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O Estado de S Paulo: Expectativa, medo e modelo

Capítulo 3 – A Concertación chilena e a linha fronteiriça

3.1.3. O Estado de S Paulo: Expectativa, medo e modelo

A princípio, o enunciador do Estadão, em “Chilenos elegem hoje seu novo presidente” (16/1/00), expôs o leitor a dúvidas quanto ao futuro da Concertación sob a liderança do socialista Ricardo Lagos. Tal qual a Folha, o Estadão tratou a Lagos como civilizado e disposto ao diálogo com a oposição. A primeira dúvida se devia ao medo diante da possibilidade de confronto entre os militantes dos candidatos à presidência, solucionada com um acordo entre Lagos e Lavín para que os institutos de pesquisa e a mídia não divulgassem quaisquer resultados ou tendências antes do encerramento do pleito eleitoral. A segunda dúvida apontava para uma hipotética vitória da direita, cujo candidato se demonstrou contrário às propostas conduzidas até então pela Concertación

Democrática, apoiada por Lagos.

Os eleitores de Lagos o conheciam e sabiam que ele seria o único capaz de enfrentar a Pinochet, pois, durante a ditadura, teve coragem de colocar o dedo no rosto

do general e lhe chamar a atenção. Lagos se manifestou contra o plebiscito de 1988, quando Pinochet deixou a população decidir se ele deveria continuar ou não como presidente. O plebiscito aconteceu e Lagos participou da campanha do “não”, que defendia a saída de Pinochet. Pinochet perdeu e saiu da presidência. Durante os dois primeiros mandatos da Concertación, o desemprego cresceu. A solução estava na alternância de poder e o socialista Lagos era visto como uma extensão de Allende. Existia a expectativa quanto ao que se sucederia se os socialistas vencessem as eleições, expectativa que passionalizou o efeito do medo sobre os enunciatários. Afinal, segundo o enunciador, Allende nacionalizou multinacionais, lançou a reforma agrária e promoveu a estatização dos serviços públicos, depois entrou em choque com a direita e sofreu o golpe militar.

As narrativas do medo ou do afeto estabelecem as diferenças da alteridade, mostrando quem é o Outro repelido como inimigo e quem é o Outro que se encontra próximo ao Mesmo (Franklin Silva, 2012, pp. 9-22). A existência desse Outro diferente determina a construção de um espaço do Mesmo idealizado da política brasileira, modalizado a partir de certa visão da democracia liberal. Os espaços do Mesmo e do Outro são espaços discursivos, políticos. Se a mídia constrói a figura do Outro sob a paixão do medo, significa que o discurso e as ações desse líder afetam seriamente os sentimentos identitários advogados pelo Mesmo. Essa interpretação se aplica a qualquer outra força passional. Ao caracterizar a passionalização dominante em grupos, Todorov (2010, pp. 13, 14 e 194) distingue que as paixões se desencadeiam apenas quando os indivíduos se sentem atingidos em sua identidade.

Pinochet voltou da Europa durante o período final da campanha presidencial e ameaçou a sucessão democrática. Os candidatos tomaram duas decisões, uma delas em conjunto: nenhum deles comentaria a volta de Pinochet – Lavín se sentia incomodado com esse representante de seu partido; e Lagos não queria confrontar os simpatizantes do general, eleitores potenciais da direita. Houve uma decisão totalizante para que os candidatos não tocassem no problema jurídico envolvendo o ex-ditador em seus discursos. Ao mesmo tempo, cada um procurou capitalizar apoio em consonância às propostas inseridas na particularidade dos programas de governo. Lavín contou com os eleitores católicos e Lagos se aproximou dos protestantes e pentecostais.

Lagos era visto pelo enunciador como alguém com espírito humanitário, pois assentiu a libertação de Pinochet, em cuja prisão apresentou problemas de saúde. Contudo, também externou o senso de justiça ao defender o julgamento do ex-ditador

nos tribunais chilenos. A palavra de ordem continuava sendo o referendo à

Concertación Democrática como a única via para a restauração e o progresso do Chile. Seu estilo de dialogar com a oposição oportunizou mais segurança diante da temerosa circulação de Pinochet nos meios políticos e militares do país.

Veja e Estadão repetiram com ênfase a formação de Lagos na advocacia e doutorado em Economia pela Universidade Duke, nos Estados Unidos. Esse modo contrastou o governante julgado pela mídia como preparado e líderes sem esse perfil acadêmico, habilitando-o ao diálogo e ao tom conciliador. O enunciador do Estadão enalteceu a aptidão de Lagos pelo motivo de ele haver participado do processo de redemocratização do país (“Socialista apontou dedo a Pinochet”, 16/1/00). Daí a exaltação do enunciador aos cinco primeiros presidentes da era pós-ditadura como “imensamente talentosos e moderados”: Patrício Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos, Michelle Bachelet e, inclusive, Sebastián Piñera, que se comprometeram a impedir qualquer divisão entre os cidadãos com o objetivo da compensação pelas mazelas dos tempos de Pinochet. Ao eleger Lagos, a oposição e os empresários decidiram sustentá- lo em vez de “empurrá-lo ao precipício”, por que “preservar o Estado era mais importante que uma ganância política de curto prazo” (Waissbluth e Inostroza, Op. Cit., pp. 289-90). Para o enunciador, Lagos teve um papel preponderante na Concertación.

O enquadramento dos governantes chilenos foi positivo e realçou melhor tal posicionamento do Estadão por meio do artigo “O Chile tem lições para dar aos EUA e à América Latina” (22/10/10), do economista norte-americano Jeffrey Sachs. No processo de construção da notícia, as fontes podem pautar os repórteres e mesmo os articulistas. As informações são filtradas. No jornalismo internacional, segundo Steinberger (2005, p. 263), “é muito mais difícil, pois as fontes são as agências e a própria mídia. Daí a preferência por articulistas e comentaristas estrangeiros”. O enunciado do título não dizia que o Chile servia de referência para o Brasil, mas para os Estados Unidos e a América Latina em geral. A única menção direta ao Brasil apareceu na comparação de renda per capita, inferior à chilena, “a economia mais competitiva da América Latina”.

De acordo com o enunciador do Estadão, os “talentosos e moderados” Aylwin, Frei, Lagos, Bachelet e Piñera jamais deixaram emergir a prepotência hegemônica de totalizações discursivas a partir de divisões rancorosas, tampouco manifestaram ou receberam acusação de envolvimento em “algum escândalo significativo de corrupção em duas décadas”. Contando com esse perfil de credibilidade e apego à democracia,

Lagos foi convidado para ser representante da ONU junto ao Comitê para Mudanças Climáticas e Bachelet nomeada chefe da ONU Mulheres. O Estadão explorou a presença de Morales no Chile para noticiar que Piñera permaneceu ao lado do boliviano (“Piñera testemunha resgate ao lado de Evo”, 13/10/10). Diante de sua liderança nos trabalhos na mina, a popularidade de Piñera subiu para 75% de aprovação, malgrado as queixas do sul do país, ainda não recuperado de um terremoto, seguido de maremoto, sete meses antes. Os presidentes chilenos são moldados pelo enunciador como modelos de governantes para o Brasil. Desse modo, para o Estadão, o risco das experiências políticas mal-sucedidas passou e os resultados apresentados ao longo de vinte anos determinaram Lagos e Piñera como o Outro-aceito, encarnação da benevolência.