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Capítulo 2 – O enquadramento da mídia do estilo kirchnerista de governar

2.2.1. Veja: Estilo K, de confrontação

A inimizade de Veja com os argentinos é tão notória que, entre Lula e Néstor Kirchner, o enunciador preferiu tecer atributos positivos ao presidente brasileiro que, em outras edições, era alvo de críticas. Em “Vizinho na contramão” (11/5/05), Lula foi reconhecido como aquele que “escolheu a política econômica certa” em contraste à questionada decisão de Néstor quanto ao futuro econômico da Argentina. Para o enunciador existiam duas explicações para o crescimento do Brasil, bem como duas para as medidas arriscadas de Néstor.

Em primeiro lugar, “Lula reinventou-se no governo”, para não cometer “bazófia”, ou seja, excesso de vaidade. Depois, “o governo Lula não é de esquerda nem de direita. É de bom senso”, ao contrário do governo de Néstor, que caminhava na direção oposta à delineada pelo governo brasileiro. Os riscos adotados por Néstor podiam ser compreendidos devido a um problema de personalidade e por motivação ideológico-partidária. Atribuíram-se a Néstor o mau humor e a amargura, ambos direcionados ao Brasil. Essa indisposição ocorre por que “toda vez que a economia de um deles atinge velocidade superior à do outro, surgem atritos diplomáticos”. A fim de assegurar a governabilidade, o argentino também “adotou medidas populistas que colocaram a economia para andar a qualquer custo”, mesmo que fosse preciso, “na melhor tradição populista”, providenciar “um bode expiatório” para os problemas.

Para mostrar que Néstor pavimenta a estrada da inimizade com o Brasil, o enunciador transcreve uma declaração do presidente divulgada pela mídia argentina, na qual ele critica o empenho do Brasil em conquistar um assento no Conselho de Segurança da ONU: “Se há um posto vazio na Organização Mundial do Comércio, o Brasil quer. Se há um lugar na ONU, o Brasil quer. Onde há uma vaga, o Brasil quer para ele... Até queriam ter um papa brasileiro!” Para entender como as interações do “nós” com “eles” se desintegraram para as relações de “amigo” versus “inimigo” e de que modo essa situação pode se reverter, Mouffe (Op. Cit., pp. 13-7) considera alguns pontos interessantes: 1) O Outro nega a identidade do Mesmo; 2) É preciso redefinir a fronteira amigo-inimigo; 3) O Outro pode ser inimigo ou adversário; 4) Não havendo identificação, novas formas ocupam o espaço vazio.

Ao ponderar que da relação amigo-inimigo emergem os antagonismos, denota-se em primeiro plano que existem diferenças entre ambos, posicionamentos contrários de

ideias. Laclau (1996, p. 72) afirma que “cada elemento do sistema só tem uma identidade à medida em que é diferente dos outros”. É pela diferença percebida no Outro que o sujeito se identifica e o trata como amigo ou inimigo. Tais antagonismos, segundo Mouffe (Op. Cit., p. 13), podem ser construídos sob os pontos de vista religiosos, étnicos, econômicos e, evidentemente, políticos. Ao determinar a existência de um Outro e este negar a identidade do “eu” ou do “nós” no espaço do Mesmo, estão propícias as condições emergentes do antagonismo, das diferenças entre o sujeito “nós” e o sujeito “eles”. Ao agendar as temáticas dos presidentes, a mídia constrói figuras a serem desprezadas ou apreciadas, posicionando-as na condição de amigo ou inimigo.

