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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ruben Dargã Holdorf

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Academic year: 2018

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PUC-SP

Ruben Dargã Holdorf

A mídia e o Outro: estudo da construção das

figuras dos presidentes de Argentina, Chile e Venezuela em

Veja

,

Carta Capital

,

Folha

de S.Paulo

e

O Estado de S. Paulo

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

(2)

A mídia e o Outro: estudo da construção das

figuras dos presidentes de Argentina, Chile e Venezuela em

Veja

,

Carta Capital

,

Folha

de S.Paulo

e

O Estado de S. Paulo

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, área de concentração em Signo e Significação nas Mídias, sob a orientação do Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado.

(3)

H7279m

Holdorf, Ruben Dargã

A mídia e o Outro: estudo da construção das figuras dos

presidentes de Argentina, Chile e Venezuela em Veja, Carta Capital, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo. - 2013.

174f.; 27 cm.

Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Doutorado em Comunicação e Semiótica, São Paulo-SP, 2013.

Orientador: Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado.

1. Mídia impressa – Democracia – América Latina 2. Linha fronteiriça - Ponto nodal - Alteridade 3. Comunicação – Teoria do discurso. I.Título II. Prado, José Luiz Aidar (Or.).

(4)

Aprovado em: ____/____/_______

Banca de Examinadores

____________________________________ Prof. Dr. José Luiz Aidar Prado (Orientador)

____________________________________ Prof. Dr. Rogério Christofoletti

____________________________________ Prof.ª Dr.ª Katia Saisi

____________________________________ Prof.ª Dr.ª Vera Lucia Michalany Chaia

(5)

Agradecimentos

À Lia, que mais uma vez me apoiou no crescimento acadêmico.

Ao meu orientador, pela paciência, perspicácia e equilíbrio intelectual demonstrados ao longo desses anos de pesquisa.

(6)

Dedicatória

(7)

A democracia produz, nela mesma, forças que a

ameaçam, e a novidade desse tempo é que essas

forças são superiores àquelas que a atacam de fora.

Combatê-las e neutralizá-las é tanto mais difícil

quanto mais elas invocam o espírito democrático e

possuem, assim, as aparências da legitimidade.

(8)

RESUMO

Esta pesquisa investiga os modos de construção das narrativas sobre os presidentes latino-americanos na mídia impressa brasileira, nos anos 2000, 2005 e 2010, assinalados pela intensa alternância de poder na maior parte dos países do continente. Trata-se de analisar o modo pelos quais os dispositivos midiáticos projetam e idealizam o Outro-presidente e seu estilo de governar. Partimos da hipótese de que as mídias enunciam palavras de ordem ligadas à democracia, convocando seus públicos para aprovar uns e repovar outros presidentes e, em assim fazendo, sustentam uma democracia empobrecida. Além disso, demarcam uma linha fronteiriça, separando o Brasil dos países latino-americanos nos espaços topológico-políticos do Mesmo e do Outro, ao modo de uma oposição sem sutilezas e complexidades. São bases teóricas principais da pesquisa a teoria do discurso de Ernesto Laclau, as reflexões sobre democracia e o Mesmo/Outro de Chantal Mouffe e a definição de “linha fronteiriça”, ou “abissal”, de Boaventura Santos. Envolvendo periódicos de expressiva tiragem, que mantêm correspondentes na América Latina e empregam os serviços das agências noticiosas internacionais para produzir seus conteúdos sobre o continente, o corpus da pesquisa compreende os seguintes jornais e revistas: Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Veja e Carta Capital.

(9)

ABSTRACT

This research examines the modes of construction of the texts about Latin-American presidents which appeared in the Brazilian press media in the years 2000, 2005 and 2010, which years were marked by an intense alternance of power in most countries of this continent. It endeavors to analyze how the media devices design the idealization of the Other, when in the role of president. We start with the assumption that the media sets out slogans calling their audiences to approve of some presidents and to disapprove of others, and that by so doing it supports an impoverished democracy. They also trace a boundary line separating Brazil from the Latin-American countries in the topologic-political spaces of the Self and of the Other, making an opposition without subtleties and complexities. The main theoretical bases of this research are Ernesto Laclau’s discourse, the reflections on Democracy and on The Self/The Other written by Chantal Mouffe, and Boaventura Santos’ definition of “borderline.” Involving periodics of expressive circulation, which maintain correspondents in the several countries of the continent and which rely on information provided by international news agencies to produce the contents relative to Latin America, the research corpus consists of the following newspapers and magazines: Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Veja and Carta Capital.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Dados da Latinobarómetro ... 1

Figura 2: Gazeta do Rio - Exaltação ao imperador ... 5

Figura 3: Gazeta do Rio - Texto de dom Paulino Pimenta ... 6

Figura 4: Vida Fluminense - Ilustração de Angelo Agostini ... 8

Figura 5: O Estado de S. Paulo–“Oposição a Chávez denuncia na OEA projetos...” . 15

Figura 6: Veja–“O dono de tudo” ... 40

Figura 7: Veja–“O dono de tudo”... 47

Figura 8: Veja–“Democracia não é com ele” ... 47

Figura 9: Dados da Latinobarómetro ... 49

Figura 10: Carta Capital–“Na falta de terror, a chuva” ... 58

Figura 11: Folha de S.Paulo –“Nas comunas, Chávez cria sua utopia” ... 63

Figura 12: Folha de S.Paulo –“Para opositor, projeto é ‘protótipo do comunismo’” . 66 Figura 13: O Estado de S. Paulo –“O novo aperto de Chávez” ... . 69

Figura 14: O Estado de S. Paulo –“Em meio a pacote, Assembleia chavista...” ... . 70

Figura 15: Veja –“Amigos pero no mucho” ... . 81

Figura 16: Veja –“O Sul ficou mais perto” ... . 83

Figura 17: Veja –“Pisando em huevos” ... . 85

Figura 18: Veja –“Por que os argentinos estão irados com o Brasil” ... 90

Figura 19: Carta Capital–“Uma história bipolar” ... 98

Figura 20: Folha de S.Paulo –“Argentina critica Brasil...” ... 100

Figura 21: Folha de S.Paulo –“Para EUA,leis da Argentina são frágeis” ... 101

Figura 22: Folha de S.Paulo –“Menem tenta aprovar uma lei de imprensa...” ... 102

Figura 23: O Estado de S. Paulo –“Fantasma de Kirchner atuará em 2011” ... 104

Figura 24: Veja –“Não é o Allende” ... 119

Figura 25: Veja –“Por que o Chile dá certo” ... 123

Figura 26: Veja –“Vitória na era do consenso” ... 127

Figura 27: Veja –“O reality showde 1 bilhão de telespectadores” ... 128

Figura 28: Folha de S.Paulo –“Lagos quer ficar fora do caso Pinochet” ... 129

Figura 29: Folha de S.Paulo –“Chile vota sob a sombra do desgaste...” ... 132

(11)

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Textos sobre Hugo Chávez ... 38

Quadro 2: Como Chávez foi construído ... 75

Quadro 3: Variáveis a respeito de Chávez ... 76

Quadro 4: Textos sobre Néstor e Cristina Kirchner ... 82

Quadro 5: Textos sobre os Kirchner ... 91

Quadro 6: Como os Kirchner foram construídos ... 109

Quadro 7: O Outro-Cristina Kirchner ... 110

Quadro 8: O Outro-Néstor Kirchner ... 110

Quadro 9: Variáveis a respeito dos Kirchner ... 111

Quadro 10: Textos sobre Ricardo Lagos e Sebastián Piñera ... 118

(12)

