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1. INTRODUÇÃO

1.2 METODOLOGIA

“A questão da ‘objetividade’ do conhecimento segundo a filosofia da práxis pode ser elaborada a partir da proposição (contida no prefácio da Crítica da economia política) de que ‘os homens tornam-se conscientes (do conflito entre as forças materiais de produção) no terreno ideológico’ de formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas”.4

(Antonio Gramsci)

Concebendo pesquisa como “uma atividade processual de investigação diante do desconhecido e dos limites que a natureza e a sociedade nos impõem” (DEMO, 2003, p. 16), de um modo geral, a natureza metodológica da tese para este projeto é bibliográfico-documental, envolvendo principalmente a fundamentação teórica de base filosófica e de investigação social concernente às comunicações em discursos registrados em ambientes tecnológicos e consolidados em documentários publicados gratuitamente na rede social YouTube.

Por conta do crescente número de usuários conectados, as mídias virtuais vêm sensibilizando e influenciando de forma significativa o comportamento de grupos e indivíduos em diversos campos sociais. No contexto da cibercultura, a presente tese se propôs pesquisar os ambientes multimidiáticos que abrangem os

4 Tradução livre. Original: “La quistione dela ‘obbiettività’ della conoscenza secondo la filosofia della

prassi può essere elaborata partendo dalla proposizione (contenuta nella prefazione alla Critica dell’economia politica) che ‘gli uomini diventano consapevoli (del conflitto tra le forze materiali di produzione) nel terreno ideologico’ delle forme giuridiche, politiche, religiose, artistiche, filosofiche”.

atores sociais – os estudantes secundaristas que se mobilizaram através da ocupação de escolas públicas – e os elos estabelecidos entre eles via narrativas estruturadas em vídeos documentários – enquanto representações sociais – disponibilizados no maior repositório virtual de vídeos on-line.

Busca-se compreender recorrências e/ou padrões discursivos de atuação política nos registros self media que coadunem com a filosofia da práxis do pensador italiano Antonio Gramsci, posto que ele fora “uma importante figura intelectual, talvez como o homem multifacetado do Renascimento, que mesmo no cárcere preserva sua liberdade espiritual lendo, estudando e escrevendo para a posteridade” (MONASTA, 2010, p. 19).

A respeito do pensamento gramsciano e suas relações teóricas com o movimento Primavera Secundarista, tais questões serão detalhadas no terceiro capítulo, que versa sobre as ideias de Gramsci que subsidiarão as reflexões filosóficas desta pesquisa. A produção do militante comunista italiano, em sua experiência de vida e, mais especialmente, em seu período na prisão, gerou um inestimado legado teórico e político que, desde então, vem influenciando socialistas pelo mundo afora (COSTA; SANTOS, 2017).

Pelas condições de produção de seus escritos, posto que Gramsci tinha acesso restrito a leituras, era censurado pela polícia política e, ainda, pela precariedade da sua saúde e posterior adoecimento físico, há grande dificuldade na apreensão dos textos contidos nos cadernos. Contudo, a chave de leitura para decifrar o seu construto intelectual “envolve reconhecer as condições objetivas da sua escrita, o contexto social, político e econômico da Itália fascista e compreender as contribuições teóricas dos diversos autores com os quais ele dialoga” (COSTA; SANTOS, 2017, p.411).

A partir do desafio de compreender tais ideias, no capítulo 3, intitulado “Pensamento Gramsciano”, destacam-se os seguintes tópicos abordados por Gramsci: filosofia da práxis, hegemonia, senso comum, intelectualização orgânica, moderno príncipe e vontade coletiva. Esclarece-se que esta seleção se dá por conta das reflexões surgidas a partir dos acontecimentos que envolvem a Primavera Secundarista em especial e, mais genericamente, os movimentos sociais em rede

enquanto práxis política de acordo com o contexto histórico do qual emergem. Assim como, não esgotam toda a gama de conceitos do autor dada a característica polissêmica de sua escrita carcerária.

A propósito do contexto dos acontecimentos históricos, o capítulo seguinte busca traçar um panorama e, também, resgatar significativas análises teóricas sobre a crise orgânica na contemporaneidade. Trata, desse modo, do cenário político após o impeachment da presidenta Dilma, esmiuçando as questões legislativas que estão vinculadas mais diretamente ao âmbito da educação no Brasil.

Subsequente ao tema do materialismo histórico exposto no capítulo 4, o capítulo 5 intenciona traçar um panorama sobre os movimentos sociais em rede a partir da evolução tecnológica. Colocam-se, assim, aspectos teóricos sobre a democracia virtual no contexto que envolve: o uso das mídias sociais virtuais, suas mecânicas e lógicas interacionais; os atores sociais, chamados aqui de “sujeitos em rede” – sejam eles nativos ou excluídos digitais; o jornalismo alternativo, do mesmo modo, fruto das novas formas de comunicação digital; e os movimentos sociais em rede que ganharam notoriedade no mundo e no Brasil.

