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Folha de S.Paulo: O confrontador e a frágil

Capítulo 2 – O enquadramento da mídia do estilo kirchnerista de governar

2.2.3. Folha de S.Paulo: O confrontador e a frágil

O tratamento dispensado pela Folha a Néstor foi marcado pela ambiguidade. Em 2005, o enunciador elogiou as medidas do presidente argentino ao tentar solucionar a crise econômica, mas também o depreciou quando as temáticas foram as disputas políticas contra o Brasil no cenário latino-americano. No caso da reportagem “Argentina critica Brasil por forçar hegemonia regional” (3/5), o enunciador destacou os protestos de Néstor dirigidos ao governo Lula e sua política externa. Parceiro do Brasil nas ações mercadológicas e políticas na América do Sul, o presidente argentino ordenou uma mudança de atitude, pois estava “farto das iniciativas de liderança regional de Lula”.

Ao longo do texto, a Folha contrastou as críticas de Néstor às justificativas do governo brasileiro. Com o aparente abandono do Mercosul pelo Brasil, a Argentina

reclamou mais compromisso com os consorciados (entre eles Uruguai e Paraguai) (Figura 20). Já o novo projeto da Comunidade Sul-Americana de Nações (Unasul), ideia de Lula com o intuito de hegemonizar o poder brasileiro na região, foi recebido com desdém por Néstor. A queixa argentina se repetiu na frase, também reproduzida por

Veja, dando conta que o Brasil desejava abocanhar todas as fatias do bolo político.

Folha procurou a assessoria da presidência argentina para confirmar a veracidade da mágoa de Néstor, divulgada pelo jornal Página 12, de Buenos Aires, ação não realizada por Veja. A assessoria do governo argentino não desmentiu a fala presidencial. Para conceder credibilidade à narrativa, o artigo “Arrogância solapa aliança estratégica”, do sociólogo Demétrio Magnoli, atestou a contrariedade dos argentinos. Ele afirmou que o eixo orientador da política de Lula visava conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, esquecendo-se dos compromissos assumidos com o Mercosul. Para Magnoli, o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil) se tornou arrogante ao ressuscitar “argumentos geopolíticos sobre o peso territorial, demográfico e econômico do Brasil”, pois “atrás do vazio da argumentação estão as raízes da política desastrosa conduzida nos últimos dois anos”. Segundo Magnoli, o governo brasileiro errou ao tentar – por meio da via militar no Haiti e do estabelecimento da “noção de ‘liderança natural’ na América do Sul” – apoio para a indicação ao Conselho de Segurança.

Enquanto o governo de Néstor se caracterizou pela confrontação, típica de um líder temperamental, segundo o enunciador, o governo lulista era considerado interesseiro, descompromissado com os vizinhos parceiros e arrogante; na reportagem “Unasul começa a mediar crise entre Caracas e Bogotá” (27/7/10), o enunciador do

Estadão também chamou a Néstor de “temperamental”. Néstor se opôs à busca

incessante de Lula pela liderança regional, a qual o brasileiro chamava de “natural”. Néstor chegou a romper com o seu mentor político, o ex-presidente Eduardo Duhalde, principal rival no seio do peronismo. Néstor reivindicou o direito a uma aposta conjunta nas decisões estratégicas do continente e, apesar do atributo combativo, não carregou a

pretensão de ser um presidente que reestruturava a “verdadeira história da Argentina”, como o fez Lula no Brasil, de acordo com o enunciador.

As diferenças com a Argentina foram bem-discernidas pelo enunciador, na reportagem “Para EUA, leis argentinas são frágeis” (Folha, 1.º/12/2010), ao ironizar e agredir Cristina Kirchner no início do texto: “Além da preocupação com a saúde mental da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, telegramas diplomáticos dos EUA vazados pelo site WikiLeaks trouxeram críticas às leis e instituições do país vizinho e ao governo atual.” (Figura 21) A ironia ressalta algo contrário ao que se diz, cujo significado pode ser totalmente diferente do significante. Ela expressa “algum tipo de atitude negativa sobre seu enunciado” (Fairclough, 2008, pp. 158-9), sobre uma pessoa, exarando “raiva, sarcasmo

ou o que quer que seja”. O significado da expressão não precisa ter relação com o texto produzido pelo

enunciador. Não é a Folha quem criticou, mas o documento revelado pelo WikiLeaks, representado pelo discurso entre aspas. A ironia da conturbada “saúde mental” de Cristina remete ao texto de “Uma história bipolar”, notícia publicada por Carta (20/1) quase um ano antes, cujo título teve duplo sentido, era irônico, referindo-se aos antagonismos partidários e às decisões desconexas de Cristina.