SUMÁRIO

Introdução ... 1

1. Relações conflituosas ... 3

2. O espaço das narrativas ... 10

3. Ponto nodal: enaltecendo a democracia ... 12

4. O Outro e o Mesmo ... 18

5. Linha fronteiriça ... 23

6. Novos olhares sobre as mídias ... 24

Capítulo 1 – O enquadramento da mídia do estilo chavista de governar ... 34

1.1. Chavismo: medo e admiração ... 37

1.1.1. Veja: Deslegitimando o chavismo ... 39

1.1.2. Carta Capital: Modelo de liderança ... 53

1.1.3. Folha de S.Paulo: Protótipo do comunismo ... 60

1.1.4. O Estado de S. Paulo: Golpista antidemocrático ... 68

1.2. Mídias exaltam a democracia ... . 74

Capítulo 2 – O enquadramento da mídia do estilo kirchnerista de governar ... . 81

2.1. “Estilo K”: o temperamental e a ambiciosa ... . 83

2.2. Entre amigos, adversários ou inimigos ... . 91

2.2.1. Veja: Estilo K, de confrontação ... . 93

2.2.2. Carta Capital: Da esperança ao medo ... . 97

2.2.3. Folha de S.Paulo: O confrontador e a frágil ... . 99

2.2.4. O Estado de S. Paulo: Medo do fantasma populista ... 103

2.3. Separando o Brasil dos argentinos ... 108

Capítulo 3 – A Concertación chilena e a linha fronteiriça ... 116

3.1. Entre o medo e a euforia ... 117

3.1.1. Veja: Civilizados e democráticos ... 119

3.1.2. Folha de S.Paulo: Pela Concertación Democrática ... 129

3.1.3. O Estado de S. Paulo: Expectativa, medo e modelo ... 134

3.1.4. Carta Capital: Liberal e populista ... 137

3.2. Pelo estilo da Concertación e da Coalizão ... 139

3.3. Um olhar por cima do muro da fronteira midiática ... 142

Conclusão ... 150

(13)

Introdução

A Câmara dos Deputados da Argentina aprovou no final de 2011 o projeto para regular os preços dos jornais. Segundo a Folha de S.Paulo (16/12), as empresas jornalísticas argentinas acusavam a presidente Cristina Kirchner de intentar controlar a imprensa. Ao comentar esta notícia, o âncora Chico Pinheiro, do telejornal Bom Dia Brasil, da TV Globo, considerou o projeto mais um golpe de Cristina contra a democracia. Dois anos antes, o Congresso argentino sancionou a Lei das Mídias, com o objetivo de normatizar a comunicação audiovisual e substituir a lei até então vigente (desde 1981), dos tempos da ditadura (1976-83). Cristina convocou diversos setores da sociedade para o debate antes de entregar o projeto aos parlamentares. O governo rebateu as críticas, alegando que a reação da mídias argentinas revelava o interesse dos meios de comunicação pela manutenção de privilégios.

Mais ao norte do continente, na Venezuela, o presidente Hugo Chávez, que cassou concessões de emissoras de

televisão opositoras ao governo a partir de 2006 e exonerou juízes antipáticos às mudanças no país, foi aceito pela maioria da população como um líder democrático, apesar das desconfianças lançadas pelas mídias brasileiras desde o início de seu primeiro mandato, em 1999. (Figura 1)1 Impressos como

Veja, Folha e O Estado de S. Paulo chamavam-no de ditador. De acordo com os discursos apresentados pela

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imprensa brasileira, se Chávez foi um “ditador” e Cristina uma “golpista”, logo a Venezuela e a Argentina não podem ser vistas como democracias.

Ao contrário de ditadores de outros tempos, como o argentino Jorge Rafael Videla e o chileno Augusto Pinochet, Cristina e Chávez chegaram à presidência de seus países pelo voto popular. As eleições na Argentina e na Venezuela fazem parte do processo de renovação de liderança como em qualquer governo democrático, cumprindo um dos rituais da própria democracia. Se a mídia brasileira questiona as democracias instaladas na América Latina, é preciso, então, conhecer qual é sua visão de democracia, quais são suas características, os motivos para não considerar esses países como democracias, de que modo as figuras construídas de cada presidente determinam diferenças ou semelhanças entre o Brasil e os latino-americanos hispânicos e se tal agendamento é consentido em todos os veículos impressos. Segundo José Aidar Prado (2011), as figuras são “objetos de um mundo construído” em que “valores e regimes específicos de visibilidade se produzem”. Quando dirigidas à construção do Outro, as figuras se referem “à alteridade, sempre reduzida ao universo do Mesmo”.

A idealização de um espaço topológico-político da América do Sul não pode ser considerada uma nova prática da mídia no Brasil, tampouco uma série de ações advindas desde o início do século 19, quando surgia a imprensa brasileira. A presença de textos a respeito da América Hispânica de los hermanos não era muito comum nos jornais e revistas brasileiros. Notícias e pontos de vista apareciam mais por ocasião de conflitos de fronteira, como na invasão da Capitania de Montevidéu (1816), na guerra de independência da Cisplatina (1825-28),2 nas guerras contra os presidentes Juan Manuel de Rosas, da Argentina, e Manuel Oribe, do Uruguai (1850-52), contra outro uruguaio, Atanasio Cruz Aguirre (1864-65), e contra o paraguaio Francisco Solano López (1865-70). Os jornais dependiam de relatos de militares, de diplomatas ou de quem estivesse próximo às zonas de tensão política, pois não havia correspondentes, inovação implantada pelo Jornal do Brasil. Mesmo assim, a América Latina permaneceu em geral no esquecimento, ou na irrelevância. De acordo com o historiador Nelson Werneck Sodré (1999, pp. 257-74), o Jornal do Brasil começou a manter, a partir de 1891, correspondentes em: Portugal, Alemanha, França, Itália, Bélgica,

2 Conhecida também como Colônia do Sacramento ou Banda Oriental, foi transformada em Província

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Estados Unidos e Inglaterra. O enunciador3 do jornal não deixava de qualificar o diário

brasileiro “superior à La Prensa, de Buenos Aires”, que até 1890 “era o de maior tiragem na América do Sul”. Ele não reconhecia a necessidade de, pelo menos, ter um correspondente em algum país latino-americano.

Nossa pesquisa se concentra num período de análise recente (2000-2010) e será descrito mais adiante. Ademais, não foi objeto desta pesquisa realizar um levantamento histórico aprofundado das ações midiáticas desde a fase final dos tempos coloniais (1808) até o início da República Velha (1889). Entretanto, isso não nos poupou de tematizar alguns fatos que marcaram a relação da imprensa brasileira com os países vizinhos e que se tornaram mais frequentes ao longo dos últimos anos.

1. Relações conflituosas

Abaixo do Rio Grande, que marca a fronteira entre México e Estados Unidos, enquanto alguns países do continente latino-americano elegeram regimes liberais, outros implantaram propostas autoritárias, centralizadoras de poder. É bem verdade que os espanhóis conquistaram e colonizaram mais da metade desse território, legando-lhe o idioma de Castela e a religião cristã católica, impondo-lhe certa uniformidade cultural. Contudo, as peripécias de bucaneiros, militares e aventureiros à caça de tesouros, sob as ordens reais de cortes europeias ou de nobres encastelados em seus feudos, marcaram a ferro a história da América Latina e deixaram cicatrizes indeléveis e feridas ainda expostas.

