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Capítulo 1 – O enquadramento da mídia do estilo chavista de governar

1.1.2. Carta Capital: Modelo de liderança

As experiências como criador e diretor de novos veículos midiáticos vivenciadas pelo jornalista Mino Carta solidificaram a intenção de formar uma revista tecnicamente livre dos preceitos normativos de manuais de redação, sem imposições de estilos ou categorias textuais, amarras coercitivas da criatividade. Mino já havia instituído as revistas Quatro Rodas e Veja, da Editora Abril, e a IstoÉ, da Editora Três, além da

20 Segundo McCombs (2009, p. 137), enquadrar é o modo como se organiza o assunto central de uma

pauta noticiosa, como ela é selecionada, apurada, editada. O enquadramento ou o foco negativo ressalta situações depreciativas, críticas desmoralizantes, antipáticas ao sujeito descrito, enquanto o enquadramento positivo enaltece, elogia, exalta, apoia, constrói considerações favoráveis.

tentativa de criar um diário, o Jornal da República, quando decidiu estabelecer seu próprio negócio com a revista Carta Capital, a princípio voltada para as temáticas de economia e finanças. Desde seu primeiro projeto lançado na Abril, passaram-se 34 anos até o nascimento de Carta Capital, empreendimento que Mino gostaria de haver desenvolvido em Veja e IstoÉ, mas fora impedido pelos proprietários destas mídias.

Em resposta a Mario Sergio Conti (1999, pp. 68-77), ex-diretor de redação de

Veja, crítico de seu trabalho na revista, Mino rebateu com o romance O Castelo de

Âmbar,21 no qual desenvolveu, em um ambiente ficcional, comentários desabonadores a respeito da estrutura de uma instituição não nomeada. Se essas condenações se dirigiam à Abril, apenas seu autor poderá ratificá-las. Em outro momento de análise da mídia brasileira, Mino instalou a Folha no rol de “exemplo clássico de jornalismo medíocre e daninho” porque se comprometeu ideologicamente “de maneira grotesca”22 a servir os poderes constituídos. Com isso, pode-se depreender alguns dos motivos pelos quais se percebem dessemelhanças entre os demais impressos em relação à Carta Capital. No artigo “A TV Cultura não é pública. Ela é tucana”, Mino23 deixou claro aos leitores seu posicionamento favorável à democracia e contrário à Folha, Estadão e Veja. Ele reclamou da acusação de ser chapa-branca por apoiar as candidaturas de Lula e Dilma à Presidência da República, dizendo ser um direito de Carta tal qual se sucede em outras democracias. Mino chamou as demais mídias de hipócritas em sua pretensa isenção política porque elas exprimem “as vontades da casa-grande”, referindo-se ao partido governista do Estado de São Paulo, o PSDB, e sua relação com a Folha, Estadão e Veja, aos quais ofereceu o espaço público na TV Cultura com o objetivo de angariar apoio nas eleições municipais de 2012. Carta ficou do lado de fora da lista palaciana.

Seu foco na economia e política nacional afastou Carta das questões internacionais, deixando pouco espaço para os discursos latino-americanos. Os enunciados não são tão extensos como nos demais veículos. Em algumas edições, chegam a ter no máximo o tamanho de uma nota contendo dois parágrafos. Em “Será

21 CARTA, Mino. O Castelo de Âmbar. Rio: Record, 2000.

22 CARTA, Mino. Mino Carta defende o fim da padronização textual. Canal da Imprensa, Engenheiro

Coelho, 2 out. 2002. Entrevista. Disponível em:

<www.canaldaimprensa.com.br/canalant/anteriores/quartaedição.asp>, 4 ed. Acesso em: 13 set. 2011, e < www.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/da091020021p.htm>, 729 ed. Acesso em: 20 jan. 2013.

23 CARTA, Mino. A TV Cultura não é pública. É tucana. Carta Capital, São Paulo, 16 mar. 2012.

Disponível em: <www.cartacapital.com.br/sociedade/a-tv-cultura-nao-e-publica-ela-e-tucana>. Acesso em: 20 jan. 2013.

que desta vez é para valer?” (19/1/05), o enunciador evitou tecer atributos ao presidente Chávez e perguntou se algum dia a Venezuela poderia servir de parâmetro para o Brasil. Os atributos não se encontravam no texto, mas Carta deixou subentendido que Chávez cumpria suas promessas enquanto governante: “Em ato público na capital, o presidente Hugo Chávez promulgou uma nova reforma agrária ante milhares de camponeses e prometeu redistribuir cem mil lotes nos próximos seis meses.”

