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Capítulo 3 – A Concertación chilena e a linha fronteiriça

3.1.1. Veja: Civilizados e democráticos

De acordo com o enunciador de Veja, Ricardo Lagos, primeiro presidente chileno socialista desde 1973, não afastou os investidores do país, temerosos de que ele pudesse adotar as propostas do ex-presidente Salvador Allende, deposto pelo golpista Augusto Pinochet. Em seu discurso de campanha, Lagos prometeu que reforma agrária, nacionalização e o inchaço do Estado não fariam parte do plano de governo. O enunciador de Veja declarou Lagos “símbolo da continuidade e não do passado” (“Não é o Allende”, 26/1/00), transformando-o no Outro- amigo, aquele que representa a estabilidade

política e econômica (Figura 24). A Concertación Democrática, da qual Lagos participou, segundo o enunciador, tinha como características a civilidade e o

liberalismo. Civilidade porque as divisões político-ideológicas não eram tratadas com hostilidade, enquanto o liberalismo priorizava a defesa dos direitos individuais e a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, deixando à democracia a ênfase nas eleições livres, universais e soberanas, no sentido de obter a vontade da maioria. Mouffe (1996, p. 199) resume os princípios da democracia liberal como constituída pela liberdade e igualdade, acrescentando haver diversas interpretações e formas de regimes democrático-liberais. Segundo ela, diferenças podem e devem existir, tendo o direito à livre manifestação, mas sem a tentativa de universalizar as particularidades. Sob essa óptica de Mouffe, entendemos a maneira como os partidos chilenos de centro-esquerda, vinculados à Concertación, e, a partir de 2010, a centro- direita de Piñera, despojaram-se de suas diferenças e trataram de conciliar as demandas e posicionamentos comuns com o objetivo maior de reconstruir e solidificar a democracia no Chile.

Ao analisar as conquistas da democracia, Mouffe (ibid, pp. 33-4 e 86) tece críticas àqueles que definem o liberalismo como essência de uma liberdade apenas ausente de coerção, cujas ações demonstram incompatibilidade com a atividade política. Ela discorda daqueles que usam os direitos, liberdade e cidadania, palavras-chave que conceituam o liberalismo, como componentes do discurso do individualismo. Em suas ponderações, Mouffe (ibidem, pp. 140-87) percebe contradições na compreensão do liberalismo, ora tratado como sistema político e econômico, ora como conceito filosófico cujas implicações são muito mais amplas. Se o liberalismo for admitido como princípio ético, então o pluralismo deve ser reconhecido como fundamento da democracia. A liberdade de o indivíduo escolher seu destino e o respeito a esse direito inalienável marcam as diferenças de cada elemento dentro da sociedade. Esse conjunto de particularidades constitui uma democracia pluralista, na qual se pressupõe os indivíduos sendo tratados igualitariamente. O tratamento dos indivíduos como iguais não significa a extinção dos antagonismos entre as particularidades. Se isso ocorrer, a democracia passa a sofrer riscos. Para o liberalismo, a existência de um “eu”, ou de um “nós”, divergindo de um “eles” é desconsiderada. O liberalismo idealiza sociedades bem-organizadas, das quais, de acordo com Mouffe (ibidem, p. 188), deveriam desaparecer antagonismos, violência, poder e repressão. Muitos desses problemas e demandas se tornaram invisíveis devido a “um estratagema inteligente”, perfeitamente consciente à vista dos políticos liberais. Mouffe (ibidem, p. 186) discorda desse

liberalismo, pois o campo político é construído por identidades coletivas e não individuais.

Antes mesmo de iniciar o seu mandato, Lagos já recebia atributos de polaridade positiva, características que se repetiram cinco anos adiante, quando transferiu o governo para Michelle Bachelet. Veja chamou-o de “intelectual de grande influência”, cujas qualidades “vão além das de advogado e acadêmico”. O enunciador não definiu o que vem a ser “grande influência”, mas deduzimos que sua estratégia para exercer autoridade, respeito e admiração fosse consequência da “paciência e disposição para o diálogo”. Era desse modo que Veja enquadrou Lagos. O contrato de comunicação entre o enunciador e o leitor dita, segundo Prado (2011), “alguns temas e figuras do mundo vivido”, tornados “visíveis em detrimento de outros”. Esse aspecto da figura de Lagos, construído por Veja, enquadrou-o na condição de “conciliador”.