Ao passo que o México tinha tipografia desde 1539 e a Gaceta de Guatemala começou a circular em 1729, os primeiros jornais brasileiros apareceram somente em 1808. O primeiro deles, o Correio Braziliense, foi publicado em Londres. O primeiro em solo brasileiro, a Gazeta do Rio de Janeiro, era uma produção do império português, assemelhando-se a um serviço de assessoria, de porta-voz do príncipe regente dom João, o diário oficial da nobreza lusitana instalada no Brasil. José Marques de Melo (2000, p. 78) chama a Gazeta de “chapa-branca”, “jornal que nasceu censurado”. O Correio era

3 O enunciador é aquele que convoca os leitores, propondo uma ação comunicativa a partir de um

referencial. Ele também fornece uma série de programas que estruturam o discurso. Alguns autores, principalmente semioticistas greimasianos, preferem usar o termo destinador, distinguindo-o de

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um jornal livre, de combate aos colonizadores, favorável à independência. Censurada, a Gazeta reproduzia apenas o discurso oficial da realeza, em geral tedioso, conforme descreve a historiadora Isabel Lustosa (2003, p. 20). O aparecimento da imprensa em países de língua espanhola, antes mesmo que no Brasil, conferiu aos jornais e revistas dos vizinhos hispânicos a aparente vanguarda nas lutas contra as lideranças estabelecidas. Se fizesse uso dessa nova ferramenta de poder, a imprensa mediria forças com os governantes despreocupados com o bem-estar de suas comunidades. Sodré (Op. Cit., p. 11) não percebe benefícios pelo “aparecimento precoce da universidade e da imprensa” na América Hispânica. Ao contrário do que se imaginava, a imprensa serviu de instrumento para “implantar uma cultura externa, justificatória do domínio, da ocupação, da exploração” espanhola, pois “onde o invasor encontrou uma cultura avançada (dos incas, maias e astecas: grifo nosso), teve de implantar os instrumentos de sua própria cultura, para [...] substituir por ela a cultura encontrada”. Essas novas autoridades políticas estavam mais interessadas em explorar o máximo das riquezas da terra enquanto colonizadores ou na condição de recém-libertos dos impérios ibéricos, mesmo que fosse necessário optar pela escravidão, caso brasileiro.

Não faltavam jornais para condenar a monarquia. Considerado como “anarquista do império”, o advogado paraibano Antônio Borges da Fonseca foi editor de 25 jornais durante meio século (1822-72) de militância em defesa das causas liberais, contra a escravidão, a favor da república e do livre mercado para os brasileiros, prejudicados pelo Tratado de Comércio e Navegação, assinado com a Inglaterra em 1810. Os jornais de Borges da Fonseca tinham curta duração. As autoridades fechavam as redações e o processavam. Em seguida, ele abria outro periódico. Ao lado dos conservadores, aqueles que defendiam o status quo do Brasil como monarquia escravagista e de monocultura para exportação, os jornais tinham vida mais longa (Sodré, ibid, p. 190), caso do Diário de Pernambuco, periódico mais antigo em circulação na América Latina (desde 1825). Enquanto os jornais hispânicos desapareciam, o Diário continuou sua saga.

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isolado política e economicamente, interessado apenas em manter relações com a Europa, mesmo não obtendo seu reconhecimento imediato como nação politicamente independente. A opção das repúblicas hispânicas pela democracia liberal era vista pela corte brasileira, conforme o historiador Alberto Silva (1998, p. 12), como a “potencialidade latente da tirania”, o que as deixava “numa condição inferior”. O Brasil obteve o primeiro reconhecimento diplomático somente dois anos depois da independência. Interessados em estender seu poder no continente, os Estados Unidos se anteciparam em 1824 a seu maior concorrente, o Reino Unido, que assinou relações com o Brasil em 1825, seguido de outros países europeus e do México, o primeiro latino-americano a admitir a independência brasileira. A justificativa do Reino Unido para reconhecer a única monarquia sul-americana4 se deveu à preocupação do secretário britânico de Relações Exteriores, George Canning, com “a possibilidade de ser preparada uma ação conjunta das repúblicas americanas contra o império” (Holanda, 1976, p. 361), colocando sob risco a própria unidade territorial brasileira, que poderia se fragmentar em diversos países, tal qual ocorria no lado hispânico. Para a historiadora Emília Viotti da Costa (2007, p. 134), as classes dominantes brasileiras justificavam sua opção pela monarquia constitucional a fim de evitar a forma republicana de governo, a quem atribuíam “a instabilidade dos demais países

latino-americanos”. Eles argumentavam que somente em um regime monárquico seria possível conservar a unidade territorial e a estabilidade política da nação.

Dois recortes da Gazeta do Rio ilustram parte desse período, logo depois da independência. Em quase todas as edições deste jornal apareciam enunciados enaltecendo a figura do imperador brasileiro: “O Céu abençoe, proteja, dilate e guarde por inumeráveis anos a Pessoa Sagrada de Vossa Alteza Real, para glória do Brasil, e reunião de toda

4 O México teve dois períodos de monarquia: entre 1822 e 1823, com o general Agustín de Iturbide, que

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a Monarquia Portuguesa.”5 A exaltação do regime monárquico mostra a preferência de

parte da elite brasileira pela ligação com a realeza (Figura 2). Por ocasião da invasão da Colônia do Sacramento, o coronel dom Paulino Pimenta tece comentários realçando a superioridade do Brasil imperial diante das forças argentinas na tentativa de recuperar as terras perdidas: “Buenos Aires não se acha em um estado tão forte, que possa manter a si, e auxiliar a este país de um modo, que o faça respeitar; ante as facções, que observamos dentro da nossa mesma Província, e ante qualquer poder Estrangeiro, que intente invadir-nos.”6 Os exemplos desse período da História do Brasil não são muito

frequentes nos demais jornais, pois ainda não existiam correspondentes profissionais enviados ao exterior, tampouco cadernos especiais com assuntos internacionais. O espaço de discurso era ocupado em maior volume pelos textos opinativos e dependia de colaboradores como o coronel Pimenta, lotado no front uruguaio (Figura 3). Quanto à Gazeta, não se esperava atitude contrária aos interesses da monarquia de um veículo oficial. Havia outros simpatizantes da realeza, como o Despertador Braziliense, de João Soares Lisboa, descrito por Lustosa (Op. Cit., p. 53) como um contraditório e “ferrenho defensor ‘do Trono e do Altar’”, referindo-se à monarquia e sua ligação com a Igreja Católica como religião oficial do Estado. Um dos jornais que combatia a monarquia, O Conciliador Nacional, do Recife, tinha em Lopes Gama seu mais obstinado articulista. Para Sodré (Op. Cit., p. 73), Lopes Gama considerava a monarquia “prejudicial ao Brasil”.

Depois da proclamação da independência, as divisões políticas também chegaram aos jornais. A direita conservadora, que apoiava a monarquia absolutista e a escravidão, tinha como principais representantes na imprensa o Diário Fluminense, o

5Gazeta do Rio, n.º 122, 10 out. 1822. Disponível em:

<http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/gazeta_rj/gazeta_rj_1822/gazeta_rj_1822_122.pdf> . Acesso em: 29 nov. 2011.

6Gazeta do Rio, n.º 156, 28 dez. 1822. Disponível em:

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Jornal do Comércio e O Analista. Para os enunciadores desses diários, o imperador deveria se posicionar acima de todos os demais poderes ou concentrá-los no Poder Moderador,7 criado pelo próprio Pedro I. O Aurora Fluminense defendia uma monarquia constitucional, da direita liberal, isto é, um sistema de governo cujo imperador teria os poderes limitados pela carta magna da nação, a Constituição. Em tom mais radical, a esquerda liberal tinha como referenciais mais destacados o Abelha Pernambucana, de Antônio Borges da Fonseca, o Observador Constitucional, de Giovanni Baptista Líbero Badaró, e A Malagueta, de Luís Augusto May, favoráveis à proclamação da República, à liberdade de imprensa e hostis à Igreja Católica e à Justiça (Sodré, Op. Cit., pp. 110-2). Tais assuntos vão se somar à questão abolicionista, principalmente a partir da criação dos jornais Radical Paulistano, em 1869 (Pereira, 2001, p. 66), e A República, em 1870 – pertencente ao Clube Republicano e, depois, ao Partido Republicano Brasileiro, cujos membros lançaram um documento de intenções contrárias à ordem monárquica (Sodré, ibid, p. 212).