Prado (2009) considera que as figuras midiáticas “foram pautadas para se tornar visíveis e tematizadas segundo estratégias discursivas e contratos comunicacionais específicos”. Veja se insurgiu contra o chavismo, pois não mencionou as obras acabadas de Chávez, apenas detratou as mudanças implantadas pelo presidente venezuelano. Já

Carta optou por outro discurso, o de não-inimiga do estilo populista do presidente venezuelano. Em um artigo publicado pela Folha (“Populismo não é um conceito pejorativo”, 7/5/2006), Laclau explica o chavismo como o regime “que mais se aproxima do populismo clássico pelo fato mesmo de que havia ali um sistema político podre, com uma base clientelista” antes de Chávez chegar à presidência. Antes “havia demandas que ninguém podia canalizar dentro do sistema político” e Chávez convocou os cidadãos a fim de “participarem do sistema político pela primeira vez”. Para Laclau, ocorreu uma identificação das massas com o líder “por meio de mecanismos populistas”, não-autoritários, pois a mobilização não partiu de Chávez, mas da sociedade. Forças diferenciadas agiram em prol de uma causa, sendo suturadas no ponto nodal.

Segundo Daniel de Mendonça (2006, pp. 147-8), o ponto nodal articula uma ordem entre elementos diferenciados. Em um primeiro momento, eles não se relacionam entre si; em um momento seguinte, o ponto nodal aparece como o elemento representante de um sentido comum a todos, unificando as diferenças num campo, que chamamos de equivalencial. A cadeia equivalencial, segundo Laclau (2010, p. 253), estrutura-se em elos, tais quais aqueles conectados de uma corrente, “divididos entre o particularismo das demandas que representam e o sentido mais ‘universal’ dado por sua oposição comum ao status quo”. A universalidade não tem traços visíveis no interior de cada particularidade, mas esta se transforma em um dos componentes da universalidade. Ao cederem em suas demandas particulares, os elos se enlaçam à cadeia discursiva.

O significante vazio condiciona a hegemonia do discurso. Para Laclau (1996, pp. 82-3), a hegemonia se demonstra pela força de um elemento, uma particularidade que se sobressai, encarnando o significante vazio, preenchendo o ponto nodal e assumindo a

universalidade. Mendonça trabalha a questão usando como ponto nodal a “democracia liberal”:

Num primeiro momento, temos a “democracia liberal” como um termo que permite equivalências entre “liberdade de expressão”, “igualdade perante a lei” e “eleições dos governantes e representantes”. Nessa situação 1, portanto, a “democracia liberal” possui sentidos bem delimitados e definidos. O exemplo avança e apresenta a situação 2. A partir da década de 1960, a “democracia liberal” passa a incorporar mais termos em sua cadeia de equivalências a tal ponto de ela não poder mais ser significada com um mínimo de exatidão. Isso ocorre porque o termo “democracia liberal” perde seu conteúdo específico, uma vez que passa a ser o ponto nodal de articulação de múltiplos elementos. A “democracia liberal” é, assim, um significante vazio, um universal, um lugar vazio. Apesar de um significante vazio ser um significante em função da sua polissemia que este articula, é possível percebermos seus limites (Mendonça, Op. Cit., p. 148).

