pode tornar-se “parceiro”, ou amigo, quando ocorre a diluição da “linha abissal”.

O medo de “fantasmas” argentinos foi reconhecido por dois interlocutores, o escritor Claudio Negrete e o historiador Daniel Balmaceda. Autor de Necromania:

história de uma paixão argentina, Negrete visualizou a conquista de um “espaço na cultura necromaníaca nacional” para Néstor, visto que “ele acaba de entrar para a

galeria dos ilustres mortos que a sociedade argentina se encarregará de manter vivo. Líderes mortos, carregando a saudade pelo passado, voltarão com força na campanha eleitoral do ano que vem” (2011). Tal perspectiva foi confirmada por Balmaceda, já que “os argentinos costumam ser muito dedicados à necromania, à veneração e utilização política dos mortos”, como Raúl Alfonsín, Manuel Belgrano, Juan Manuel Rosas e, principalmente, Evita e Juan Perón. Silva (Op. Cit., p. 12) sustenta que o tempo muda o pensamento do “nós” em relação ao Outro. Para ele, “a função tempo”, “trajeto que chamamos de temporalidade e cujo limite seria o desaparecimento, a morte, o deixar de ser, isto é, a alteridade como completa oposição”, modifica a relação entre indivíduos e o que ambos idealizam um do outro. Trata-se de uma ação performativa da parte do enunciador, segundo Ramaldes e Prado, estendida além do desejo de fazer saber.

Considerando que cada mídia constrói discursivamente a imagem dos políticos de modos específicos, incluindo o próprio confronto entre candidatos, sustenta-se o preceito semiótico de que o enunciador se insere como um dos atores presentes na cena do embate político, ao agir no sentido performativo: exerce uma prática política como observador-julgador, de modo que não se limita ao fazer saber, ou seja, ao ato de informar (Ramaldes e Prado, 2008, p. 168).

Balmaceda sublinhou o início desse costume nacional argentino no século 19, quando as datas festivas oficiais “começaram a ser marcadas pelos dias fúnebres”. O funeral de Alfonsín serviu para resgatar a imagem do partido da União Cívica Radical e lançar seu filho, Ricardo, como político. Em seus discursos, Cristina decorava o cenário com um retrato de Evita, a “protetora dos descamisados”, a “mãe dos pobres”, algo semelhante ao “pai dos pobres” atribuído ao ex-presidente Getúlio Vargas e, talvez, daqui para frente, ao ex-presidente Lula. O general Belgrano criou a bandeira argentina e o dia de sua morte passou a ser o dia da bandeira. A fim de resgatar o nacionalismo, Menem decidiu levar para o país os restos mortais do ex-presidente Rosas, 113 anos depois de sua morte. A proposta causou acirrados debates na tevê, “nos quais historiadores de lados opostos chegaram a trocar socos” ao vivo para todo o país. Nenhum desses ícones mortos supera a Perón, cujo túmulo foi até mesmo violado e suas mãos decepadas e furtadas. Sua figura motiva calafrios na mídia brasileira, pois carrega caracteres autoritários, antiliberais e messiânicos, perfis contrários à democracia

defendida pelas mídias. A morte de Néstor concedeu sobrevida à memória e aos ideais peronistas.38

Mouffe (Op. Cit., pp. 16, 17 e 115) alerta para as possibilidades de ímpetos nacionalistas ocuparem o espaço da democracia quando esta deixa de atender as demandas pluralistas da sociedade, reconhecendo “que qualquer definição de um ‘nós’ implica a delimitação de uma ‘fronteira’ e a designação de um ‘eles’”. De adversário, o Outro passa a ser o inimigo a ser evitado, combatido e, se possível, distanciado ou extinto, e isso ocorre quando o Outro revela atitudes consideradas pela mídia como antidemocráticas.

