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3. CRISE ORGÂNICA NA CONTEMPORANEIDADE

3.1 CENÁRIO POLÍTICO

No Brasil, mesmo tendo havido uma recuperação do movimento agrário e camponês nos anos 1980 (em consonância com o declínio da ditadura militar), as ideologias dos grupos que os representava não apresentavam uma proposta verdadeiramente transformadora (DEL ROIO, 2016, p.4). Com a ascensão do PT, tendo como seu representante um ex-operário, que assumiu e permaneceu na presidência de janeiro de 2003 a dezembro de 2010, expectativas de mudanças

reais para a classe trabalhadora foram criadas e, consequentemente, frustradas. Não houve ações que direcionassem o, então, governo de esquerda para a construção de uma hegemonia das classes subalternas, isso porque

deixaram inalteradas as prósperas atividades das forças conservadoras e não afetaram a estrutura da desigualdade. Sem combater os mecanismos que reproduzem a concentração das riquezas e sem promover uma “elevação intelectual e moral” das classes populares que crie as condições para exercer plenamente a cidadania não há como chegar a uma sociedade efetivamente justa e democrática (SEMERARO, 2016, p.5).

Desde o início do mandato do governo presidencial petista, ocorreu uma aceitação e consenso social em relação às políticas públicas. Isso porque não havia uma proposta real de mudança concernente à “justiça social”. Na “Carta ao povo brasileiro”, em 2002, Luís Inácio Lula da Silva já anunciava a necessidade de alianças: “Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país” (FOLHA ONLINE, 2002, s/p.).

Durante o período de crescimento econômico – de 2003 a 2012 –, o consumismo aumentou e, com ele, o individualismo, não havendo “qualquer elevação significativa na consciência das classes subalternas” (DEL ROIO, 2016, p.9). Isso porque “Lula entregou o país com um PIB per capita de pouco mais US$ 11 mil. Um aumento de 20% em relação ao que recebera, enquanto no governo FHC o incremento foi de apenas 4,4%” (ANDRADA, 2016, s/p.).

Nessa estratégia, seu eleitorado foi garantido através da estratégia de medidas paliativas aos mais miseráveis, tendo como exemplo mais emblemático o Bolsa Família – que, com efeito, denotou um ganho para essa camada social (DEL ROIO, 2016, p. 8).

Ao término do mandato de Lula, Dilma Rousseff é “apadrinhada” pelo ex- presidente, propondo seguir com o caminho trilhado por seu antecessor. Elege-se na campanha de 2010 e, novamente, em 2014.

Apesar disso, o panorama econômico não se manteve estável, pois foi impactado pela crise mundial iniciada em 2008, fruto de uma conjuntura econômico-

financeira global que afetou diversos países, gerando elevada instabilidade nos mercados em diversos países. É, inclusive, considerada a maior da história do capitalismo desde a grande depressão de 1929 (OREIRO, 2011, s/p.). Numa visão geral, houve baixas taxas de crescimento e deflação de preços com o excesso na oferta de produtos:

Com efeito, no último trimestre de 2008 a produção industrial dos países desenvolvidos experimentou uma redução bastante significativa, apresentando, em alguns casos, uma queda de mais de 10 pontos base com respeito ao último trimestre de 2007. Mesmo os países em desenvolvimento, que não possuíam problemas como seus sistemas financeiros, como o Brasil, também constataram uma fortíssima queda na produção industrial e no Produto Interno Bruto (PIB). De fato, no caso brasileiro, a produção industrial caiu quase 30% no último trimestre de 2008 e o PIB apresentou uma contração anualizada de 14% durante esse período (OREIRO, 2011, s/p.). Não bastasse esse desequilíbrio de ordem externa, outros fatores colaboraram para o déficit orçamentário nacional: a renúncia fiscal de mais de R$ 300 bilhões entre 2011 e 2015, os gastos colossais de mais de R$ 90 bilhões para a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, a falta de controle de grupos econômicos estrangeiros, o desvio e o desperdício de recursos públicos em obras mal planejadas e interrompidas (SEMERARO, 2016, p.5).

Paralelamente, em 2014, iniciou a Operação Lava Jato pelo Ministério Público Federal em Curitiba para investigar o desvio de bilhões de reais em propina e lavagem de dinheiro público, num grande esquema de corrupção que envolvia a empresa estatal Petrobras. Posteriormente, o nome da presidenta foi ligado à investigação, o que impulsionou a sua impopularidade. Nesse ínterim, uma onda de protestos contra o seu governo foi, aos poucos, sendo deflagrada e incentivada por sujeitos organizados e, ainda, evidenciada fortemente nas grandes mídias e nas redes sociais virtuais.

Na rede social Facebook, por exemplo, grupos da oposição criaram eventos convocando os cidadãos “de bem” contra a corrupção que eles direcionavam sendo do PT. Frases como: “Dilma sabia de tudo”, “O PT roubou o Brasil”, “Vá para Cuba” eram frequentes nas redes e nas ruas.

