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Capítulo 1 – O enquadramento da mídia do estilo chavista de governar

1.1.3. Folha de S.Paulo: Protótipo do comunismo

A Folha tem uma proposta de agendamento favorável à democracia liberal. Esta assertiva se apresenta em sua luta pela liberdade de imprensa e de combate aos regimes considerados autoritários na América Latina, caso do presidente Hugo Chávez. Folha mantém a Editoria Mundo no primeiro caderno, logo depois da editoria de política, chamada Poder. O número médio de páginas contendo os enunciados internacionais é de quatro, intercaladas por outras quatro com anunciantes. A porcentagem do espaço destinado aos assuntos latino-americanos é de apenas 15% em média. As colunas de notas se destinam a outras regiões do mundo, raramente privilegiando a América Latina. As reportagens e notícias do continente são pautadas para os jornalistas da redação ou para os contratados – chamados de free lancers –, deixando outros assuntos para serem selecionados entre os despachos das agências noticiosas internacionais. Shoemaker e Vos (2011, p. 43) consideram as “informações obtidas em primeira mão” como “mais vívidas do que aquelas obtidas em segunda mão”, ou seja, entre o fato e o leitor, os enunciados terão de passar necessariamente pelos filtros dos enunciadores das agências e do jornal. Na maior parte das vezes, a opinião emerge nos textos de articulistas da

Folha, como Clóvis Rossi, membro do Conselho Editorial. Nas duas últimas semanas de 2010 (20 a 31/12), dentre onze edições, cinco artigos apareceram redigidos por convidados, ou colaboradores, quatro brasileiros e uma professora universitária de Buenos Aires. Na Folha, as matérias continentais conquistam destaque na disposição gráfica, não obstante a pouca quantidade. Em determinados momentos, elas se posicionam acima dos assuntos gerados nos Estados Unidos e na Europa.

Pela leitura dos textos, “democracia” passa a ser compreendida como uma forma de luta contra o autoritarismo, de denúncia contra a insegurança, de anseio pela contínua liberdade de imprensa e de participação da sociedade nos destinos dos governos. “Democracia” é a bandeira ideológica da política editorial do enunciador. Em 2005, na narrativa da reportagem “Lula elogia Chávez e firma parcerias de US$ 2 bilhões” (15/2), o enunciador não se referiu diretamente a Chávez, mas fez uso do interlocutor Lula para enaltecer o compromisso do presidente venezuelano, “a quem elogiou pelo ‘firme compromisso com a democracia’”. Não é a Folha que o considerava democrata, mas o presidente brasileiro. Ao lado da reportagem, seguem as colunas Toda Mídia, de Nelson de Sá, noticiando as relações militares entre Lula e Chávez, observadas atentamente pelos Estados Unidos; e Deu no NYT (The New York Times), que

apresentava um resumo da reportagem do correspondente Larry Rohter,25 crítico e desafeto de Lula, denunciando o assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang. Ao noticiar Chávez em 2010, Folha não considerou o governo venezuelano como uma democracia, dispondo-se a denunciar as medidas do presidente como dispositivos para consolidá-lo no poder à custa da censura à mídia, de limitações jurídicas aprovadas contra os partidos e empresários opositores, de desapropriações de terras, imóveis e universidades, e de estranhas, mas não comprovadas ligações com os guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.26 No ponto nodal que se formou em alguns discursos que competem para totalizar um campo, Chávez aproveitou para redesenhar um novo projeto para a Venezuela, esclarecido por Cavarozzi:

Na página que tinha ficado em branco, tanto de uma perspectiva institucional quanto de modelo de sociedade, Chávez foi desenhando um novo projeto social e político no qual combinou, pela primeira vez, diversas fórmulas, algumas resgatadas da velha política latino-americana: apelar para os mecanismos de democracia direta, o chamado socialismo do século XXI, a grande pátria bolivariana, o personalismo e a ideia da união do povo e das Forças Armadas (Cavarozzi, Op.

Cit., p. 29).