A família Kirchner contemplava o Brasil como concorrente e não como parceiro, tal qual o mentor do projeto político da Grande Argentina, Juan Perón (1943-55). O líder argentino idealizava a nação competindo pela hegemonia na nova ordem global, mas isso somente teria se tornado realidade se o governo brasileiro de Vargas tivesse caído, porque Perón pretendia formar “um bloco de países pró-nazistas sob o comando da Argentina” (Goñi, 2004, pp. 52-3).39 O enunciador de Veja jamais promoveu a aceitação dos presidentes da família Kirchner. Apenas a Folha chegou a afagar Néstor por ocasião de seu mandato, quando retirou a economia argentina do coma. Todos os demais atributos com polaridade positiva se manifestaram quando se tratou de Carlos Menem, o que não se repetiu em Cristina,40 a única cujas mídias ainda provocam medo e rejeição.

Os enunciadores constroem suas narrativas a partir de um contrato comunicacional entre ele e o enunciatário, propondo-lhe uma modalização. Sob esses contratos, conforme Prado (2009), “a mídia mapeia valores e modaliza para os leitores os modos de saber, fazer e ser, em diversas zonas temáticas”. Para mostrar ao enunciatário que o estilo da presidente argentina governar era um risco à democracia, o enunciador construiu um contrato em que havia percurso passional do medo ao afirmar

38 O colunista de Roberto Pompeu de Toledo, de Veja (“Casca de banana”, 16/1/2013, p. 102), afirmou

que na Argentina “Perón, como se sabe, vive; Evita também vive; e, mais recentemente, Néstor, na contramão dos imperativos biológicos, também vive. Fora da política, Gardel não só vive como canta cada vez melhor”. Trata-se de uma tradição hispânica, na qual “El Cid Campeador, depois de morto no campo de batalha, teve o corpo grudado no cavalo e assim continuou a liderar os seus e a espantar os inimigos com a fama de mais valente e mais temível dos guerreiros”.

39 Depois da ascensão de Perón (1946-55), oficiais nacionalistas, políticos conservadores e religiosos

católicos tentaram transformar a Argentina no contraponto aos Estados Unidos na América do Sul (Holdorf, 2009, pp. 83-91). Uki Goñi (2004, p. 34) contrasta o “primo” cristão protestante materialista do Norte ao projeto argentino de potência católica hispânica do Sul.

40 Após a reeleição, em 23/10/2011 (Folha de S. Paulo), os saudosistas argentinos começaram a chamar

ser Cristina a extensão do marido, não obstante os esforços para conservar a individualidade. Esse personalismo mostrou indícios de perpetuidade dos ideais peronistas.

Analisando as sensações representadas nas narrativas dos enunciados de temáticas policiais em O Globo, Letícia Matheus (2011, p. 61) afirma que “o medo do outro é um dos pavores mais recorrentes da história”. Os Kirchner provocaram o repúdio do enunciador, encarnando ora o Outro-adversário, ora o Outro-inimigo, adversário competitivo no campo político e econômico, inimigo a ser abatido; não pelo mesmo motivo que Hugo Chávez era rechaçado. A inabilidade política do Outro- argentino suscitou o medo do ressurgimento do populismo peronista, pois se tornou imprevisível ao ser desafiado por causa do temperamento inconstante, tanto de Néstor quanto de Cristina.

Para fixar a compreensão de ponto nodal, Laclau (Op. Cit., pp. 273-4) descreve a situação política argentina anterior à volta do ex-presidente Perón do exílio (1955-73), na Espanha, e no percurso de sua última e curta presença na Argentina (1973-74), pouco antes de sua morte. Três elementos se destacavam no campo político, interpretando os discursos segundo as próprias conveniências de Perón. Sindicalistas de direita, juventude peronista e “formações especiais” não mantinham relacionamento. Cada um tentava projetar seus discursos, amostras de suas particularidades, acima do outro buscando a hegemonia política. Os sindicalistas eram inimigos da juventude que, por sua vez, era inimiga das “formações especiais”. Tais “formações” eram grupos paramilitares que originaram os Montoneros,41 chamados pelos militares e pela mídia conservadora de organizações terroristas. A única equivalência encarnada por eles, que os agregava politicamente, “era a identificação comum com Perón como líder”. A palavra de ordem em defesa do “peronismo” passa a funcionar em posição de ponto nodal, como resultado da articulação dos discursos dos sindicalistas, da juventude e dos paramilitares. Nesse caso, o peronismo representava a cadeia de equivalências, na qual suas particularidades se dissolviam enquanto emergia a totalização hegemônica figurativizada e encarnada na liderança de Perón. Este aspecto pode ser compreendido no texto enunciado pelo historiador Luis Romero:

