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Folha de S.Paulo: Pela Concertación Democrática

Capítulo 3 – A Concertación chilena e a linha fronteiriça

3.1.2. Folha de S.Paulo: Pela Concertación Democrática

Em princípios de 2000, emergia a dúvida sobre como Ricardo Lagos reagiria à volta de Pinochet ao país e aos possíveis levantes dos militares apoiados pela direita opositora. A série de reportagens da Folha (11/3/2000), encabeçada pela matéria “Lagos quer ficar fora do caso Pinochet”,

apontou para outra direção, a da euforia pela terceira conquista consecutiva da

Concertación e as respostas pragmáticas do novo presidente às provocações de Pinochet e seus asseclas (Figura 28).

Sensível, ético e conciliador para o enunciador, o socialista Ricardo Lagos representou o pensamento democrático da esquerda, inicialmente temido pelos direitistas que apoiaram o golpe de Augusto Pinochet contra Salvador Allende.

Contudo, o medo desse Outro, também expresso pela mídia antes da posse, desvaneceu- se à medida que a figura dele recebeu novos contornos. O enunciador da Folha valorizou a sensibilidade humana e a ética demonstradas por Lagos durante a prisão e as complicações de saúde de Pinochet na Inglaterra, não atacando o ex-ditador e se focando na campanha à presidência, fato percebido em momento posterior, quando o presidente chileno se recusou a tecer comentários a respeito da política dos países sul- americanos, pois, segundo ele, seria deselegante.

Acima do título, o enunciado determinava o perfil de Lagos: “Novo presidente, que toma posse hoje, rejeita interferência de militares e diz que eles têm de ‘olhar para o futuro’.” A rejeição de Lagos pela ingerência das forças armadas, tornava-o aceitável pelas mídias. “Olhar para o futuro” significava ter os projetos voltados para o desenvolvimento e não para tentativas frustradas de retrocessos e catastróficas refundações. Isso não significava que Lagos ignorasse os excessos cometidos durante o regime militar e deixasse de punir os responsáveis. Em seu mandato, de acordo com Cavarozzi (2010, p. 34), uma emenda constitucional eliminou o cargo dos senadores vitalícios, privilégio do qual participava Pinochet. Mais adiante, o comando das forças armadas foi restituído ao presidente, extinguindo definitivamente qualquer possibilidade de veto por parte dos militares. Ao tomar essa atitude, Lagos solidificou a restauração da democracia, impedindo perspectivas legais de retorno ao autoritarismo. Todorov (2010, p. 34) sustenta que “o Estado liberal é mais civilizado que a tirania por garantir a mesma liberdade para todos. A democracia é mais civilizada que o Antigo Regime”. Lagos era o “civilizado”, cujo governo democrático se antepôs à ditadura militar do “bárbaro” Pinochet. Lagos era o Outro-amigo, aquele de quem o Brasil deveria se aproximar, segundo a Folha, e Pinochet era o Outro-inimigo, de quem o Brasil teria de se afastar, aquele que perdeu o verniz da dignidade humana, embrutecendo-se.

Aqueles que lograram escapar da perseguição à oposição no Chile, indo para o exílio, principalmente à Escandinávia, conviveram em outra realidade de regimes socialistas. Ao voltarem para compor a Concertación, esses líderes romperam com os projetos do tempo de Allende. Lagos também era o presidente “dos novos tempos”, simbolizado pela “fachada do palácio presidencial [...] pintada de branco luminoso”. O enunciador aproveitou para destacar a metáfora citada por Lagos a respeito da nova pintura: “Essa é uma boa imagem do que temos pela frente. Só uma fachada do La Moneda está branca. As outras três ainda não foram pintadas. É um pouco a situação do país: a maior parte do esforço ainda está por fazer.” Essa maior parte representava ¾ de

demandas a serem atendidas, interpretando-se que os dois primeiros governos da

Concertación – Patrício Aylwin e Eduardo Frei – atenderam apenas o primeiro quarto das demandas. Sua visão pragmática e a preferência pela ação rápida diante das exigências conferiram a Lagos o respeito que conduziu à aceitação, à encarnação de uma figura com atributos positivos diante da mídia.