A ação coletiva fomentada nas redes sociais também se desenvolveu nas ruas, apresentando conotações partidárias relativamente explícitas. Caracteristicamente, seu repertório organizativo ressignificou o repertório dos coletivos populares ao utilizar os mesmos recursos técnicos para transmitir a linguagem discursiva neoconservadora. Essa ressignificação é operada pelo uso de conceitos e siglas semelhantes, capturando significados e mentes através da similaridade dos signos. O Movimento Brasil Livre (MBL) e o Movimento “Vem Pra Rua” (VPR) são exemplos disso (LIMA, 2017, p.171).

As manifestações de 2013, as chamadas “Jornadas de Junho”, contribuíram para o desgaste da popularidade do governo em exercício, ratificando as deficiências da atuação dessa liderança:

Clamava-se pela ampliação dos direitos sociais, mas logo a direção tomada foi a de ataque aos partidos políticos e a corrupção. Por um momento essa manifestações estiveram em disputa, mas logo a direita liberal tomou a dianteira do movimento, mostrando uma vez mais como o governo do PT havia deixado de lado o problema da educação das massas, sua organização e capacidade de mobilização, assim como também se constatou a debilidade das forças da esquerda anticapitalista (DEL ROIO, 2016, p.12).

Para identificar como a percepção em relação ao governo se modificou, pode-se partir das informações que os sujeitos em rede têm acesso, diferentemente daqueles que não têm. Assim, acrescenta-se mais um componente à observação dos fenômenos sociopolíticos em suas dimensões globais. Isso porque mapear as influências multimidiáticas à construção do senso comum faz parte do escopo da pesquisa.

Mais de 97% da população tem em residência a televisão conforme dados divulgados pela Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2016. Um levantamento que retrata o conteúdo recepcionado pela maior parte de pessoas de todas as classes.

Na obra A radiografia do golpe, o autor Jessé Souza tece uma análise crítica sobre o contexto político do impeachment, explicitando os mecanismos de indução desse processo. Souza inicia sobre a “construção da farsa” (2016, p. 87), retomando as Jornadas de Junho que foram midiaticamente manipuladas: “A grande questão é como protestos localizados com foco em políticas municipais foram manipulados de tal modo a se ‘federalizarem’ e atingirem a popularidade da presidente Dilma,

que àquela altura gozava dos mais altos índices de aprovação no seu governo” (SOUZA, 2016, p. 87).

Para o autor, o período de junho de 2013 a abril de 2016 contemplou um percurso de ações planejadas para a retomada de uma hegemonia ideológica estabelecido contra o governo petista. A mídia televisiva aberta, através do Jornal Nacional da emissora Rede Globo, que nas primeiras notícias denominavam os protestantes de “vândalos”, com o fortalecimento e ampliação do movimento, passou a reconhecer a importância da crítica ao governo como uma “expressão democrática”.

Nessa circunstância histórica-política, inicia-se o enfraquecimento do governo federal:

A cobertura do Jornal Nacional no dia 19 de junho passou por uma transformação decisiva. A federalização dos protestos, com o objetivo de atingir a figura da presidente, começou a ganhar corpo com a criação de palavras de ordem pelo próprio jornal, que passava agora a promover e incentivar as manifestações como explosão democrática do povo brasileiro (SOUSA, 2016, p.91). Igualmente em posição contra-hegemônica, contrastando com a visão apresentada pelas mídias dos grandes empresários nacionais, o documentário da cineasta Petra Costa intitulado Democracia em Vertigem se inicia com a controversa prisão do ex-presidente Lula que liderava, à época, as pesquisas de opinião para a eleição presidencial de 2018. Observando os fatos políticos de forma bastante intimista, a diretora aborda sobre a queda dos governantes da esquerda brasileira, denunciando, nesse percurso, o golpe contra a Dilma, conforme texto exposto no canal de streaming Netflix: “Documentário político e memórias pessoais se misturam nesta análise sobre a ascensão e queda de Lula e Dilma Rousseff e a polarização da nação”.

Segundo uma crítica publicada no The New York Times, “É uma crônica de traição cívica e abuso de poder, e também de desgosto”25 (SCOTT, 2019, s/p.),

posicionando-se acerca da existência de “um golpe judicial e legislativo realizado

25 Tradução livre. Original: “It’s a chronicle of civic betrayal and the abuse of power, and also of

por meio do armamento de leis e instituições que deveriam ser neutras”26 (SCOTT,

2019, s/p.).

Apesar da restrição no acesso ao filme, somente para usuários pagantes pelo serviço na internet – atualmente com 139 milhões de assinantes no mundo em 2019 (O ESTADO DE S. PAULO, 2019, s/p.) –, recentemente a produção recebeu a indicação para concorrer, na categoria “melhor documentário”, ao Oscar. Trata-se da maior premiação mundial do cinema, em um evento anual de grande visibilidade organizado pela norte-americana Academy of Motion Picture Arts and Sciences. Desse modo, o filme “chegará a muitas pessoas que não haviam ainda assimilado o grande estrago do golpe contra Dilma e a democracia brasileira. O filme mostra imagens (algumas inéditas) e entrevistas significativas deste momento sombrio da história do país” (DALLEGRAVE, 2020, s/p.).