Muito embora o enquadramento positivo de Lagos devesse provocar no leitor afeição e simpatia pelo presidente chileno, a apreensão e o medo ainda continuavam presentes no imaginário, pois narrativas referentes ao general Pinochet repercutiam nas mídias. Nos estertores de seu desaparecimento, mesmo encanecido e à margem das funções públicas, Pinochet procurava se posicionar à frente dos destinos políticos do Chile. No Chile, a Justiça condenou os militares e até Pinochet, mas no Brasil a lei de anistia prevenia punições aos militares que participaram ativamente da perseguição aos opositores do regime. Segundo Noam Chomsky (2009, p. 129), Pinochet teve a capacidade de destruir “a mais antiga e vibrante democracia da América Latina”. Se Pinochet figurativizava o monstro destruidor de democracias estabelecidas, ele passou a ser revestido dos medos erigidos pela mídia contra presidentes antipáticos à liberdade de expressão e imprensa, às revitalizações eleitorais e à segurança e respeito à vida humana. Ao longo do mandato de Lagos (2000-05), Veja suspeitou da possibilidade de interferência do ex-ditador. Veja não desconfiava de Lagos, apenas do general.

O princípio da negação, tematizado por Fairclough (2008, pp. 156-7), explica que a contestação pode estimular a reação ao medo. Ao explicar o princípio da negação, ele menciona o uso polêmico de frases negativas, pois elas “carregam tipos especiais de pressuposição que também funcionam intertextualmente, incorporando outros textos somente para contestá-los ou rejeitá-los”. Não era o caso desta narrativa sobre o novo líder político chileno. O enunciador fez uso de expressões negativas para apontar justamente aquilo que Lagos “não é”. Seguiram-se às negativas, justificativas que referendaram os atributos positivos concedidos ao presidente: Lagos “não é o Allende”,

pois ele “não assusta os investidores no Chile”; Lagos não “se assemelha ao estatismo de esquerda”, pois “sua vitória fez a bolsa chilena subir”; Lagos “não é símbolo do passado”, mas “da continuidade” da Concertación; Lagos não precisou atacar a Pinochet durante a campanha para alcançar os eleitores; Lagos e seu concorrente de direita, Joaquín Lavín, “não mexeram no vespeiro”, pois destinaram a Pinochet o passado, optando pelo presente sem o general; Lagos “não pode colocar em risco a pacificação do país”, pois “Pinochet será assunto encerrado” e o “Chile seguirá em frente”.

A expressão extraída da enunciação de que o governo “socialista” de Lagos não era o mesmo governo socialista de Allende valida a palavra de ordem em torno da solidificação da democracia. O enunciador convocou o leitor a demonstrar confiança no presidente chileno e lhe garantiu a segurança de que Lagos não provocaria um retrocesso. O único medo se referia à sombra de Pinochet, presente nos bastidores da política chilena. Esta influência deveria ser repelida e, se possível, eliminada. Veja não disse apenas aquilo que o governo de Lagos não era, mas, “antes de tudo”, que ele era “o governante da Concertación”. A Concertación aglomerava muitos significados. Laclau (2010, p. 38) afirma que “o processo de sobredeterminação mediante o qual certa palavra condensa em torno de si uma pluralidade de significados” é determinado pela “instabilidade da relação entre significado e significante”. A Concertación significava muito mais que a simples coalizão de partidos favoráveis à democracia. O significante “Concertación” não traduzia simplesmente uma aliança de partidos. Tratava-se de um significante cujo significado não se restringia ao verniz que o encobria. Daí a instabilidade entre significado e significante.

Para haver hegemonia, o governo da Concertación precisava atender às demandas, pois “o milagre chileno não é mais o mesmo”, segundo enunciado do infográfico mostrando a queda do Produto Interno Bruto (PIB) e o aumento da taxa de desemprego, não obstante a redução da inflação, desafios que Lagos deveria enfrentar. O programa econômico seguido pela Concertación foi elaborado com base no programa econômico do governo de Pinochet e, de acordo com o enunciador, sua “austeridade deixou o Chile mais maduro”, mas “fabricou a ilusão de imunidade às turbulências internacionais”. O enunciador apresentou o mapa a ser seguido pelo governante e que os enunciatários deveriam conhecer: a saída para o Chile continuar crescendo é estreitando laços com o Brasil. De acordo com Prado (2011), a modalização proposta por qualquer enunciador faz parte de “uma franja de estratégias de visibilidade para o aparecimento

das figuras do Mesmo, dependendo da agenda temática das mídias”. No caso de Lagos, ele era o Outro-presidente com alteridade reduzida, com “valência positiva”.