A preocupação do agendamento da Folha em defender aquilo que entende como democracia liberal se ressaltou nas matérias “Nas comunas, Chávez cria sua utopia” e “Para opositor, projeto é ‘protótipo do comunismo’” (19/12/10, p. A16). Expressões que validaram a palavra de ordem se posicionavam ao longo dos enunciados para mostrar que a “democracia” estava sendo derrotada na Venezuela e o país rumava para o comunismo, portanto, na direção contrária à democracia. À primeira vista, elas se tornaram visíveis em fontes tipográficas diferenciadas dos textos, em forma de títulos, legenda, intertítulos, olhos e linha de apoio.27 Os enunciados “Nas comunas, Chávez

25 A respeito dos textos jornalísticos do repórter do NYT e suas estratégias adotadas para questionar ou

“criar representações brasileiras”, ver PAGANOTTI, Ivan. Pelos olhos de um observador estrangeiro: representações do Brasil na cobertura do correspondente Larry Rohter pelo New York Times (Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação) – USP, 2010.

26 Em BETANCOURT, Ingrid. Não há silêncio que não termine: meus anos de cativeiro na selva colombiana. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 514, a ex-candidata à presidência da Colômbia descreve Chávez como “o único que podia falar com as Farc”, a fim de negociar a libertação dos sequestrados.

27 Expressões jornalísticas referentes a elementos textuais. Linha de apoio: frase em destaque logo abaixo

do título. Olho: pequeno texto que antecede um grande texto, ou texto em destaque com uma frase ou expressão que resume a essência da matéria. Intertítulo: ou entretítulo, pequeno título colocado no meio do texto, a cada 15 ou 20 linhas, funcionando como pausa e maior leveza para o arranjo gráfico.

cria sua utopia”; “Unidades territoriais ‘pós-capitalistas’ são a nova aposta do presidente venezuelano para concentrar poder”; “Residência que abriga comuna” faz parte do conjunto de “unidades criadas pelo presidente”; O projeto das comunas “visa ampliar experiência dos populares conselhos comunais”; “A palavra comuna está espalhada por todo lugar e, se depender do presidente Hugo Chávez, será assim por toda a Venezuela”; “Bom dia, camarada. Mais um dia para buscar o pão e para se organizar o processo revolucionário”; “Presença de Che... jovens que se dizem inspirados em Che Guevara”; e “Para opositor, projeto é ‘protótipo do comunismo’”, eram expressões encadeadas em que sujeitos buscavam objetos de valor, alertando o enunciatário quanto aos riscos que o governo da Venezuela representava para a democracia. A palavra de ordem é uma delegação que mobiliza o destinatário para uma ação. Segundo Mendes (Op. Cit., p. 289), as mídias venezuelanas construíam rótulos, impondo ao governo Chávez atributos como “populista”, “caudilhista”, “autoritarista”, “fascista”, “além de outras variações preconceituosas”. Para a mídia e o empresariado da Venezuela, o presidente representava “uma ameaça à ‘democracia’ e à ‘liberdade’, valores absolutos reivindicados sem qualquer reflexão sobre seus conteúdos reais”. Em “Empresários reprovam Chávez” (19/5/00), o enunciador afirmou que o modelo econômico chavista foi reprovado por 78% do empresariado venezuelano. Tal contrariedade se revelou na fala do principal adversário de Chávez, Francisco Arias Cárdenas: “Dar mais tempo a Chávez é prolongar a agonia do país.” Por se tornar um significante vazio, essa democracia condiciona a emergência de novas forças no cenário político.

A fronteira política que surgiu depois da Segunda Grande Guerra (1939-45) dividia dois espaços, o da democracia e o do comunismo, um representado pelos Estados Unidos, outro pela União Soviética. Com o esfacelamento do império soviético (1991), a democracia deixou de ter o comunismo como o Outro-inimigo, transformando-se na totalidade idealizada pelos norte-americanos, seus principais articuladores durante a Guerra Fria. Segundo Mouffe (Op. Cit., p. 14), a democracia precisa ser redefinida, a fim de estabelecer uma nova fronteira político-ideológica. Todavia, ao se tornar hegemônica, a democracia corre riscos:

A ausência de uma fronteira política, longe de ser um sinal de maturidade política, é um sintoma de um vazio que pode pôr em perigo a democracia, porque esse vazio proporciona um terreno que pode ser ocupado pela extrema direita para articular novas identidades políticas antidemocráticas. Quando faltam as lutas democráticas, o seu lugar é tomado por outras formas de

identificação, de natureza étnica, nacionalista ou religiosa (Mouffe, Op. Cit., pp. 16-7).