O Manifesto Republicano de 1870 revela a existência de um muro, uma linha fronteiriça ou um espaço topológico-político, erigido pelos monarquistas, separando o império brasileiro das repúblicas vizinhas, ou o que chamaremos de espaços do Mesmo e do Outro. Um de seus enunciadores, Quintino Bocaiúva, havia viajado pelos Estados Unidos, Argentina e Paraguai antes de participar da redação do manifesto. No documento resgatado pelo historiador Luís Santos, os republicanos reconhecem a atitude dos monarquistas como prejudicial ao fortalecimento dos laços do país com as nações latino-americanas:

“Somos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos Estados americanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, além de origem de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade e das guerras com os povos que nos rodeiam. Perante a Europa passamos por ser uma democracia monárquica que não inspira simpatia nem provoca adesão. Perante a América passamos por ser uma democracia monarquizada, onde o instinto e a força do povo não podem preponderar ante o arbítrio e a onipotência do soberano. Em tais condições pode o Brasil considerar-se um

7 Quarto poder instituído pela Constituição de 1824, outorgada por Pedro I, que concedia ao monarca total

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país isolado, não só no seio da América, mas no seio do mundo” (Santos, 2005, p. 3).

Para os vizinhos do império, o Brasil passa a ser visto como o “Outro irreconciliável” (Santos, 2002), uma ameaça à legitimação da independência dos países da América Hispânica. Para o Brasil, os vizinhos eram os diferentes e deveriam permanecer afastados, separados por uma linha fronteiriça erigida pelo discurso dominante. Leandro Narloch (2011, pp. 272-3) compartilha desse ponto de vista ao tratar o continente, exceto o Chile, como um território de “guerras civis, ditaduras e assassinatos em massa”. Na Argentina, jornais eram fechados pelos caudilhos e as eleições canceladas. Com essas características negativas, não surpreendeu o fato de os países hispânicos irem à ruína, demorando “décadas para voltar aos níveis anteriores às revoluções”. No Brasil também ocorreram revoluções, algumas de curta duração, como a Confederação do Equador, no Nordeste (1824-25), e outras extensas, como a Guerra dos Farrapos, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina (1835-45). Todavia, o território brasileiro não se desagregou como o hispânico.

Ao descrever as famílias de governantes envolvidos no maior conflito do século 19 na América do Sul, a Guerra do

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salientava o caráter despótico de Francisco Solano López, enquanto o termo “Napoleão” sublinhava seu discurso favorável à anexação de outros territórios para a formação do Grande Paraguai, à semelhança do que Napoleão Bonaparte programou para a França na Europa. Tais metáforas configuram atributos depreciativos da imprensa dos tempos do império brasileiro. López incorporou em sua figura midiática as loucuras de Nero e o militarismo expansionista francês. Esse modo de construir as figuras dos presidentes latino-americanos continua em evidência nos impressos brasileiros mais de um século depois do conflito. Veja chamou os presidentes Carlos Salinas, do México, de “Irmãos Metralha” (13/12/1995); Hugo Chávez, da Venezuela, de “versão tropical de Kadafi” (17/5/2000); e Alberto Fujimori, do Peru, de “Rambo dos Andes” (1.º/11/00); Carta Capital chamou o boliviano Carlos Mesa de “Jânio do Altiplano” (16/3/2005); O Estado de S. Paulochamou Chávez de “Robin Hood” (8/8/2010).

Para verificar o modo pelo qual a mídia brasileira tratou os presidentes latino-americanos, é preciso entender como cada veículo midiático construiu as figuras desses líderes políticos e que diferenças foram estabelecidas entre o Brasil e os países de los hermanos. Além disso, torna-se mister conhecer as atitudes dos presidentes em relação à liberdade de imprensa e que valores determinaram se um presidente pôde significar, do ponto de vista da mídia, uma ameaça à democracia no continente latino-americano. A fim de tecer as respostas para nossas indagações, basear-nos-emos na teoria do discurso de Ernesto Laclau (2010 e 1996). Para ele, o discurso é um complexo de elementos dados a partir do conjunto de relações, cujos significantes apresentam uma polissemia de resultados. Para explicar as definições de linha fronteiriça, recorremos a Boaventura Santos (2010). Santos (2010, p. 31) refere-se à linha fronteiriça, ou abissal, como aquela que demarcava os lados do conhecimento. De um lado, encontra-se “o visível, como por exemplo, o saber da ciência e da tecnologia” (Prado, 2010, p. 155); de outro lado, o invisível, relacionado aos “saberes cotidianos”, que se tornam visíveis apenas quando explorados. Santos aplica esse conceito de linha fronteiriça para compreender as diferenças existentes nas relações entre as metrópoles ibéricas e suas colônias americanas e como “o olhar hegemônico não vê do outro lado da linha abissal a relação consigo próprio, mas a alteridade violenta que deve ser exterminada ou civilizada” (Prado, ibid, p. 155).

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é importante a interpretação dos movimentos desenvolvidos pela mídia consultando teóricos de diferentes ramos do conhecimento. Segundo Miquel Alsina (2009, p. 11), não há como cumprir a exigência da análise de um objeto sem apostar na interdisciplinaridade, articulando os pensamentos durante o trajeto de produção. Quem também ressalta a importância de uma articulação interdisciplinar é Norman Fairclough (2008, pp. 44 e 276), que ainda concorda com o ponto de vista de que a análise do discurso pode substituir outros métodos tradicionais, pois não existe um modo acabado de exame de um dado objeto.

2. O espaço das narrativas

Ao reportar as temáticas da América Latina, o comportamento da mídia brasileira resulta em uma relação de amor, ódio, indiferença e desprezo pelos países do continente; há mais desprezo que apreço. E esse desprezo não reflete um olhar sobre os povos hispânicos e francófonos, mas incide sobre seus líderes políticos e governantes, sejam eles presidentes eleitos, ditadores populistas ou tiranos travestidos de militares, com “galões” sobre os ombros ou “macarrões” nos braços. O modo como a figura desse Outro-presidente é erigida determina o saber a respeito dos vizinhos do Brasil, estejam eles geograficamente próximos ou além-fronteiras.

Em um contexto de pós-afirmação de uma única potência mundial, presente justamente no continente americano – Estados Unidos – desde 1991, o desenvolvimento da América Latina condiciona-se às relações amistosas, tanto no campo político quanto econômico. Para isso, a estruturação de mercados de livre comércio se torna imprescindível e os acordos dependem das costuras diplomáticas realizadas entre os chefes de Estado, auxiliados por seus ministros. Nesse ínterim, a mídia exerce ora um papel de apoio e coesão, ora de crítica e repulsa. Tal reação não se demonstra gratuita, pois tem suas origens nos interesses das instituições de comunicação e seus fundamentos em linhas e políticas editoriais bem-delineadas internamente, mas nem sempre esclarecidas aos leitores. A relação entre o enunciador midiático e o enunciatário-leitor é desigual, pois o enunciador tem um saber e nem sempre deseja torná-lo acessível por completo ao leitor.

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brasileiro contra os presidentes latino-americanos. O que ocorre são conflitos geopolíticos. Nem sempre a visão diplomática da mídia coincide com a do governo brasileiro. A mídia brasileira tem optado por virar as costas para a América Latina enquanto a diplomacia busca estender a mão do diálogo com vistas a acordos econômicos e políticos com os vizinhos hispânicos. Segundo Margarethe Steinberger (2005, pp. 248 e 23), o pensamento geopolítico explica as “correlações de forças no espaço internacional em um período histórico determinado” e os discursos do imaginário midiático internacional disputam “a instituição de um mundo geopolítico de acordo com suas representações”. O enunciador da mídia pretende convencer o leitor desse saber para que ele deseje a aproximação ou o afastamento do Outro. Afinal, existe uma política editorial a ser cumprida e é preciso mostrar argumentos em defesa do discurso contrário, favorável ou moderado quando se trata dos presidentes latino-americanos. A mídia brasileira se ajusta à proteção da democracia e do liberalismo, advogando eleições periódicas e constante alternância de poder, liberdade de imprensa e livre comércio sem restrições governamentais. Os atos midiáticos com frequência caminham na contramão das ações políticas da diplomacia brasileira. Desde o acordo assinado entre os ex-presidentes José Sarney, do Brasil, e Raúl Alfonsín, da Argentina (1985-86), o Brasil optou pela parceria com a América Latina, mas isso não vem ocorrendo com a mídia. O acordo que estreitava as relações políticas e econômicas entre brasileiros e argentinos foi ratificado entre Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem (1995), e entre Luiz Inácio Lula da Silva e os Kirchner (2005 e 2010). Todavia, a mídia se recusou a alterar seu agendamento.