Ao pesquisar e analisar a emergência de lideranças populistas latino-americanas, Flávio Mendes (2012, pp. 161-2) discorre sobre a crise hegemônica do neoliberalismo e que a “articulação discursiva do populismo” também “parece contribuir para certa imprecisão o lugar que a categoria povo, definida como ‘significante vazio’, ocupa na teoria de Laclau”. Tal debate se demonstra central para a compreensão do movimento bolivariano chavista. Discutindo como surge o “povo” e a produção discursiva do “vazio”, Laclau (2010, p. 91) levanta dois pressupostos a respeito do “populismo”: 1) o populismo é vago e indeterminado, com muitas possibilidades de significação, tanto para o público a quem os líderes políticos se dirigem, como em seus conceitos teóricos; 2) o populismo é mera retórica. Traçando um paralelo, pode-se também dizer que a democracia liberal, funcionando em posição de ponto nodal, é vaga e indeterminada, tanto para a compreensão do público como dos postulados políticos e suas conceituações teóricas, tornando-se mera retórica de líderes políticos e do próprio discurso midiático. Desse modo, de acordo com Mouffe (1996, p. 36), entende-se que a democracia liberal pode receber diferentes interpretações. O’Donnell (Op. Cit., p. 12) concorda com o fato de que ainda existe muita confusão e discordância sobre as definições de democracia, sendo necessária uma revisão de conceitos. O que ocorre não é a falta de definições, mas se trata de um problema do próprio campo prático, no qual cada posição se coloca contra as demais.

Tanto ao iniciar a narrativa quanto ao finalizar, o enunciador de Carta enfatizou o governo Chávez como modelo a ser buscado pelo Brasil. Primeiramente, a pergunta “O Brasil tem o que aprender com Chávez?”, referindo-se à reforma agrária; depois, “se a Venezuela for bem-sucedida, será um novo modelo para a América Latina – especialmente para o Brasil, que tem uma estrutura agrária similar”. Aqui Carta se contradisse, pois no parágrafo anterior citou a Venezuela como um “país deficitário em alimentos”, devido à valorização da moeda pela exportação de petróleo, facilitando a importação de alimentos. Entretanto, essa não era a realidade do Brasil, um dos quatro maiores celeiros do mundo. A própria palavra de ordem, que tentava estabelecer uma disposição para o enunciatário agir, expõe-no ao medo. Ao mesmo tempo em que o enunciador elogiava o projeto chavista, ele discorria sobre a possibilidade de fracasso: “Essa estrutura econômica dificulta o sucesso da pequena propriedade, que poderia garantir o abastecimento das massas empobrecidas”; “Sem tecnologia, apoio eficaz à produção e garantia de preços viáveis, a reforma pode outra vez fracassar”. Contudo,

Carta apostou no sucesso da Venezuela e, em nenhum momento, posicionou-se contra o presidente, pelo menos até a penúltima edição de 2010. Carta mantinha uma disposição positiva em relação às ações sociais de Chávez.

Carta atacou a mídia incapaz “de provar que Chávez violou a democracia” para “praticar o populismo” (“Proeza internacional capitalista”, 21/6/00). O ponto de vista do enunciador não se restringiu aos aspectos característicos de eleições livres, segurança e liberdade de expressão. O enunciador afirmou que o venezuelano tinha muito a ensinar ao Brasil. Carta discordou da visão da secretária de Estado norte-americana Condoleezza Rice citando a Venezuela como Estado democrático muito frágil (“Continente desgovernado”, 4/5/05). Para a revista, os Estados Unidos deveriam incluir na lista de países antidemocráticos, o Peru de Alejandro Toledo, “impopular e inoperante”.

Para explicar como Chávez foi derrotado nas eleições legislativas, Carta contrastou um fato concreto com um acontecimento abstrato (“A revolução em ponto morto”, 6/10/10): “Mas para quem teve, até agora, um copo cheio quase até a borda e tinha como meta conservar dele pelo menos dois terços, 110 deputados, é uma vitória com sabor de derrota – algo como a Seleção do Brasil vencer com um gol de pênalti aos 44 minutos do segundo tempo”. Ou seja, o importante era vencer, mesmo com aparentes prejuízos. Ao final do texto, o enunciador propôs que “Chávez pode governar com tranquilidade, mas não lançar projetos revolucionários, nem mudar as regras do jogo”.

Carta mencionou “a engenheira María Corina”, líder do movimento antichavista “Súmate” e deputada da oposição, como a mentora de um plebiscito para revogar o mandato de Chávez e coparticipante da tentativa de golpe de 2002 junto à mídia e alguns setores das forças armadas. Ela foi acusada de traição, mas escapou da prisão por causa de erros processuais. Na mesma reportagem, o enunciador apresentou o “sucesso do chavismo”, pois reduziu a desigualdade e incluiu as “massas no consumo e no processo político”, deixando “um saldo positivo”.