41 Guerrilha armada que atuou na Argentina entre 1970 e 1979, desarticulada pelo regime militar

instalado no país em 1976. Mario Firmenich é seu mais importante fundador, ainda vivo, atuando como professor da Universitat Roviri i Virgili, na Espanha. O termo espanhol “montoneros” também se aplica aos covardes que se unem para lutar em grupo por uma causa, incapazes de qualquer ação individual.

Perón consolidava sua liderança com a capacidade de incluir a todos os que invocassem seu nome, dos jovens revolucionários aos sindicalistas, dos políticos provinciais mais conservadores aos grupos de choque de extrema direita. [...] Dentro da tradição do peronismo, a mobilização nas ruas e a concentração na Plaza de Mayo, lugar da representação mítica do poder, constituíam a expressão da força popular e da esfera onde o líder captava os impulsos do povo (Romero, 2006, pp. 191-3).

Ao examinar a política argentina das últimas duas décadas, perceberam-se diferenças que caracterizaram cada um dos presidentes do Partido Justicialista: Carlos Menem (1989-99), Eduardo Duhalde (2002-3), Néstor Kirchner (2003-7) e Cristina Fernández de Kirchner (desde 2007). Contudo, pode-se afirmar ser a ideologia peronista o cimento que os manteve unidos. Cada um deles se comportou como “o corpo que encarna uma totalidade inalcansável” (Laclau, Op. Cit., p. 95), hegemonizando-se, ou seja, preenchendo o vazio do ponto nodal. De modo análogo, as mídias também transformaram suas narrativas em um ponto nodal ao detratar o casal Kirchner, principalmente Cristina, construída pelo enunciador como o Outro-inimigo.

A fim de chegar a essa condição, de acordo com Prado (2009), “a mídia busca tornar o leitor competente para” perseguir valores. O enunciador estabelece estratégias para seduzi-lo com valores modais, tais como: “dever, poder, querer e saber”. Tais valores definirão sua posição na sociedade, as vitórias e o consequente sucesso ou as derrotas e o resultante fracasso.

2.3. Separando o Brasil dos argentinos

Os tratamentos dispensados pela maior parte da mídia impressa brasileira deixam nítida a existência de um muro divisor entre aquilo que interessa aos anseios da mesmidade liberal e as figuras que constroem a alteridade crítica. Os enunciadores das mídias aceitam, enfatizam ou reduzem as figuras presidenciais, aproximam ou distanciam-se de seus discursos, interpretando-os em consonância às políticas editoriais dos grupos jornalísticos. Cada olhar diferenciado se complementa às perspectivas discutidas até aqui. As paixões modalizam os sujeitos-enunciatários para eles quererem ou não ter os presidentes como representações de seu imaginário de acordo com os efeitos de sentido percebidos nas narrativas. “Querer ter” e “não querer ter” são condições apresentadas pela mídia aos leitores.

As características atribuídas aos presidentes, as decisões seletivas do publicável ou não, a separação entre quem deve ser considerado, ou tratado, como do lado do Outro ou do Mesmo, o enquadramento determinado pela passionalização e a construção de estereótipos, ajustam-se às conveniências midiáticas na demarcação de uma linha fronteiriça entre o Brasil e os países latino-americanos. Essa mídia demarcadora de fronteiras quer salientar a superioridade do Brasil no cenário latino-americano. Ela não quer contemplar do lado de cá o diferente que ameaça a democracia do lado de lá. Ela também não quer deixar de evidenciar os atributos positivos que se moldam à mesmidade.