A “intertextualidade manifesta” que salienta textos em diferentes níveis dentro de um enunciado é o metadiscurso. Ele “implica que o(a) falante”, segundo Fairclough (Op. Cit., pp. 157-8), situe-se “acima ou fora de seu próprio discurso” e, ao mesmo tempo, em condição de “controlá-lo e manipulá-lo”. Aqui se encaixam também expressões evasivas, expressões pertencentes a outro texto, paráfrases, metáforas, comparações e discursos no qual a apresentação do “eu” é valorizada. Não obstante a reportagem da Folha enfatizar a delicada condição institucional da Argentina, o enunciador direcionou a temática para comparações com o Brasil. O enunciador fez uma pausa no percurso da narrativa e teceu outro discurso, como se este pertencesse a um outro enunciado. Ao confrontar o Brasil e a Argentina, o enunciador depreciou o Outro e enalteceu o lado do Mesmo: “Cristina tem ciúmes de Lula pelo tratamento recebido do governo Obama”, “A presidente argentina não entendia por que Lula foi recebido (por Obama), apesar de o brasileiro ter se encontrado com o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, enquanto ela era firme nas condenações ao regime

persa”. Tais trechos do enunciado demonstravam a liderança e o prestígio do Brasil, levando-se em conta também que, entre apoiar a instável legislação argentina e a sólida democracia brasileira, os Estados Unidos estenderiam a mão para aquele país harmonizado ao idealismo liberal-democrático. Sem especificar veículos jornalísticos, o professor Venício Lima (2012) critica a oposição da mídia brasileira ao projeto de Cristina estabelecendo novas regras para as comunicações na Argentina:

Desde o anúncio da intenção de elaborar um projeto de lei para substituir a regulação do tempo da ditadura militar, em processo rigorosamente democrático, o governo de Cristina Kirchner sofreu – e continua sofrendo – intensa oposição dos grupos dominantes de mídia e de seus aliados internos e externos, inclusive no Brasil. Por quê? Porque a lei argentina busca a regulação do, até então, oligopolizado mercado de mídia.36

Em 1995, Menem tentou aprovar um projeto de lei de imprensa cujas penas seriam “mais severas do que previa a legislação da ditadura militar”. Uma delas, encaminhada pelo presidente do Senado, propunha a detenção por três dias de qualquer crítico do parlamento. O autor era o senador Eduardo Menem, irmão do presidente. O projeto ficou conhecido como Lei da Mordaça (Figura 22). A oposição impediu sua aprovação e o projeto foi engavetado. Quinze anos depois, entre os documentos divulgados pelo WikiLeaks estava um, da

embaixadora norte-americana em Buenos Aires, Vilma Martínez, acusando o governo argentino de intolerante a críticas e considerando a Argentina um país com leis frágeis. “Lei da Mordaça” e “Governo é intolerante a críticas” são expressões que reforçam a palavra de ordem “censura à imprensa”, referendando as desconfianças com a Argentina no trato da democracia.

Tanto Menem quanto Cristina Kirchner eram o Outro-inimigo que teria de ser afastado. Ambos se ligavam ao peronismo e, de modo semelhante às divisões encontradas entre os seguidores da ideologia de Perón, Menem teve uma postura diferente da adotada por Cristina. O que unia esses adversários era o movimento

36 LIMA, Venício A. Cristina Kirchner, a mídia e nós. In: Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu

Abramo, 20 jan 2012. Disponível em: <http://www.teoriaedebate.org.br/colunas/midia/cristina-kirchner- midia-e-nos>. Acesso em: 20 jan 2013.

peronista. Assim como Menem tentou controlar a mídia ao propor uma lei que punisse jornalistas, com o casal Kirchner, principalmente Cristina, as relações com a mídia se deterioraram (Estadão, “Cristina anunciará novas medidas contra Clarín e La Nación”, 24/8/10; “SIP critica Cristina por ataque à imprensa”, 26/8; Veja, “O papelão de Cristina”, 1.º/9/10; Folha, “Para Cristina, jornais na Argentina são ‘carcarás’”, 26/10/10). Para Rincón e Magrini (Op. Cit., p. 78), “os Kirchner produziram uma configuração hegemônica a partir do discurso dos direitos humanos, elemento que, paradoxalmente, se transformou em uma ferramenta de censura dirigida à grande parte da imprensa não-oficial”. Sob esse aspecto, qualquer crítica direcionada ao governo, associava-se “a um componente ético e axiológico dificilmente rebatível”. A palavra de ordem do governo de Cristina passou a ser: “Você é um aliado disfarçado da repressão.” Fazendo uso de uma declaração da embaixadora Martínez, o enunciador estabeleceu em paráfrase quem seria o Outro-inimigo e a quem ele nomearia como o Outro-amigo: “Em seguida, ela (Vilma) acrescenta que é por isso que o país não atrai tantos investimentos quanto o Brasil e o Chile. Ela acrescenta que esta opinião é compartilhada pela imprensa (argentina), por líderes empresariais, acadêmicos, juízes, especialistas da área, políticos de oposição e ONGs.” A Argentina “não atrai” investidores por que se comporta de modo antidemocrático. Daí a preferência pelo Chile como referencial amigo e não pela Argentina. Se a Argentina almeja se tornar uma economia de mercado, entendemos que o caminho a seguir é pela rota da democracia, respeitando liberdades básicas, como a de imprensa.