A fim de verificar como Carta se comportou ao final do último período pesquisado (2010), selecionou-se da edição de 22/12/2010, a notícia “Na falta de terror, a chuva”, da sessão “A Semana”. O próprio título indicava sarcasmo com a situação criada pelo presidente venezuelano. Desde 2000,

Carta construiu enunciados com atributos moderados ou favoráveis a Chávez. Contudo, justamente na última edição analisada, pela primeira vez Carta teceu críticas ao presidente venezuelano. Mesmo Carta, em um derradeiro momento, elevou as sobrancelhas da

preocupação com a democracia na Venezuela. Uma foto de Chávez usando boina de militar ilustrava a notícia. O primeiro parágrafo elogiava seus feitos. No entanto, ao iniciar o segundo parágrafo, o enunciador esclareceu opinativamente a mudança no discurso: “Até aí, nada a criticar.” Ou seja, a partir desse ponto, os atributos conferidos a Chávez alteraram seu enquadramento. Os enquadramentos variam de objeto para objeto, bem como de tempos em tempos e de um veículo midiático para outro. Assim como os interesses midiáticos se alteram, a construção de uma figura, hoje, pode não ser a construção de uma figura em outro momento adiante. Essas figuras são agendadas para se tornar visíveis de acordo com as estratégias do contrato comunicacional, cujas ações não representam apenas a realidade, mas, como diz Prado (Op. Cit., pp. 43-5), atuam criando, colocando e recolocando as identidades do leitor. As narrativas midiáticas são erigidas a partir de um contrato comunicacional entre o enunciador e o enunciatário, ao qual é lançada uma totalização parcial pela palavra de ordem, dando- lhe direção, um mapa a ser seguido para a ação comunicativa.

A identidade construída pela mídia preenche esse vazio e torna pleno o ponto nodal. Laclau (Op. Cit., p. 136) considera inadequada a expressão “significante sem significado”, conforme conjectura de Mendonça. Em sua análise sobre a obra de Laclau, Mendonça (Op. Cit., p. 148) afirma que o ponto nodal se transforma em um significante vazio, sem significado, porque “essa perda de significação específica é o resultado do esvaziamento dos sentidos identitários”. Quando um ponto nodal sutura uma cadeia de significantes e projeta uma totalidade discursiva, um campo de equivalências, emerge a plenitude. Quem opta pela noção de “significante sem significado”, segundo Laclau (ibid, p. 136), é Žižek. Para Laclau, um “significante sem significado” poderia ser interpretado apenas como “ruído”. O “significante vazio” mencionado por Laclau não é destituído de significado, mas pode ser compreendido pelo fato de sua constituição ser irrepresentável, um significante que se despoja das particularidades não compartilhadas por todos os elementos envolvidos.

Duas situações definiram as mudanças de tratamento de Carta. Enquanto as inundações na Colômbia desabrigaram 1,7 milhão de pessoas, na Venezuela esse número caiu para 130 mil. Para solucionar uma parte ínfima desse problema, Chávez se instalou em uma tenda beduína emprestada pelo então ditador líbio Muammar Kadafi24 e liberou o palácio presidencial a 26 famílias desabrigadas. O enunciador não via motivos para criticá-lo por essa aparente benevolência palaciana. Todavia, mais adiante,

Carta narrou Chávez se prevalecendo da incessante “chuva para justificar um estado de exceção, assim como Bush Júnior e Putin usaram o terrorismo” a fim de invadir o Afeganistão, o Iraque e a Tchetchênia. Outro ponto de vista do enunciador revelou “que o objetivo” de Chávez “é contornar a posse” do novo legislativo. O enunciador reconheceu a relevância das demandas atendidas pelo presidente da Venezuela, mas não aceitou ser partícipe de atitudes geradoras de insegurança e antidemocráticas ao assinalar que as enchentes renderam “a Chávez um ano de governo com plenos poderes”, cujas características o aproximavam do perfil autoritário.

24 Chefe de Estado líbio morto por rebeldes em 20 de outubro de 2011. Até esse encontro com Chávez, a

mídia mundial ainda não conhecia os bastidores da história de Kadafi, revelados pela jornalista francesa Annick Cojean em O harém de Kadafi (2012).