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A pressuposição de que todas as vozes deveriam ser não apenas ouvidas, mas também respeitadas, não funciona muito bem no meio midiático. No salão da redação (o newsroom), a instituição jornalística se vale de um manual de redação e de normas de procedimentos, orientando os repórteres e editores a seguirem as instruções e usarem de bom senso a fim de não ultrapassar o limite de coerência e equilíbrio nas relações internas. Mesmo entre supostos concorrentes, comumente encontra-se certa harmonia discursiva, com poucas, ou raras, notas dissonantes e independentes – dissonantes quanto às narrativas cujas mídias buscam hegemonizar; independentes ao tentarem projetar sua particularidade discursiva, mesmo conhecendo a impossibilidade de uma totalização da mesma.

Desse modo, a chamada grande imprensa brasileira parece navegar na mesma direção, utilizando estratégias muito semelhantes na desenfreada busca pela concretização de seus objetivos editoriais. As diferenças entre um e outro veículo são básicas e pontuais, não havendo qualquer item que os faça aparentar enormes distinções, principalmente quando se trata de temáticas latino-americanas. Pouco espaço, superficialidade e pontos de vista voltados aos interesses dos enunciadores assinalam o perfil das editorias mundo, exterior, internacional ou qualquer outro termo concedido às seções. Existe também certo grau de incoerência quando se percebem mais linhas, colunas ou páginas cedidas para a tentativa de golpe de Estado no Nepal do que para uma crise diplomática entre chilenos e argentinos devido à disputa pelo Canal de Beagle, no extremo-sul da Patagônia. Esse desconforto com a falta de nexo nas decisões sobre o que publicar ou deixar de lado, na gaveta, também mostra aspectos incompatíveis com a importância das temáticas a respeito da vizinhança hispânica, perdendo-se a oportunidade do aprofundamento que possa trazer contribuições palpáveis para a compreensão das matrizes dos antagonismos históricos entre o latino-brasileiro e o latino-hispânico.

3. Ponto nodal: enaltecendo a democracia

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discursiva a partir da divisão amigo-inimigo. De acordo com Chantal Mouffe (1996, pp. 13 e 14), a relação amigo-inimigo possibilita a compreensão da gênese dos antagonismos. Durante a Guerra Fria, a presença do Outro-comunista identificava o inimigo a ser combatido pela “democracia”. Para o comunista, o democrata liberal era o Outro a ser repelido. Depois do fim do comunismo soviético e da comemorada vitória da democracia liberal, esta também começa a estabelecer novos marcos políticos de separação entre amigo e inimigo. Sendo a democracia um componente desse liberalismo, pode-se afirmar que o liberalismo totaliza o discurso da mídia impressa brasileira quando esta reclama para si a autoridade e assume a função de construtora de discursos, encadeando ou atenuando as diferenças. As narrativas da mídia, suturadas em ponto nodal, totalizam um discurso enaltecendo a democracia liberal? Quem é o Outro-presidente que pode significar uma ameaça à democracia no subcontinente sul-americano e quem é o Mesmo que se encontra ao lado do “imaginário” brasileiro? Que valores definem a democracia? Para entender isso, torna-se imprescindível verificar os pontos de vista de Mouffe (1996), a respeito de “democracia radical”, e de Guillermo O’Donnell, sobre “democracia política e inclusiva” (2011). A diferença de posicionamento verificada nos espaços do Mesmo e do Outro começa a definir a unilateralidade dos conceitos midiáticos de democracia, erigindo as figuras que a mídia aceita ou rejeita. Os conceitos midiáticos de democracia são unilaterais porque abordam um lado, o da parcialidade, no qual a particularidade discursiva encarna o ponto de vista da mídia, hegemonizando-se essa visão.

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revistas, ou uma delas, como Veja, para compreender a intenção do enunciador e verificar o sentido dos discursos presentes nas reportagens.

O verbete “democracia” não aparece no Manual de Redação e Estilo de O Estado de S. Paulo (Martins, 1997, p. 89), apenas as variantes “democrata” e “democrático”. O enunciador não as explica, mas apresenta como elas devem ser empregadas: “Use... como substantivo... como adjetivo... apenas quando se referir a...”. Ele tem um saber e determina a seus subordinados os modos de uso. Manuel Chaparro (1994, pp. 88 e 100) percebe os manuais de redação portando normas cujo poder “determina ou tolera as decisões do dia-a-dia jornalístico, ainda que de origem desconhecida”. Ou seja, ao mesmo tempo que os manuais elaboram a imagem institucional, eles “não conseguem sobrepor-se aos interesses particulares dos diversos intervenientes”, interferindo nos fazeres jornalísticos. Esses fazeres, ou rotinas, “incluem a capacidade de investigar, selecionar as notícias por valores, definir conteúdos, priorizar aquilo que é relevante, concedendo enfoque, redigindo e difundindo” (Holdorf, 2008, p. 8).

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Quando se trata de “democracia”, a mídia hegemônica brasileira tem uma visão muito próxima à vigente nas mídias internacionais, alinhando-se, em geral, “aos campos de forças desenhados sob inspiração das grandes potências” (Steinberger, Op. Cit., pp. 215 e 220). Contudo, ao aparecer um governante latino-americano com posição contrária à defendida pela mídia, torna-se alvo de críticas. Pelo menos é o que se detecta em diversas reportagens, como a de Veja (6/10/2010) a respeito das eleições venezuelanas, da qual se sobressai o título “Democracia não é com ele” sobre a imagem do presidente Hugo Chávez. Outros

recortes também podem ser citados: “Oposição a Chávez denuncia na OEA projetos que ‘golpeiam democracia’” (O Estado de S. Paulo, 16/12/2010) (Figura 5); “Nas comunas, Chávez cria sua utopia” (Folha de S.Paulo, 19/12/2010). Estes impressos modalizam os leitores a saberem que o modelo

implantado na Venezuela por Chávez não serve para o Brasil, é antidemocrático. A compreensão de democracia, percebida na mídia brasileira, não era a mesma defendida por Chávez e outros governantes latino-americanos.

Depois de décadas de hegemonia de ditaduras e tiranias na América Latina apoiadas pelos Estados Unidos, entre os anos 1960 e 1980, e outro período de redemocratização, entre 1980 e 2000, na visão de alguns especialistas no assunto, o significado de democracia carece de renovação. O’Donnell (Op. Cit., pp. 12-3) afirma haver discordâncias “sobre como definir democracia”, exigindo uma revisão da teoria da democracia.8 De modo semelhante, Mouffe (Op. Cit., p. 36) propõe ampliar o debate em torno de um “projeto democrático da modernidade”, cujas possibilidades se abrem para diversas interpretações, propondo uma “democracia radical”. Essas diferenças também se fazem presentes nos discursos da mídia brasileira, que ostenta distinções entre um e outro medium. Enquanto poucos veículos defenderam as ações de Chávez, a

8 O’Donnell recomenda as leituras de Essentially contested concepts: debates and applications

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maioria o condenou. O chileno Sebastián Piñera é considerado democrata para a maioria dos impressos analisados, mas um deles –Carta Capital– não o percebe como defensor da democracia.