A democracia se entende como significante hegemônico quando se totaliza nos discursos – da mídia, dos políticos, dos empresários, dos intelectuais, etc. –, posicionada em ponto nodal. Néstor e Cristina Kirchner foram construídos ao longo das narrativas com atributos que negam o estilo democrático de governar. Para Veja, Folha e Estadão, Néstor era autoritário. Apenas Carta o tratou como carismático. Por sua vez, Cristina foi considerada autoritária e antidemocrática pelos três detratores de Néstor, mas Carta atribuiu-lhe fragilidade (Quadro 6).

Mídias

impressas Como Néstor foi construído Como Cristina foi construída

Folha de S.Paulo Autoritário Autoritária e antidemocrática

O Estado de S.

Paulo Autoritário e personalista Autoritária e antidemocrática

Veja Autoritário e populista Antidemocrática e autoritária

Carta Capital Carismático Frágil

Quadro 6: Como os Kirchner foram construídos.

Somente Carta construiu Néstor como o Outro-amigo. A Folha tratou-o com reservas e desconfiança, considerando o presidente argentino o Outro-adversário, enquanto que, para Veja e Estadão, ele era o Outro-inimigo. Tratamento unânime foi dispensado à presidente Cristina, determinada como o Outro-inimigo das mídias. Cristina Kirchner foi o Outro-enfatizado como maléfico pelas mídias (Quadro 7). Para a

Folha, Néstor foi o Outro-reduzido e tolerável em um primeiro instante de seu governo, para mais adiante a ser o Outro-enfatizado como maléfico, inclusive por Veja e Estadão.

Já para Carta, Néstor foi o Outro-aceito e encarnado, o menos perigoso à mesmidade (Quadro 8).

O Outro-Cristina Kirchner Folha de S.Paulo Inimigo, enfatizado como maléfico

O Estado de S.

Paulo Inimigo, enfatizado como maléfico

Veja Inimigo, enfatizado como maléfico

Carta Capital Inimigo, enfatizado como maléfico Quadro 7

O Outro-Néstor Kirchner

Folha de S.Paulo Adversário, reduzido e

tolerável/Enfatizado como maléfico

O Estado de S.

Paulo Inimigo, enfatizado como maléfico

Veja Inimigo, enfatizado como maléfico

Carta Capital Amigo, aceito e encarnado

Quadro 8

Em sua sugestiva sessão “Nós e o Mundo”, o enunciador de Carta esboçou um perfil da situação política no continente latino-americano. A matéria “Continente desgovernado: América Latina – A soberania dos capitais esvazia a política e fragiliza governos” (4/5/05) denunciou o caos nos países com democracia menos solidificada e exaltou os governos que optaram por rumos diferentes aos determinados pelos Estados Unidos. A palavra de ordem era o enaltecimento da democracia, mas não aquela democracia cujo pressuposto mais relevante era a simples existência de eleições. A democracia referendada pelo enunciador de Carta privilegiou o governo no qual se atendem diferentes demandas. Duas situações foram expostas no enunciado: uma criticando governos eleitos, mas descompromissados com a democracia, e a outra salientando governos criticados pelos norte-americanos como antidemocráticos, mas eleitos e com propostas que se estendem a outras demandas. Carta redefiniu a fronteira amigo-inimigo, mostrando as novas formas que preencheram o espaço político esvaziado.

Se a tentativa de definição de um “nós” implica na existência de um “eles”, então a presença de uma fronteira separando o “nós “ do “eles” resulta na distinção identitária entre amigo e inimigo. Para Mouffe (Op. Cit., p. 14) é preciso “redefinir a fronteira política entre amigo e inimigo”. O fato de o inimigo da democracia, o comunismo, ter sido derrotado ao final dos anos 1980 com o esfacelamento da União Soviética, tornou o significado de “democracia” indefinível, pois a sua indeterminação resgatou antagonismos religiosos e étnicos em diversas regiões do planeta.