Na matéria “Por que o Chile dá certo” (1.º/6/2005), Veja elogiou a transição chilena do governo de Ricardo Lagos para Michelle Bachelet. Ele deixou o posto com 70% de aprovação e ela se

consagrou como a primeira mulher eleita à presidência no país, modelo para a região, que testemunharia na sequência a eleição de Cristina Kirchner na Argentina. O Chile era tratado pelo enunciador como a ovelha desgarrada, uma alusão mal- aplicada da “parábola da ovelha perdida” (Figura 25). Na história bíblica relatada pelos evangelistas Mateus e

Lucas uma ovelha se separou do rebanho e se perdeu no deserto, sendo resgatada depois pelo pastor. Na tradição oral, ela ficou conhecida como a “ovelha negra”, semelhante ao “patinho feio” de contos infantis.

O desenvolvimento do Chile norteou-se pelos princípios da democracia, boa gestão, mercado com livre concorrência e investimento em educação. Se o Brasil tinha uma economia oito vezes superior à chilena, conforme afirma o enunciador, então essas medidas também poderiam ser apreciadas e praticadas no Brasil. A solução encontrada pelo Chile para combater a corrupção e diminuir a interferência do Estado sobre a sociedade instigou seu encolhimento, isto é, o Estado enxugou o número de funcionários e instituições públicas, transferindo despesas com salários, aluguéis, transporte, energia, para o atendimento das demandas mais requisitadas pelos cidadãos. Esta medida reduziu as constantes crises entre as mídias chilenas e os governos logo depois da saída do ditador Augusto Pinochet – reduziu, mas não extinguiu. Basta lembrar os conflitos entre universitários e a polícia devido à crise do ensino superior que fez despencar a credibilidade do governo de Piñera no primeiro semestre de 2011. No caso da política sul-americana, os governos chilenos investiram em mercados e em relações internacionais além das fronteiras continentais, uma das justificativas para o

crescimento nos últimos anos. O Chile não poderia ser comparado à “ovelha perdida”, a não ser que o enunciador assim o apreciasse por julgar o Brasil na posição de “pastor” desse membro do rebanho latino-americano.

Voltando ao título da matéria sobre Lagos, o enunciado modalizou o leitor a seguir o mapa para conhecer “por que o Chile dá certo” e seus presidentes receberam tanto apoio da população. Segundo McCombs (2009, p. 199), “a agenda da mídia faz muito mais do que influenciar as imagens em nossas cabeças. Muitas vezes a mídia influencia nossas atitudes e opiniões e mesmo nosso comportamento”. O Chile era considerado “a ovelha desgarrada que encontrou uma fórmula econômica de sucesso”, repassando a impressão de que ninguém o auxiliou, sequer mencionando quem estruturou esse modelo no país. “Na América Latina, o Chile é o único que encontrou o caminho” inverso, transpondo a linha abissal, pois “poucos conseguiram ultrapassar a linha que os separa das nações desenvolvidas”.

Aproveitando os conceitos de Boaventura Santos (2010) a respeito das tensões entre os dois lados da linha fronteiriça que separavam as metrópoles europeias das colônias americanas, de modo análogo aplicamos essas tensões ao discurso das mídias brasileiras em relação às figuras dos líderes do continente. A linha fronteiriça, proposta por Santos, separando o Norte colonizador do Sul colonizado, pode ser aplicada à divisão dos universos entre o Mesmo e o Outro:

As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro (Santos, 2010, p. 32).

A mídia constrói uma linha separando o lado de cá, democrático, do lado de lá, construído como autoritário, antidemocrático. Trata-se de uma fronteira detectada nas narrativas. As expressões que situam a palavra de ordem aparecem ao longo do texto referendando o perfil democrático escolhido pelos chilenos: “Princípios básicos que norteiam o desenvolvimento chileno – a democracia, a boa governança, a economia de livre mercado, o investimento em educação e a busca de acordos comerciais com o

maior número possível de parceiros, sobretudo com os ricos – são universais e servem muito bem para países grandes e pequenos da América Latina”; “a esquerda europeia descobria a democracia e concluía pela inutilidade de suas antigas teses econômicas centralistas e intervencionistas”; “os comunistas chilenos voltaram do exílio influenciados por esta fórmula”; “o maior beneficiado foi o povo chileno”.