Nas últimas duas décadas, o predomínio dos Estados Unidos prescreveu a crença em uma ordem global, na qual seus valores democráticos se tornariam hegemônicos. Entretanto, o que se percebe é o renascer de nacionalismos e o aprofundamento da distância entre ricos e pobres. Mouffe (Op. Cit., p. 11) entende tal momento como “uma explosão de particularismos” e “um crescente desafio ao universalismo ocidental”. Isto é, particularismos, até então latentes, começam a ocupar espaços até então dominados pelas grandes potências político-econômicas em pequenos territórios. Em alguns momentos, a emergência desses particularismos – tais como os nacionalismos da Grande Sérvia e do Iraque de Saddam Hussein, e a revolução marxista das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) – foi bloqueada por ações militares, embargos econômicos ou sanções impostas por meio da Organização das Nações Unidas (ONU). Na época em que Mouffe (1996) abordava a necessidade de uma “democracia radical”, aconteciam os conflitos na Península Balcânica. A dissolução da antiga Iugoslávia (1990-2001) mostra os interesses políticos e econômicos dos norte-americanos e das potências europeias contra o desejo da existência de uma nação unificada na região dos Bálcãs. Sob o comando do marechal Josip Tito (1953-80), a Iugoslávia optou pelo não-alinhamento, uma posição não perfilada a nenhuma das grandes potências dos tempos da Guerra Fria (1945-91), Estados Unidos e União Soviética. Depois de sua morte, movimentos nacionalistas ascenderam ao poder e iniciaram a fragmentação do país em seis repúblicas, algumas delas escolhendo o caminho da democracia liberal, outras conservando regimes autoritários. Isso não significa que o regime oposto à democracia seja o autoritário, pois um regime democrático liberal também pode ser autoritário. É o caso da Venezuela, cujo presidente Chávez foi eleito em pleitos livres e universais, mas exerceu seus mandatos perseguindo a imprensa opositora, pressionando o judiciário e manipulando o legislativo.

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Hugo Chávez, o equatoriano Rafael Correa e o boliviano Evo Morales. O’Donnell (Op. Cit., pp. 14 e 27) aposta em uma democracia inclusiva, na qual duas características são fundamentais: eleições e liberdades com direitos individuais. Sem as condições de garantias individuais e de direitos respeitados, qualquer regime dito democrático expõe ao risco as renovações eleitorais, e estas devem ser marcadas pela competitividade, universalidade, igualdade, decisão e inclusão. Por outro lado, a proposta de Mouffe, de uma “democracia radical”, indica um novo modo de olhar o Outro, necessitando articular o universal ao particular, permitindo refletir a respeito das liberdades individuais e políticas:

A democracia radical exige que reconheçamos a diferença – o particular, o múltiplo, o heterogêneo –, tudo o que, na realidade, tenha sido excluído pelo conceito abstrato de homem. O universalismo não é rejeitado, mas particularizado; o que é um novo tipo de articulação entre o universal e o particular. [...] Mas a democracia radical precisa também de uma ideia de liberdade que transcenda o falso dilema entre a liberdade dos antigos e dos modernos e nos permita pensar em conjunto a liberdade individual e a liberdade política (Mouffe, Op. Cit., pp. 27 e 34)

Ao longo do período analisado (2000, 2005 e 2010, anos assinalados pela intensa alternância de poder ou reeleições na Venezuela, Argentina e Chile), percebe-se que a democracia defendida por Veja, Folha e Estadão se alicerça no tripé liberdade de imprensa, alternância periódica no poder e livre iniciativa de mercado, sem intervenção do Estado.

Em pesquisa encomendada pela revista Newsweek9 para se conhecer as atitudes que contribuem para a longevidade humana, dentre dezesseis itens mencionados, um deles se destaca: “Viver em uma democracia”. Mas que democracia é essa? Quais são as suas características? O documentário Além das eleições10 concede algumas respostas. A princípio, a democracia aparece como a oportunidade de participação em eleições livres e na elaboração das demandas populares. De acordo com Emir Sader (entrevistado do documentário), é necessário dar novas funções à democracia e redefinir o status de cidadania, não enfraquecendo o Estado e fortalecendo o mercado, conforme as

9 NEWSWEEK. Disponível em:

<http://www.thedailybeast.com/newsweek/2011/04/10/how-to-live-forever.html>. Acesso em: 27 out. 2011.

10 BEYOND ELECTIONS. Disponível em:

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propostas liberais. Sader não explicita quais eram as velhas e quais são as novas funções da democracia. Esse perfil se implantou no Chile no período pós-ditadura do general Augusto Pinochet. Cidadãos de diversos países da América Latina, entrevistados pelo documentarista, responderam que democracia era o sentimento deles pela pátria, uma forma de se livrar de forças autoritárias, tirânicas, construindo e conquistando novos espaços no aperfeiçoamento das relações sociais e não aceitando imposições empacotadas.

Os atributos da liberdade de imprensa, alternância periódica nos governos e liberdade de ação dos mercados compõem o ideal democrático de Veja, Folha e Estadão. O’Donnell (Op. Cit., p. 200) avalia que “o estudo das características das democracias latino-americanas contemporâneas é uma fronteira de investigação recentemente aberta” e que pode determinar novos olhares para a compreensão da temática. Avritzer e Costa (2004, p. 704) acrescentam às características da democracia mencionadas pelas mídias acima, a necessidade de parlamentos mais ativos e que a construção de valores democráticos depende de modelos definidores das interações entre “o Estado, as instituições políticas e a sociedade”.

É bem verdade que em muitos países, como na Venezuela, o presidente Chávez intervinha nas esferas política e econômica. No entanto, não se pode negar que seu governo se desenvolveu sobre parâmetros alicerçados além de meras eleições, condição esta considerada básica para a “democracia”. Segundo O’Donnell (ibid, p. 35), a existência de eleições, liberdades políticas e certos direitos individuais, passou a fazer parte do discurso de jornalistas, políticos e acadêmicos, como “suficiente para que se chame um país de ‘democrático’”. Para capturar essas tendências, urge analisar como as mídias enunciam a democracia e quais são os efeitos de sentido emanados de seus textos.

4. O Outro e o Mesmo

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a oposição Outro/Mesmo. Para tanto, há necessidade de se conhecer os valores, atribuídos aos presidentes pelo dispositivo midiático, que definem o posicionamento político do enunciador em relação ao leitor, bem como quem é esse Outro-presidente que encarna o Outro-governo: essa alteridade incorpora, nessa construção midiática, uma ameaça à democracia no continente latino-americano. O Outro é o que se encontra no discurso, tal qual Chávez, situado como opositor de esquerda, antidemocrático. O Outro permanece no intervalo das equivalências, mencionado por Laclau (1996). A distinção entre o Mesmo e o Outro se situa a partir da diferença. Dada a alteridade, atribuem-se valores a essa diferença, da qual emerge o amigo ou o inimigo. Quais são, então, os valores positivos e negativos que formam o amigo e o inimigo? O Outro, ou o “eles”, segundo Mouffe (Op. Cit., p. 13), é aquele “considerado sob o prisma da diferença”, cujo antagonismo se acirra ao colocar em xeque a existência do “nós”. Para O’Donnell (Op. Cit., p. 169), o Outro é o “radicalmente diferente, situado fora e acima de nós”, podendo ser aquele que reivindica o poder do Estado por meio de ações antidemocráticas. Deve ficar patente que, o que a mídia chama de antidemocrático, nem sempre o é.

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Bueno (2012, p. 5) dividem as relações com a alteridade em dois segmentos: o da alteridade não posta e o da alteridade posta. A alteridade não posta é classificada como o Outro-ausente, enquanto a alteridade posta se subdivide em três casos: a enfatizada, a reduzida e a aceita. O Outro é ausente porque o enunciador constrói apenas aquilo que lhe traz benefício. A alteridade é enfatizada pelo enunciador quando ele constrói “o Outro como maléfico”. Ao reduzir a alteridade, o Outro passa a ser “parceiro” e ela é aceita quando “o enunciador encarna o Outro”.