Ao funcionar a democracia como ponto nodal desse liberalismo globalizado, ao redor dela circulam forças que podem, em algum momento, preencher esse espaço. A hegemonia da “democracia”, quando totalizada pelo discurso midiático, busca universalizar a identidade entre todos os elementos, promovendo seu enaltecimento ao mesmo tempo em que patrocina a hostilidade ao Outro, seja ele adversário ou inimigo, como foi o caso do comunismo. Enquanto adversário, ele é tratado como não-democrata – ou até mesmo como adversário democrata –, alguém que não se ajusta às expectativas geradas pelo discurso hegemônico. No entanto, como inimigo, o Outro é visto pelos elementos midiáticos como antidemocrata, opositor do discurso hegemônico, sublinhando que “a equivalência é precisamente o que subverte a diferença, de maneira que toda identidade é construída dentro de uma tensão entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência” (Laclau, Op. Cit., p. 94). Enquanto as diferenças permanecem na condição da particularidade, a mídia salienta apenas a equivalência entre seus elementos, aquilo que se torna de interesse comum, como a democracia liberal.

O enunciado “Nas comunas, Chávez cria sua utopia” descreve a opinião de dois militantes, em relação ao modo pelo qual o projeto das comunas se desenvolve, o que são os conselhos comunitários, os benefícios aparentes, as críticas e as conexões com o marxismo. No enunciado “Para opositor, projeto é ‘protótipo do comunismo’”, três fontes opositoras ao governo são mencionadas e duas favoráveis ao chavismo. O enunciado “Nas comunas, Chávez cria sua utopia” tem como ilustrações a imagem de uma comuna, um quadro explicativo do que são as comunas venezuelanas e uma foto de Chávez. Esse quadro é um mapa

cognitivo que propõe ao enunciatário conhecer os riscos da criação dessas comunas. Ao descentralizar a administração, Chávez abriu mão de prefeituras e governos estaduais, cujos executivos poderiam se tornar potenciais forças políticas opositoras.

Ao centro da primeira imagem

militar vermelho e sua mão direita à testa saúda em sinal de continência quem olha para sua imagem, lembrando que ele era tenente-coronel do exército e o sonho de construção de uma nova sociedade se aproximava e somente poderia se concretizar caso houvesse apoio nas eleições. Abaixo, a solicitação “Vota PSUV” apelava para o voto no partido governista. Na parte alta do cartaz, a frase estimuladora aos eleitores: “A la Victoria!”. A segunda imagem trazia Chávez com blazer verde sobre a camiseta vermelha. Ele estava com as mãos unidas, como se estivesse pedindo atenção, um favor ou explicando algo, no caso, as vantagens das comunas.

O início do enunciado “Nas comunas, Chávez cria sua utopia” destaca o texto de abertura do programa de conteúdo chavista “Aula Comunal”, da Rádio Arsenal, emissora que colabora com o governo. No programa, ressaltam-se dois trechos falados pelo primeiro interlocutor: “Bom dia, camarada” e “organizar o processo revolucionário”. Quem saudava seus companheiros como “camaradas” (do russo

tovarichtche) eram os comunistas do Leste europeu, principalmente da União Soviética, o Outro-inimigo dos Estados Unidos e da democracia. O enunciador da Folha tem as pistas que o fazem desconfiar da opção política de Chávez. Laclau (Op. Cit., p. 208) acredita que “o totalitarismo, ainda que se oponha à democracia, emergiu do terreno da revolução democrática”, revolução esta baseada no atendimento às demandas. Não há relação, segundo Laclau (ibid, p. 158), entre “demandas democráticas” e um “regime democrático”. As demandas refletem os anseios de quem se sente excluído do sistema.

Ao longo dos textos não existe espaço para interlocutores renomados defendendo os novos projetos do governo, apenas as falas de opositores, estes sim personalidades influentes no cenário venezuelano: o governador Henrique Capriles, de Miranda, e o prefeito Emilio Graterón, de Chacao. Dois locutores e uma cidadã beneficiada pelo programa das comunas depõem em apoio a Chávez. Do primeiro locutor, destaca-se apenas sua saudação aos ouvintes de uma emissora chavista. Do segundo locutor, o enunciador da Folha selecionou uma crítica aos chavistas, que não pretendiam preparar outro líder para substituir o presidente, mas escolheram continuar as disputas internas do partido e “preferem o Chávez messiânico, paternalista”. Para Pakkasvirta e Teivainen (1997, pp. 9, 14 e 17), o projeto chavista resgatou “a utopia do libertador Simón Bolívar da unidade do continente”, reforçando o ideal da “irmandade hispânica”. Ao leitor da Folha vale a advertência para se preocupar com a deterioração da democracia na Venezuela e essa questão pode se alastrar para dentro de outras fronteiras, inclusive a brasileira. A interlocutora Maria de Briceño, de 67 anos,