Variáveis Veja Carta Capital Folha de

S.Paulo O Estado de S. Paulo Atributos Depreciativos Positivos (Néstor) e Depreciativos (Cristina) Positivos (Néstor) e Depreciativos (o casal Kirchner) Depreciativos Palavras de ordem Democracia e desenvolvimento brasileiro incomodam os argentinos Esperança venceu o medo Argentinos não concordam com liderança brasileira no subcontinente Argentinos consideram o Brasil um concorrente

Estilo Populista, disposto

ao confronto Indefinido Populista

Populista, antidemocrático Medo Perpetuidade do kirchnerismo, ameaça à democracia Depressão econômica Ameaça à democracia e à imprensa Ameaça à democracia e perpetuidade do peronismo Quadro 9

Néstor e Cristina Kirchner, ambos eleitos pelo voto das massas, seguiram o perfil tradicional de que basta haver o sufrágio universal para caracterizar uma nação como democracia. Apesar de aparentarem ter sido vítimas de opositores internos aos seus governos, Néstor e Cristina foram o Outro cujos atos se refletiram na reação de determinado grupo político e de cidadãos descontentes por não terem suas demandas apreciadas pelos governantes. Néstor recebeu atributos positivos de Carta e Folha quando colocou em prática o plano de recuperação econômica do país. No entanto, Cristina sempre foi depreciada pela mídia brasileira devido ao confronto que manteve com as empresas jornalísticas que lhe fizeram oposição. Até mesmo Carta a atacou,

chamando-a de “bipolar”. Nos demais veículos, encontraram-se palavras de ordem (Quadro 9) dando conta que os argentinos não assimilaram a democracia e o desenvolvimento brasileiros ao discordar da liderança do Brasil na América do Sul e tratá-lo como concorrente, e não mais como um parceiro político e econômico. Veja,

Folha e Estadão erigiram narrativas que convocaram os leitores ao medo dos governantes argentinos, representado pela possibilidade de perpetuidade do peronismo no poder e o reflexo da ameaça à democracia, advinda dos embates contra a mídia.

O medo do Outro ameaça transformar o “nós” em “bárbaro”. Todorov (2010, pp. 14-5, 31-3 e 194) chama o Mesmo de “bárbaro” quando este vê barbaridade no Outro. “Bárbaro” é o nome do Outro quando não o entendemos e não o aceitamos. O “bárbaro” de Todorov é “todo aquele que não reconhece a plena humanidade dos outros”, o oposto de “civilizado” e antagônico ao Mesmo. Ao estimular o afastamento do Outro- presidente, a mídia quer repeli-lo como “bárbaro”. De mãos dadas, medo e rejeição se entrelaçam quando se trata de caracterizar negativamente a figura do Outro:

A civilização é um horizonte do qual podemos nos aproximar, enquanto a barbárie é um fosso do qual tentamos nos afastar; é impossível que uma ou outra venha a confundir-se, integralmente, com seres particulares. Os atos e as atitudes é que são bárbaros ou civilizados, e não os indivíduos ou os povos (Todorov, ibid, p. 33).

De acordo com a caracterização da paixão dominante, Todorov (ibidem, pp. 13- 4) separa os países em quatro grupos. O primeiro é o do “apetite”, o segundo é do “ressentimento”, o terceiro é o do “medo” e o quarto é o da “indecisão”. Os países do “apetite” marcaram sua trajetória pela exploração e pelo consumo, e Todorov aposta que o Brasil fará parte, em breve, desse grupo. Folha, Estadão e, principalmente, Veja percebem e discursam em nome dessa liderança continental brasileira, ou seja, desse “apetite” de liderança. Entre os países do “ressentimento”, encontram-se aqueles espoliados pelas nações dominantes, colonizadoras, cujas ações tiveram como consequências a humilhação. O ressentimento se faz presente, inclusive, em vários países da América Latina. Todorov não especifica, mas os paraguaios têm mágoa e desgosto pelos sofrimentos impostos pelo império brasileiro por ocasião da Guerra do

Paraguai;42 equatorianos e peruanos vivem se engalfinhando por causa de um pequeno, mas rico território de fronteira; bolivianos protestam contra os chilenos porque almejam uma saída para o Oceano Pacífico e isto lhes é impedido; chilenos e argentinos disputam esporadicamente o Canal de Beagle, ao sul do continente; colombianos