Ao olhar a maioria dos presidentes latino-americanos, a mídia impressa brasileira constrói suas figuras como aqueles que são diferentes, estranhos, que provocam o medo ao colocar em questão nossos valores. Nesse sentido, a construção do enunciador nos convida à rejeição. Esses Outros-presidentes não são tratados sempre do mesmo modo, pois há diferenças construídas entre eles. Ao examiná-los, o enunciador os diferencia contra o fundo idealizado dos valores democráticos, que se encontram ao lado do “imaginário” brasileiro. Em sua dissertação, Rachel Mello oferece uma pista a respeito de quem é o Mesmo e de que modo ele se comporta em relação ao Outro:

O Mesmo, no discurso, é aquele que garante a história da ordem das coisas, entre elas, a ordem do discurso. O Mesmo é aquele que fala, é a primeira pessoa, o eu, o nós, o que conta a história, explica, reivindica, advoga, expõe suas opiniões. O Outro, no discurso, por sua vez, é o sujeito ao qual o discurso está interdito e/ou encerrado, conjurado. O Outro é a terceira pessoa, a pessoa sobre a qual se fala, mas que, quase sempre, não fala, ou melhor, não enuncia (Mello, 2009, p. 136).

Ao analisar O Globo, Mello (ibid, p. 158) trata “o Mesmo” como “o enunciador que monopoliza o cenário discursivo e diz, nomeia e classifica o Outro”, ou seja, a primeira pessoa que fala e constrói a figura desse Outro, “a terceira pessoa, a pessoa sobre a qual se fala”. Prado (2009 e 2011)11chama o Mesmo “ao conjunto dos espaços

sociais”, o espaço simbólico e imaginário que abriga os valores democráticos e liberais do enunciador. Contra ele é construída a figura das alteridades, que são menos ou mais toleráveis, ou perigosas, “figuras do imaginário que pertencem a uma parte do corpo

11 Não há nota de página nesta referência porque o tema abordado foi retirado de enunciados das

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social que não é a dos leitores”. O Outro pode ser carregado com valores negativos ou positivos.

A partir dessas primeiras considerações, defenderemos nessa pesquisa a posição de que outra visão da política latino-americana poderia ser contra-apresentada diante dos discursos descritos e narrados pela mídia. Resta saber se essa atuação da mídia em relação à política dos países latino-americanos se mantém uniforme ao longo do tempo ou apresenta variações no discurso, e se, ao construir seu discurso, quais diferenças políticas, econômicas e culturais a mídia brasileira estabelece entre o Brasil e os demais países do subcontinente.

Ao considerar o modo de vida capitalista, com seu regime político neoliberal, como superior ao discurso do Outro, a mídia avalia o espaço do Mesmo como mais civilizado que o espaço do Outro. O espaço do Mesmo é aceito como o da legalidade, enquanto o espaço do Outro é visto como aquele no qual se perpetua o não-legal, o civilizado em contraposição ao incivilizado. Mouffe (Op. Cit., p. 17) julga possível haver tal contraste entre posicionamentos democráticos, nos quais os excluídos se juntem a outras formas de democracia antiliberal em repúdio à democracia liberal, cuja “dimensão política se limita ao domínio da legalidade” e promete garantir liberdade para todos. Ao enaltecer a presença de uma imprensa livre de qualquer interposição do Estado, Bernardo Sorj (2010, pp. 12-3) adverte para o risco de as críticas constantes contra os políticos corroerem os valores da democracia, deslegitimando a existência de ambas, da democracia e da própria imprensa. Isso não significa que os políticos devem ficar imunes ao senso crítico midiático, mas o denuncismo infundado e a depreciação generalizada da classe política contribuem para a emergência de outros significados de democracia. Os pontos de vista unilaterais podem oportunizar esse espaço político para aventureiros antidemocráticos e autoritários.

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modo. Devemos lembrar que, não obstante as similaridades, os impérios ibéricos de Portugal e Espanha eram potências inimigas e seus territórios conquistados viviam sob constante tensão e, em outros momentos, em escaramuças. Mesmo depois dos processos de independência, o Brasil entrou em guerra contra a metade dos vizinhos de fronteira. No contexto midiático, a mídia brasileira erigiu um muro de separação entre o “nós” e os Outros.

A presença nos enunciados do Outro-presidente não indica a construção de figuras que deverão ser necessariamente objetos de crítica, preconceito e afastamento. Esse Outro-presidente, eventualmente, será aproximado do Mesmo se a alteridade for tolerável, caso contrário o Outro será rechaçado. O Outro, enquanto objeto de análise, representa também grupos diferenciados da sociedade, tais como os políticos, empresários, artistas, cidadãos anônimos, instituições, figuras do imaginário que podem ser “menos confiáveis ou mais perigosas, notáveis em suas diferenças, carentes estas de nossa atenção, na medida em que suas atitudes, formas de vida, culturas próprias nos atingem de modos mais ou menos intensos” (Prado e Bairon, Op. Cit., p. 253). Prado e Bairon mencionam as figuras do criminoso, do sem-terra, do árabe, do excluído e do miserável como aquelas figuras afastadas do espaço do Mesmo, sem direito a voz. No caso desta tese, os presidentes Hugo Chávez, Néstor e Cristina Kirchner se inserem no Outro-governo, cuja alteridade e dessemelhanças não se ajustam ao idealizado pela mídia. Enquanto isso, as figuras dos presidentes chilenos Ricardo Lagos e Sebastián Piñera são vistas dentro do espaço imaginário do Mesmo.

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lugares ou que viveram outrora”. O inimigo, aquilo que o “eu” teme e repudia, pode estar instalado dentro desse “eu” ou do “nós”.

À medida em que o Outro-presidente se torna mais, ou menos, similar aos líderes políticos do Brasil, a mídia reage construindo em sua agenda um imaginário da figura do Outro. Paulo Cunha F.º (2007, p. 207) afirma que “a relação nacional/estrangeiro no quadro das representações por outrem da cultura brasileira parece sempre instável”. Havendo similaridades, esse Outro não pode ser mais chamado de diferente, estranho, nem repelido, afastado, mas passa a se ajustar e se enquadrar ao espaço do Mesmo, o imaginário digno de imitação, idealizado pelo enunciador em seus textos.

5. Linha fronteiriça

Aproveitando-nos dos conceitos de Boaventura Santos (2010) a respeito das tensões entre os dois lados da linha fronteiriça que separavam as metrópoles europeias das colônias americanas, de modo análogo aplicamos essas tensões ao discurso das mídias brasileiras em relação às figuras dos líderes do continente. Para tanto, torna-se necessário investigar o corpus selecionado (Veja, Carta Capital, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo) e seus procedimentos quando produziram o conteúdo sobre o subcontinente, a fim de conhecer como os enunciadores brasileiros se expressam. A linha fronteiriça, proposta por Boaventura Santos, separando o Norte colonizador do Sul colonizado, pode ser aplicada à divisão dos universos entre o Mesmo e o Outro:

As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro (Santos, Op. Cit., p. 32).

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narrativas. Ao noticiar vida e obras dos presidentes latino-americanos, a mídia brasileira demarca uma linha fronteiriça, na maior parte das vezes separando dois espaços topológico-políticos, o do Mesmo e o do Outro. Isso ocorre quando esse Outro-presidente pode representar uma influência negativa e um risco à democracia defendida pelas mídias, aí colocadas como empresas capitalistas ligadas aos interesses de elites políticas e econômicas. Ao considerar o modo de vida, o regime político, ou qualquer assunto defendido relacionados ao Mesmo, como superiores ao discurso do Outro, a mídia avalia o lado de cá, o espaço do Mesmo, como mais civilizado que o lado de lá da linha fronteiriça (Santos, 2010), o espaço do Outro.