moradora na comuna Panal 2021, aponta as vantagens das comunas em relação ao custo de vida, segundo ela, 50% menor que em outros lugares. As comunas são organizações políticas formadas por vários conselhos comunitários de um determinado território, chamadas também de “Estado Comunal”. Ainda em construção, Panal 2021 é vigiada por câmeras. A data inclusa no nome da comuna indica que o presidente não pretendia arredar os pés do palácio tão cedo, o que não aconteceria em uma democracia que privilegiasse eleições periódicas e renovadoras do quadro político, como as defendidas por O’Donnell (Op. Cit., pp. 27-8).

Outra abordagem das conceituações sobre democracia na América Latina tem pareceres muito próximos aos defendidos por O’Donnell e Mouffe. É o caso de Rincón e Magrini (2010, p. 97), que percebem nos governos latino-americanos, em geral, duas concepções. A primeira, mais tradicional, salienta a eleição como a principal característica de uma democracia. A segunda estabelece a democracia como “um conjunto de valores e crenças que são aceitos por todos”. Entendemos que não existem valores aceitos por todos e isso não define a democracia. Alcança-se a hegemonia quando se é aceito pela maioria. O foco em eleições livres, amplas e irrestritas é compartilhado por O’Donnell. Já a segunda concepção, conecta-se mais à democracia radical sustentada por Mouffe (1996). A princípio, pode-se entender que a aceitação de valores e crenças a todos seja mais propícia a um regime despótico. Rincón e Magrini descrevem quais são esses valores e crenças:

Respeito aos direitos humanos, exercício da tolerância para a coexistência dos diversos atores sociais, a não-violência, o dissenso com argumento, o respeito pelo outro, a não-incitação do ódio para com o outro e um profundo exercício de “prudência social” para poder produzir as transformações sociais (Rincón e Magrini, ibid, p. 97).

Isso pode dar a entender que ocorre um questionamento da democracia como regime universal, apregoando a emergência de outro regime ou sistema político. Mouffe (ibid, p. 27) advoga a necessidade do reconhecimento das diferenças instauradas em cada elemento componente da sociedade, que pode ser individual ou coletivo. Para alcançar essa possibilidade de aceitação do Outro, ela propõe a democracia radical como nova filosofia política, na qual “o universalismo não é rejeitado, mas particularizado”, ou seja, trata-se de “um novo tipo de articulação entre o universal e o particular”, encadeamento este que valoriza a heterogeneidade, a multiplicidade e a

particularidade. Para ocorrer a democracia radical, deve haver justamente a articulação entre todas as particularidades, da qual se sobressaem o respeito, a tolerância, a segurança, o diálogo entre os diferentes e a aceitação do Outro, no mínimo como adversário. Na hipótese de o Outro ser fascista, este será tratado como inimigo. Voltando à narrativa da Folha, outro interlocutor, o pesquisador católico Jose Gregorio Delgado, ao afirmar que “a ideia de participação direta na Venezuela é uma herança irreversível do chavismo”, ele visualizava a possibilidade de Chávez se prolongar à frente do governo em novos mandatos.

A participação direta na Venezuela se assemelha ao programa do orçamento participativo, instituído em Porto Alegre a partir de 1989. Os cidadãos venezuelanos têm representantes que conduzem suas demandas aos conselhos comunais. Esses conselhos apresentam os projetos propostos às prefeituras que, por sua vez, conduzem os projetos mais interessantes ao governo estadual e este aos supremos conselhos federais, seja junto à Assembleia Nacional ou à Presidência.