A compreensão do significado da “negação da identidade” pelo Outro é vista quando o “eu” ou o “nós” não contempla no “ele” ou “eles” suas características, suas particularidades. Não se trata de uma manifestação dialógica na qual o Outro não aceita o lado de cá, o do Mesmo. Cunha F.º (2007, p. 206) explica que “cada representação que os estrangeiros fazem do Brasil ou dos brasileiros é instantaneamente alegorizada e produz curtos-circuitos identitários entre a imagem e o referente, num processo que atinge dimensões efetivamente críticas”. Mídia e governo são os causadores desse “curto-circuito” nas relações identitárias. A paridade cambial afundou a economia Argentina e o enunciador demonstrou sarcasmo para com os portenhos. A estabilidade brasileira nega a instabilidade econômica argentina. Vendo a instabilidade do Outro, a mídia reforçou a potência do Brasil, diminuindo esse Outro e, eventualmente, ridicularizando-o. O enunciador fez uso de dois interlocutores críticos à política adotada pelo governo de Néstor, um deles argentino. O analista político Rosendo Fraga, de Buenos Aires, elogiou “o rumo da prudência econômica e política escolhido pelo governo brasileiro” e condenou os resultados da “delinquência econômica adotada pela Argentina” de Néstor. Com o intuito de posicionar o Brasil como amigo e investidor na Argentina, o ex-embaixador brasileiro em Washington e Londres, Rubens Barbosa, lembrou que “na atual situação, o Brasil é um dos raros países que se arriscam a investir na Argentina”. Era o governo de Néstor que se revelava incomodado.

A reportagem “O kirchnerismo ficou viúvo” (3/11/10) esclareceu como o “estilo de governar marcado pela confrontação e pela centralização das decisões” instaurou o temor da “perpetuação dinástica” sob o “cetro” de Cristina Kirchner, a herdeira da renovação eleitoral à frente da presidência. A passionalização do Outro-presidente apareceu de diversos modos em cada veículo midiático do corpus durante os períodos analisados (2005 e 2010). O estudo das paixões recebe destaque, pois, segundo Eduardo

Piris (2010, p. 2), revela “a ideologia manifestada pelos discursos que se inscrevem em uma dada formação discursiva que, no limite, pode ser entendida como a identidade de uma nação”. O efeito causado pelo discurso da mídia brasileira aproxima ou afasta o Outro-presidente do enunciatário e suscita a emergência de preconceitos e estereótipos em torno das figuras desses líderes políticos. Um discurso que provoque o afastamento do Outro serve como parâmetro para salientar a identidade do “eu” e do “nós”, estabelecendo que o espaço topológico do Mesmo é superior ao do Outro. As mídias constroem, segundo Prado (2009), “narrativas passionalizadas, criando em seus leitores o efeito do medo” com a “função pragmática de fazer encarnar os discursos em seus públicos”. Na composição da passionalização, os sujeitos detêm paixões malevolentes ou benevolentes. O enunciador passionaliza o Outro diferente como malevolente, enquanto o Outro igual será tratado, no mínimo, com tolerância. A diferença sugere a existência do preconceito, o ponto de vista pré-concebido, o sentido formatado com antecedência.

A partir da pré-concepção, reproduz-se o estereótipo, um conceito aplicado a circunstâncias específicas (Alsina, 2009, p. 275). Os estereótipos erigidos pela mídia recebem reforço e conquistam espaço devido à constante repetição dos discursos ou, conforme Laclau (2010, p. 94), pela totalização discursiva. Adaptando um exemplo dado por Laclau, pode-se afirmar que é por meio da “demonização” do Outro-presidente que o discurso midiático “alcança um sentido de sua própria coesão”. Segundo Landowski (Op. Cit., pp. 13 e 15), nenhuma das expressões empregadas “é inocente”, tenham elas caracterizações negativas ou positivas. Ao agendar sua produção, a mídia enquadra as figuras dos presidentes. Quando os nomes começam a ser visualizados por meio de estereótipos e estes adquirem configurações intolerantes, o leitor pode sofrer a desilusão, o desengano, o malogro, a angústia, a cólera, a zombaria, o escárnio, a hesitação, a insegurança, o ódio e o medo. O enunciatário entra eventualmente nessa passionalização somente na medida em que desenvolve a leitura do texto midiático. Com isso, edifica-se uma barreira a fim de demarcar a alteridade crítica que separa o “nós” do Outro.