A confirmação de Lagos como o Outro-amigo encontra-se no alcance de “uma popularidade de 70%”, a despeito de ser “o primeiro presidente socialista do Chile desde 1973, quando Salvador Allende foi deposto” por Pinochet. Para mostrar que não existe qualquer conexão entre Lagos e Allende, o enunciador recorreu a outro texto, comparando as duas gestões: “O governo de Lagos, no entanto, não tem nada que lembre o caos do período de Allende, que estatizou empresas e desapropriou terras. Sob o socialista Allende, o Estado era responsável por 40% do PIB chileno. Sob o socialista Lagos, essa participação é de apenas 9%, ou seja, o Estado diminuiu sua capacidade de intervir diretamente na economia do país. Um Estado pequeno tem a vantagem de diminuir o espaço de ação dos corruptos: o Chile é o país com o menor índice de corrupção da América Latina, segundo ranking da ONG Transparência Internacional.” Se o socialismo de Allende não foi o mesmo de Lagos, então o conceito de socialismo se transformou tão-somente em um nome, um significante vazio (Laclau, Op. Cit., p. 228) que passou a identificar o governo da Concertación.

As “pressuposições” conjecturam indícios de um evento, ou fato noticioso, manipulando as pessoas, o que requer “sujeitos interpretantes”, “suposições particulares em textos anteriores”, corroborando “a constituição ideológica dos sujeitos” (Fairclough, Op. Cit., pp. 155-6). Alsina (2009, p. 261) pondera que, por meio da “pressuposição”, pode-se “enganar dizendo a verdade”. O princípio da pressuposição emerge nos seguintes enunciados: “Se mantiver esse ritmo de crescimento por mais uma dúzia de anos, o Chile alcançará renda per capita similar à de Portugal e à da Grécia, nações situadas no patamar mais básico do Primeiro Mundo”; “os outros povos da América Latina também podem se beneficiar. Basta se espelhar no exemplo chileno”. É bem verdade que não havia qualquer previsão da tragédia financeira que Grécia e Portugal viveriam a partir de 2011, mas o Chile continuou crescendo. O enunciador errou ao pressupor a estabilidade dos países europeus. O segundo país a adotar um modelo semelhante ao instituído no Chile foi o Peru (Veja, “A força do modelo andino”, 17/11/2010; Estadão, “A reinvenção do Peru após o abismo”, 12/9/2010; Folha, “Peru já discute alianças para eventual 2.º turno”, 1.º/12/2010).

O enunciador perguntou se “a experiência chilena pode servir de modelo para os vizinhos, inclusive o Brasil”, detalhando em seguida como fazer, trilhando os caminhos da democracia. Embora fosse o único a superar elevados índices econômicos e sociais, podendo servir de modelo para o Brasil, o enunciador sublinhou que o lado de cá ainda era superior ao do Outro. Os princípios democráticos seguidos pelos chilenos se adaptavam “até para um gigante como o Brasil, com população e território onze vezes maiores e uma economia que tem oito vezes o tamanho da chilena”. Esta comparação lembra aquela feita também por Veja (“O Sul ficou mais perto”, 4/1/1995), na qual o Brasil foi elevado à condição – idealizada pelo enunciador – de “grande solista”, deixando aos demais os papéis de coadjuvantes.

No penúltimo parágrafo da reportagem de Veja, o enunciador voltou a tocar em dois itens: “A maioria dos exilados políticos chilenos viveu no velho continente quando a esquerda europeia descobria a democracia e concluía pela inutilidade de suas antigas teses econômicas centralistas e intervencionistas. Os comunistas chilenos voltaram do exílio influenciados por essa fórmula”, a da democracia. E continuou: “Os outros povos da América Latina também podem se beneficiar. Basta se espelhar no exemplo chileno.” O enunciador queria fazer o enunciatário crer na conservação da democracia liberal como o caminho mais coerente a ser seguido pelos latino-americanos, “inclusive o Brasil”. Não seria a opção pela esquerda essa via, pois até a extrema-esquerda chilena já havia se convencido disso e se transformado em modelo para o enunciatário, a fim de ele não endossar os partidos de esquerda brasileiros, cujas ideologias, sob o ponto de vista do enunciador, caminhavam em sentido contrário à democracia. Para o enunciador, o Chile era o modelo, mas o Brasil era o gigante. Substituído por Bachelet, filha de um general “morto sob tortura no regime Pinochet”, Lagos deixou a presidência com apoio da maioria da população. Folha, Estadão e Veja idealizaram-no como modelo de liderança política.