Para os chavistas, as câmeras de vigilância são ferramentas de transparência, segurança. As imagens são monitoradas de dentro da emissora da comuna. Elas são a “câmera subjetiva”, aquela que identifica, conforme Arlindo Machado (2007, p. 15), o “olho da câmera com o olho da personagem”. É bem verdade que Machado faz essa aplicação se referindo ao cinema, o ponto de vista do ator fundido à visão do espectador pelas lentes da câmera. Transpondo esse recurso metafórico para o contexto das comunas, pode-se afirmar que o olho da câmera de vigilância era o olho do Estado, o olhar de Chávez sobre os cidadãos, a presença constante do sistema na vida das pessoas. As câmeras traziam todos à visibilidade. Outra pista sobre as tendências do regime chavista se destacava no intertítulo “Presença de Che”, referindo-se a um dos líderes da revolução cubana, o argentino Ernesto ‘Che’

Guevara. Outro nome mencionado é o do teórico marxista Istvan Mészáros, inspiração para o grupo radical Alexis Vive, acusado pelos críticos de Chávez de coação, violência contra opositores e braço armado paramilitar do presidente.

O prefeito Graterón e um centro de pesquisas se opõem ao chavismo. O prefeito resume o que são as comunas (Figura 12):

particularidade, mas que ousava disputar a hegemonia de poder na Venezuela chavista. O centro de pesquisas Gumilla revelou que 90% de entrevistados acusaram como problemas mais graves do governo Chávez “a corrupção e o mau uso de recursos”. O enunciador da Folha não mencionou quem, mas assumiu no texto a opinião a respeito de Chávez: “Os opositores e críticos de Chávez enxergam, na melhor das hipóteses, como delírio utópico. Na pior, uma maldisfarçada e inconstitucional maneira de centralizar ainda mais poder ligando comunidades ao Executivo, prescindindo de municípios e Estados.” As expressões “delírio utópico” e “maldisfarçada e inconstitucional maneira de centralizar ainda mais poder” enquadraram o rumo tomado por Chávez, querendo transformar o país em uma “ilha da fantasia” e direcionar as decisões para si. Mesmo considerando os riscos das lutas democráticas, Pakkasvirta e Teivainen (Op. Cit., p. 18) apreciam que “as utopias democráticas podem sobreviver, superar – e até mesmo lucrar com – a queda das utopias nacionais”. Eles não veem perigo em que tais ideais migrem para outras fronteiras.

Na Folha Chávez foi declarado “fascista” por planejar reestruturar a divisão político-administrativa do país (“Chávez prepara novo mapa da Venezuela”, 31/1/10), reduzindo o número de estados e centralizando mais ainda o poder. O enunciador utilizou o apelido dado por um opositor do governo para compará-lo a outro líder político: “Esteban”, mesmo nome referido ao cubano Fidel Castro.28 Daí seu enquadramento como “clone” de Fidel. Para a mídia, ele se comportou como ditador e abalou as instituições do país, gerando insegurança e aumentando a violência. Se Chávez idealizava o modelo comunista, conforme opinião do prefeito Graterón, para o enunciador do jornal, Chávez precisava ser apresentado como diferente e perigoso para a ordem internacional.

Não obstante as mudanças em desenvolvimento no país vizinho, o enunciador não ofereceu espaço para que o leitor concluísse que as comunas faziam parte de um conjunto a ser copiado pelo Brasil. Uma única vez o termo “democracia” apareceu no enunciado. Na reportagem “Para opositor, projeto é ‘protótipo do comunismo’”, diz: “Com a Constituição de 1999, aprovada sob Chávez, o governo passou a promover meios de democracia direta e ‘protagônica’, espécie de aprofundamento de experiências como o orçamento participativo no Brasil”. O enunciador não lembrou a origem do

28 Castro recebeu expressões hostis, tais como “tirano”, “ditador matreiro” e “Esteban”, substantivo

próprio com significado embutido na aglutinação da expressão “este bandido”. Para Veja, Castro não era o presidente ou o líder, “cacique comunista”, mas o “dono da ilha” que expropriava bens materiais e os direitos imateriais de cada cidadão.

projeto participativo implantado pelo PT em Porto Alegre (1989).29 Mais importante que o significado da opinião do enunciador, é conhecer de que modo essa articulação da

Folha se acomodou ao contrato comunicacional entre o enunciador e o enunciatário.

Folha se serviu de ferramentas próprias a fim de definir seu posicionamento político diante dos leitores e, eventualmente, ironizou a quem ela construiu como inimigo da democracia até mesmo com o uso de artifícios torpes, como chamar o projeto chavista de “utopia”, com o intuito de depreciá-lo.