Veja esclareceu que “o estilo K era o da confrontação”, pois “qualquer ameaça a

seu poder era repreendida com violência”. A morte de Néstor teve dois efeitos: um novo morto a ser cultuado no “panteão do que há de pior no populismo” continental e a estrada política aberta para Cristina. Para Veja, o populismo latino-americano é uma forma de projetar líderes, que se tornarão autoritários, respaldados pelos votos nas

urnas. Laclau (Op. Cit., pp. 11, 91 e 206) percebe muitos significados, deixando o populismo “vago e indeterminado”, “um modo de construir o político”, espaço da indecidibilidade “entre a função hegemônica do significante vazio e a equivalência das demandas particulares”. O espaço da indecidibilidade é o terreno no qual qualquer decisão pode ser tomada. Pelo fato de os Kirchner chegarem ao poder pela via democrática da eleição, mas usarem o expediente do autoritarismo e do confronto com as instituições democráticas e o Brasil para se conservar à frente do governo, o enunciador desconfiou das intenções do Outro-presidente. A narrativa mostrou características do governo de Néstor e o projetou como mais um ícone populista dos argentinos, expondo pontos de vista depreciativos e construindo o “sujeito da malevolência”, expressão de Barros (1994, p. 52), que significa condutor da antipatia, da desconfiança, da prudência, da expectativa e do medo quanto ao mandato de Cristina Kirchner.

Quando existe ameaça de forças externas mais poderosas que o próprio indivíduo, receio do fracasso diante de uma tarefa, temor pelos resultados de uma empreitada, ansiedade pelo desconhecido, eventos que trazem preocupação e apreensão, o medo aflora e, por extensão, provoca repulsa, rejeição. O medo é um efeito de sentido passional produzido pela modalização do ser, conforme Barros (ibid, pp. 46 e 48). O sujeito não quer ser como o objeto de valor em referência. Ele o rejeita, demonstra aversão a tudo o que ele representa. Não é à toa que “segurança” aparece na mídia como uma das fortes demandas requeridas pela sociedade latino-americana. Havendo segurança, a democracia tem mais lastro para se materializar. Comentando a recessão econômica, ingovernabilidade política no continente e o modo pelo qual os governos reagem à globalização neoliberal, Jesús Martín-Barbero (2006, p. 51) sublinha a violação das liberdades pelas autoridades como “efeitos da mais arcaica peste do medo que fundamentaliza a segurança”. Para ele, essa transformação aprofunda as divisões fronteiriças e intensifica os extremismos, os preconceitos de ordem étnica e social e as obstinações ideológicas, sejam elas de natureza mística ou política.

Presidentes legitimados no poder pelo voto continuam sendo objetos de confiança. Todavia, há aqueles que desprezam o processo eleitoral democrático. Ao analisar as manifestações em diversos países contra os políticos corruptos, contra ditadores sanguinários e a favor de aberturas políticas e mais liberdade, Nicholas

Kulish35 salienta pontos comuns aos manifestantes de vários países que protestam contra a classe política e demonstram não mais acreditar nas urnas: “A desconfiança, ou até o desprezo, em relação aos políticos tradicionais e ao processo democrático presidido por eles.” Esses grupos de protesto reclamam da alienação dos líderes políticos em relação aos temas “segurança”, “crise econômica”, “desemprego” e “desigualdade social”. A decepção com os governantes eleitos para solucionar problemas, mas que permanecem arraigados na corrupção, gera raiva. Quem passionaliza segundo o percurso do medo é a mídia.

Ao contrário dos partidários de líderes que tomam as rédeas com o objetivo de atender as demandas, mesmo que isso implique no sacrifício das liberdades, esses manifestantes não apoiam a subida de ditadores ao poder. Eles querem ser ouvidos, no entanto “não sabem a quem recorrer”, e a mídia tenta provocar o temor ao construir os discursos midiáticos. A confiança depositada inicialmente pelo sujeito em seus líderes, a fim de se apropriar de determinados valores, aumenta a crença do sujeito nessa aquisição.

Para configurar o “estilo K”, Néstor aumentou os gastos de governo e provocou a inflação. Em seguida, tentando conter a sangria nos cofres públicos, congelou preços, maquiou estatísticas e impôs “limites à venda de carne para o exterior”, instaurando um conflito com o jornal Clarín. O enunciador de Veja destacou que, apesar da crise econômica, o patrimônio da família presidencial “cresceu 710%, chegando ao equivalente a 24 milhões de reais”, graças a informações privilegiadas obtidas no ramo imobiliário. As atitudes dos Kirchner frente à liberdade de imprensa causaram apreensão em Veja. A revista fez uma aposta: “Os próximos doze meses mostrarão se o kirchnerismo morre com Kirchner ou se sobrevive nas mãos de Cristina.” O enunciador torceu pelo pior resultado: para Cristina.