Ao exaltar um aspecto da democracia, Lagos manifestou submissão a quem o elegeu. O fascínio inicial conquistado pelo estado eufórico ocorreu por que ele estimou a derrota de Pinochet no plebiscito de 1988 “infinitamente mais forte, alegre e emocionante do que a que quando ganhei a presidência”. Para Lagos, a extinção do Estado autoritário tinha mais importância do que a terceira vitória da Concertación, e a democracia pressupunha o diálogo entre todos os partidos políticos sem qualquer ingerência de um poder sobre o outro. Segundo O’Donnell:

Ao se confrontar com um poder terrorista (desde um Estado até um pai violento), o indivíduo é privado de estruturas básicas de sociabilidade e, em consequência, também de apoios sociais essenciais. Solidão, temor, frio, escuridão – esta é a experiência de seres humanos aterrorizados (O’Donnell, 2011, p. 162). Outra descrição de Lagos que seduziu o leitor pela simpatia, delineou-se no texto anexo “Saiba quem é o novo presidente chileno” (11/3/2000). O enunciador narrou que os muitos erros de campanha eleitoral sinalizavam seu querer em não buscar seduzir o eleitor: “Procurava, professoralmente, ‘ensiná-lo’ sobre a justeza de suas propostas.” O afeto que levava à aceitação se descreveu no contraste de suas figuras enquanto professor e como político: como professor, “a portas fechadas, comportou-se como um maquiavélico chefe de departamento de universidade: centralizador nas decisões e grosseiro nas cobranças”; mas na condição de político, a figura anterior “contrasta com a imagem que pondera firmeza e afabilidade que aos poucos os chilenos passaram a ter dele”, pois “é sincero ao afirmar que é preciso contornar as desigualdades do capitalismo por meio de pesados investimentos sociais”. A figura que pretendia se solidificar era a segunda, a de um político que acionava a paixão da simpatia pela delicadeza nas relações político-institucionais, pela cortesia com a oposição. O fascínio dos chilenos por Lagos se concretizou quando, próximo ao final de seu mandato, ele obteve ampla aceitação popular, fato confirmado por Waissbluth e Inostroza (2007, p. 293). Lagos representou o Outro ajustado ao ideal democrático do Mesmo. A mídia tanto poderia reduzi-lo ao Outro-parceiro como encarná-lo como o Outro-amigo. Por ser

antagônico ao tirano Pinochet, que “pertenceu ao subgênero de regimes antidemocráticos” (Cavarozzi, Op. Cit., p. 32) e despóticos, o presidente Lagos foi identificado à ideologia pró-democracia do enunciador da Folha.

Uma vez eleito, Lagos estendeu a visão de democracia, descrita pela Folha em 2000 e 2005 (“Lagos assume a presidência do Chile”, 12/3/00). Para Lagos, na democracia chilena as forças armadas cumpriam o papel institucional de obediência ao presidente eleito pelo povo, ponto de vista compartilhado pelo ex-presidente Eduardo Frei: “O mundo está nos olhando, é uma festa de democracia.” As demandas democráticas se direcionavam também à redução das desigualdades, como na saúde, justiça, habitação e livre comércio.

Durante a campanha presidencial de 2010, a Folha concedeu destaque somente ao candidato da situação, Eduardo Frei, que já havia governado o país entre 1994 e 2000. Três títulos de reportagens associados às fotos comprovam a escolha editorial e ideológica do enunciador da Folha:

1) “Frei encosta em Piñera e acirra campanha no Chile” (14/1/10). Ao lado, a imagem de um cartaz com o rosto de Frei; 2) “Governo faz ofensiva final em pleito chileno” (16/1/10). No meio da página, a foto estourada de Frei tremulando uma bandeira do país; 3) “Chile vota sob

a sombra do desgaste da Concertação” (17/1/10) (Figura 29). Novamente, outra foto no meio da página realçando uma bandeira com o nome de Frei. O uso de aspas em “nova direita” pela Folha, referindo-se ao partido de Piñera, servia de alerta do enunciador. Significava a volta ao poder de simpatizantes do regime de Pinochet e emparelhava os aliados do então candidato à figura errática da Nova Direita norte-americana, cujos pressupostos se enraízam no fundamentalismo extremo de protestantes do Partido Republicano. Tais desconfianças se evaporaram com a lembrança de que Piñera votou contra o prolongamento de Pinochet no poder por ocasião do plebiscito de 1988. A transição de poder, de Bachelet para Piñera, foi vista como cordial. Embora a ojeriza por Piñera e afeto por Frei se manifestou durante a reta final das eleições, a Folha mudou de posicionamento e desenvolveu discurso mais próximo ao eleito, nove meses depois (“Acidente não abala economia chilena”, 14/10/10).