O estabelecimento da fronteira entre o Mesmo e o Outro é o modo de construir um espaço idealizado da política pela mídia em seus discursos. O posicionamento da mídia em relação ao Outro-presidente não depende de como o governo está construindo as relações com outros países, através da política do Ministério das Relações Exteriores. Trata-se de um posicionamento independente de cada veículo midiático em consonância aos interesses editoriais. Em 2000, o governo de Fernando Henrique Cardoso defendeu junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) o direito do peruano Alberto Fujimori ao terceiro mandato, enquanto a mídia brasileira o chamava de “ditador”. Isso não significa que a mídia seja homogênea nas narrativas. Carta Capital demonstrava ser moderada em relação ao chavismo, às vezes simpática ao presidente venezuelano, mas Veja, Folha e Estadão chegavam aos extremos da crítica depreciativa a esse Outro considerado ameaçador. Mesmo quando emerge um presidente do lado de lá com elevados índices de aceitação pública, ainda assim os discursos midiáticos conseguem salientar alguma característica negativa do Outro, caso do chileno Piñera, tratado com desconfiança por Carta em razão de seu vínculo junto ao partido que referendou a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-90).

6. Novos olhares sobre as mídias

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religião, comunicação e semiótica, linguística e antropologia e outras interações envolvendo essas áreas. A maior parte delas foca mais as relações econômicas e as tendências de integração de mercados entre os países latino-americanos. Armand e Michèle Mattelart (2009, pp. 118-9) consideram a América Latina como o “centro das controvérsias” e de confronto entre as potências dos Hemisférios Norte e Sul, situando-a “na vanguarda nesse gênero de estudos” porque as mídias e os estudos sobre elas se desenvolveram muito mais neste continente do que em outros. Steinberger (Op. Cit., p. 239) sustenta que determinados ajustes históricos, políticos, culturais e econômicos ocorridos nas últimas décadas na América Latina impactaram as práticas e os fazeres jornalísticos.

A necessidade de compreender os discursos e os efeitos de sentido gerados pelos impressos brasileiros ao construírem as figuras dos presidentes de países latino-americanos, torna esta tese relevante. As constantes mudanças no cenário político continental e as diferentes interpretações conceituais de democracia exigem novos olhares para o entendimento do tipo de política que se faz nessas nações e a forma de ver seus presidentes a partir das construções discursivas das mídias. O’Donnell (Op. Cit., p. 12) concorda que há muita “confusão e desacordo sobre como definir democracia”. Sem dúvida, a falta de democracia pode resultar em risco à liberdade, restando conhecer de que modo os impressos discorrem sobre o assunto. É imprescindível explicitar as características atribuídas aos presidentes e as oposições existentes entre aqueles que chamaremos de Outro-presidente. Tais oposições se referem aos atributos conferidos aos presidentes e não às qualidades dos países os quais eles representam, pois a mídia tratou esses governantes ora com entonações negativas, ora positivas. Na Argentina, Cristina Kirchner é caracterizada depreciativamente pelas mídias brasileiras, enquanto Néstor Kirchner chegou a receber melhor acolhimento. Caso semelhante se verificou no Chile, no qual Augusto Pinochet e Ricardo Lagos apareceram em posições adversas e Sebastián Piñera não é uma figura unanimemente positiva na mídia brasileira. Nestes poucos exemplos, destacam-se os partidarismos diversificados em relação aos presidentes e não aos países liderados por eles.

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pode apresentar pontos de vista diferentes de um determinado fato. Parafraseando José Arbex Jr. (2000, p. viii), o que se contempla “não é ‘o’ mundo, mas ‘um’ mundo”, entre diversas possibilidades de assimilação dos eventos. O que poderia ser interpretado e compreendido com métodos tradicionais usados por outros pesquisadores, segundo Fairclough (Op. Cit., p. 44), a análise de discurso crítica tem condições de ampliar, de modo a complexificar o leque de visões sobre os fatos. Ou seja, o fato é sempre interpretado. A polissemia dos significantes, tais como a democracia, aumenta a compreensão do significado dos fazeres midiáticos. Diante dessa possibilidade, também recorremos à teoria do discurso de Laclau (1996 e 2010) e investigamos como ocorre a invenção do Mesmo e do Outro na mídia semanal (Mouffe, 1996, 2000 e 2005, e Prado, 2007, 2009 e 2011). Outro modo de compreender essa temática pode ser estudado por meio dos regimes de visibilidade do Mesmo e do Outro. Prado (2009)12 diz que tais regimes buscam “fazer entender quais temas e objetos sociais são agendados para os públicos e quais não se tornam visíveis”, de que maneira os temas visíveis são construídos e quais contratos comunicacionais dos media propõem mapas cognitivos aos leitores.

As análises recortam os períodos de mandato dos presidentes Hugo Chávez, da Venezuela; Néstor e Cristina Kirchner, da Argentina; e Ricardo Lagos e Sebastián Piñera, do Chile, esclarecendo-se que o Brasil é considerado o mais importante referencial para seus vizinhos, segundo as mídias, posicionando-o na condição de “grande solista”, deixando os demais em estamentos secundários e subalternos. Em cada capítulo da tese, investiga-se um grupo de reportagens, compartimentado em quatro blocos de acordo com os veículos analisados. Desse modo, as análises desta tese examinam narrativas midiáticas, suas estratégias discursivas e os contratos de comunicação a partir da análise de discurso, a fim de compreender como os enunciadores operam na construção das alteridades.

Outro aspecto a estudar é a “intertextualidade manifesta”, uma das dimensões do conceito de “intertextualidade”, proposta por Fairclough (2008) e que serve de base para um melhor entendimento das rotinas midiáticas. Além disso, é um modo de recontextualizar os textos, concedendo-lhes novos olhares sobres as questões em

12 Não há nota de página nesta referência porque o tema abordado foi retirado de um enunciado da

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discussão. Quando o enunciador conecta um fato a um contexto mais amplo a fim de conferir significado e sentido aos relatos, ele precisa empregar as vozes interlocutoras. A dimensão da “intertextualidade manifesta” auxilia a compreensão da acentuação conflituosa das diferenças com o Outro, mapeando as construções ideológicas, avaliando o enquadramento e determinando seus atributos, conferindo-lhe sentido positivo ou negativo. As diferentes vozes caracterizam os discursos midiáticos referentes ao Outro, que será enfatizado, reduzido ou aceito. Essa forma de recorrer a outras vozes, fontes e mesmo se interpor a outros enunciados, conceitua os princípios da representação do discurso, a pressuposição, a negação, o metadiscurso e a ironia (Fairclough, Op. Cit., pp. 44 e 152). É uma forma de recontextualizar os textos em um novo contexto (Resende e Ramalho, 2006, pp. 100-1), concedendo-lhes outros olhares sobres as questões em discussão. Para Fairclough (ibid, p. 275), não existe um método fechado para a análise de discurso crítica. Cada um pode discuti-la livremente, adaptando-a às necessidades requeridas pelos pontos de vista de cada pesquisador. Segundo Steinberger (Op. Cit., p. 271), a análise de discurso indica o caminho para a construção de uma teoria crítica dos fazeres jornalísticos. A mídia constrói figuras que ora serão rejeitadas, ora aceitas. Isso depende de como os atributos desse Outro se destacam, cuja polaridade pode variar negativa ou positivamente, indicando suas características, conforme avalia Maxwell McCombs (2009, p. 113). As intervenções teóricas se desenvolvem em conformidade às observações sobre o conjunto de dados coletados das narrativas, tendo como parâmetro quatro variáveis: os atributos conferidos pelas mídias ao Outro segundo o contrato comunicacional; as palavras de ordem que totalizam os discursos; os estilos de governar do Outro-presidente determinados pelos veículos midiáticos em suas narrativas; e os efeitos do medo do Outro percebidos pelas mídias.

Referências

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