A maturidade do eleitor e dos políticos chilenos foi testada e aprovada em 2010, quando Sebastián Piñera chegou ao Palácio de la Moneda. A narrativa “Vitória na era do consenso” (23/1/10) descreveu a continuidade das propostas do governo da

Concertación Democrática no Chile. Piñera foi eleito pela legenda da “Coalizão para a

Mudança” e se tornou “um político de direita com uma agenda centrista parecida com a da coalizão de esquerda”. Uma fotografia mostrava Bachelet cumprimentando e beijando o novo presidente Piñera, atitude chamada pelo enunciador de “transição civilizada”, “motivo de orgulho não só para seus cidadãos como para todas as pessoas

de bons propósitos, em qualquer lugar do planeta” (Figura 26). Está implícito nesta imagem um contrato de leitura não-verbal entre o enunciador e o enunciatário, por meio do qual o enunciador modalizou mais um modelo chileno a ser admirado e imitado, figura tornada visível, o Outro-encarnado.

Sob a foto do novo presidente junto à ex-presidente se cumprimentando, a legenda “Vale beijinho – Sebastián Piñera, o eleito, e Michelle Bachelet, a bem cotada, se encontram e não se estranham: transição civilizada”. A partir desse ponto, o enunciador tece nas

entrelinhas da reportagem seu ponto de vista: 1) “O Chile merece se tornar um motivo de orgulho não só para seus cidadãos como para todas as pessoas de bons propósitos, em qualquer lugar do planeta.”; 2) “Todos, como se viu, civilizados e unidos pelo propósito de tocar o país para a frente, em vez de afundá-lo em refundações desastrosas.”; 3) “Vinte anos depois, Sebastián Piñera ganhou nas urnas a honra de provar que os chilenos podem ter um presidente de direita e se orgulhar dele, como o fazem com Michelle Bachelet, que deixa o governo com 80% de aprovação. Espera-se que corresponda à responsabilidade.” Veja modalizou o leitor a conhecer a civilidade de Bachelet e Piñera ao empregar os verbos “merecer” e “esperar”, e os termos “como se viu [...] em vez de” e “podem ter [...] e se orgulhar”.

A narrativa mostrou a identidade comum a três presidentes chilenos de diferentes tendências políticas: “Bachelet continua socialista, o democrata-cristão Frei compunha a coalizão com ela e Piñera é de direita.” Eduardo Frei governou o Chile entre 1994 e 2000, e disputou as eleições com Piñera em 2010. Michelle Bachelet foi a presidente com a maior aprovação na história do país, governando entre 2005 e 2010. Sebastián Piñera encontra-se na presidência desde 2010. Ele havia sido derrotado por Bachelet em 2005. Frei estava ligado ao partido democrata de influência católica; Bachelet era do mesmo partido de Lagos, o esquerdista socialista; e Piñera é da direita, o mesmo partido de Pinochet e que não vencia uma eleição desde 1958. Cada um deles se revestia de sua particularidade. Entretanto, o que os unia era a coalizão favorável à solidificação da democracia. “Ninguém”, esclarece o enunciador, “mudou de lado”. O

discurso do presidente e dos ex-presidentes, incluindo Lagos, articulava o significante “Concertación Democrática”44 em ponto nodal.

Para que a Concertación recebesse novo sentido era preciso que cada um dos partidos se desprendesse de suas particularidades. A Concertación Democrática se encarnou nas narrativas midiáticas, tornando-se hegemônica. “Uma relação hegemônica”, para Laclau (ibid, p. 143), “é aquela na qual uma determinada particularidade significa uma universalidade inalcançável”. Esse discurso modaliza uma identidade, estabelecida pela relação entre a particularidade e a universalidade com o objetivo de abranger toda a cadeia discursiva. Veja deixou claro que todos, “civilizados e unidos”, têm o “propósito de tocar o país para frente, em vez de afundá-lo em refundações desastrosas”, alusão à Venezuela chavista e ao kirchnerismo na Argentina.

O enunciador destacou a superação da desconfiança diante da atuação de Piñera. Ex-proprietário de mídia televisiva, Piñera teve eficaz assessoria para despertar a atenção do mundo e transformar o evento do soterramento dos mineiros de Copiapó em um reality show, expressão que Veja

enuncia como parte do título “O reality

show de 1 bilhão de telespectadores”