No artigo “Piñera rasga script do duelo entre a direita e a esquerda” (14/10/10), o presidente foi apresentado como reunificador da coalizão de partidos em prol da democracia e conciliador diante das divergências que afluíram depois do terremoto, sete meses antes do desastre com os mineiros de Copiapó. Sua popularidade despencou e a crise política conduziu os partidos para a deslegitimação da “Coalizão para a Mudança”. Então aconteceu o acidente com os mineiros, que ficaram presos a setecentos metros de profundidade. Piñera soube aproveitar o momento para tentar recuperar sua credibilidade, descrita na reportagem “Em festa, Chile conclui resgate de mineiros” (14/10/10).

Depois do terremoto e das dificuldades em recuperar os estragos causados à economia no sul do país, a popularidade de Piñera despencou. Cinco meses adiante, 33 mineiros ficariam soterrados em uma mina, no norte chileno. A região na qual ocorreu o acidente estava “coalhada de governos com vários matizes de esquerda”, o que deixava Piñera isolado. Ilhado no Chile, ilhado também na América do Sul, Piñera estava cercado por presidentes de centro-esquerda e populistas. O presidente colocou em prática suas habilidades empresariais que o tornaram o homem mais rico do país e tratou de assumir a responsabilidade de salvar as vidas dos mineiros. O interlocutor Patricio Navia, sociólogo, percebeu que o resgate transformou de vez o presidente, “dentro e fora do Chile, num personagem complexo” e, por que não, midiático. Navia esperava que Bachelet se comovesse, caso ela estivesse na presidência, mas esta “foi uma oportunidade de ouro para Piñera mostrar que um empresário de direita também pode fazê-lo”. O enunciador pesou a reação de Piñera como a “coroação da atitude mais pragmática e negociadora” que um presidente poderia alcançar.

Piñera não distinguiu preconceituosamente as correntes políticas, tanto que, durante o resgate dos mineiros, abraçou o presidente boliviano Evo Morales (Folha, “Presidentes faturam resgate de mineiros”, 14/10/10). Piñera apareceu como negociador, líder capaz de unir forças com opositores em prol de uma causa, focado no resgate dos mineiros. Piñera chegou a receber pessoalmente, sem desprezo ou divergência, o presidente Morales. A Bolívia reivindica há décadas parte do território chileno, no extremo-norte, a fim de obter uma saída para o Oceano Pacífico. Piñera se comportou como um anfitrião cavalheiro, projetando sua figura além das fronteiras físicas do país. Este evento surgiu como oportunidade para o presidente chileno reequilibrar as forças políticas internas, solidificar a democracia e iniciar um diálogo externo com vizinhos arredios, como Morales. Todorov não avalia a democracia tendo

por parâmetro apenas uma característica, a da existência de eleições livres, mas compreendendo-a como um amplo conjunto de atributos:

O regime democrático não se define por um traço único, mas por um conjunto de características que se combinam para formar um arranjo complexo, em cujo seio elas se limitam e equilibram mutuamente, pois, mesmo sem estar em contradição frontal uma com a outra, têm fontes e finalidades diferentes. Se o equilíbrio for rompido, o sinal de alarme deve ser desencadeado (Todorov, 2012, p. 15).

O enunciador revelou um Piñera que atua sem fazer uso da acomodada definição clássica de democracia de que basta ser eleito e conservar a alternância de poder. A

Folha simpatizou com um presidente ativo e reativo, disposto a atender as demandas. Seu estilo não evocava a paixão do medo. Pelo contrário, tornava-o um objeto cobiçado pela mídia. O fato de Piñera ser o primeiro bilionário do Chile impulsionou a Folha a confirmá-lo como liberal, empresário de centro-direita – e não mais de direita – e de argumentar que sua riqueza resultava da capacidade e não de privilégio (“Chile vê ascensão de nova direita”, 16/1/10). O enunciador ressaltou, ainda, que logo depois de eleito, Piñera transferiu as redes de tevê para uma fundação e colocou à venda a companhia aérea LAN Chile a fim de evitar especulação e críticas da nova oposição.