O último capítulo fala sobre a Primavera Secundarista, o corpus selecionado que fornece pistas sobre a práxis política hodierna disseminada na internet, ou seja, ao alcance por qualquer usuário conectado à rede mundial de computadores.

Para a análise desta tese, o recorte do corpus abrange o período o mais próximo da cena política contemporânea, por isso coincide com a transição do impeachment da ex-presidenta à posse do atual presidente Michel Temer, período pós-golpe, até a aprovação da PEC 241-55/2016 (do Teto dos Gastos Públicos), considerando que esta ação representou um impacto de grande frustração para todos os sujeitos que se mobilizaram em rede e nas ruas para lutar contra a emenda constitucional.

Posto que o objetivo seja observar a práxis política que se desenrola no movimento social estudantil, e refletir sobre a densidade das discussões implicadas nas ações que ocorreram em cerca de 1.100 escolas no Brasil em 2016 (ÉPOCA, 2017, p.65.), para a seleção do corpus, optou-se pelo mecanismo on-line de buscas

mais usual, o Google. Esclarece-se que as ações dos alunos secundaristas eram narradas via self media e publicadas nas redes sociais.

O buscador Google, no Brasil e no mundo, “ainda reina como site mais acessado da internet” (AGRELA, 2017, s/p.), ocupando o primeiro e o terceiro colocados no ranking dos sites mais populares do Brasil em 2017. No segundo lugar, está o YouTube, plataforma de compartilhamento de vídeos que alcançou a marca de audiência de um bilhão de horas por dia assistidas por seus usuários (O ESTADO DE S. PAULO, 2017, s/p.). Segundo o próprio site:

o primeiro bilhão de horas foi atingido no final de 2016, registrando um crescimento em mais de 10 vezes na audiência desde 2012, quando o site começou a investir nos algoritmos — inteligência artificial que reconhece o gosto dos usuários e faz sugestões personalizadas” (O ESTADO DE S. PAULO, 2017, s/p.).

Descartou-se a coleta de dados por hashtag ou qualquer outra estratégia de recorte diretamente nas redes sociais Facebook, Twitter e YouTube, pois essas opções gerariam um volume grande e aleatório de publicações, do qual não se poderia distinguir ou classificar os graus de importância/relevância em termos de representatividade, repercussão e influência. Principalmente porque não havia, à época do movimento, uma página ou perfil central dos acontecimentos que se desenrolavam em cada unidade escolar ocupada. Por conseguinte, seria necessário estabelecer outros critérios, tais como quantitativo de visualizações, número de compartilhamentos, curtidas e outros a fim de angariar os posts de maior audiência. A partir do procedimento referido, o buscador apresentou inúmeros documentários a partir das palavras-chaves documentário Primavera Secundarista, listados no quadro 1, a seguir, com os dados fornecidos pelos autores em seus respectivos canais no site YouTube.

Quadro 1: Lista de documentários do YouTube.

Documentário Direção e Canal Views e Likes Descrição do Canal 1 Primavera Secundarista – o filme. (23 min; 6 jul. 2017)5 Maíra Kaline Januário Cabral; Maíra Kaline Januário Cabral. 2,2 mil; 70.

Sinopse: O documentário Primavera Secundarista apresenta o movimento de ocupação de escolas e universidades ocorrido em 2016 em cerca de 1100 escolas no Brasil, das quais 850 no Estado do Paraná, como resistência dos estudantes contra a Medida Provisória 746 de Reforma do Ensino Médio e outras, como o Projeto de Emenda Constitucional 55 que congela os gastos públicos por vinte anos.

Documentário gravado de forma imersa em duas ocupações. 2 OCUPE SE: A luta entre o lápis e a borracha. (50 min; 28 abr. 2019)6 Fabrício Rodrigues, Gabriel da Costa, Willian Graniero; Ocupe-se. 1,6 mil; 62.

Idealizado e produzido durante o movimento secundarista contra a "reorganização" escolar proposta pelo Governo do Estado de São Paulo. Material exclusivo, captado dentro de escolas ocupadas e manifestações de rua, mostrando o que realmente aconteceu do lado de dentro dos muros, acompanhando de perto e relatando fielmente todas as ações do movimento que fez história frente à uma decisão verticalizada.

3 Lute como uma menina! (76 min; 9 nov. 2016)7 Flávio Colombini e Beatriz Alonso; Maíra Kaline J. 93 mil; 4 mil.

Conta a história das meninas que participaram do movimento secundarista que ocupou escolas e foi as ruas para lutar contra um projeto de reorganização escolar imposto pelo governador de São Paulo, que previa o fechamento de quase cem escolas.

As meninas contam suas histórias enfrentando figuras de autoridade, desde a luta pela autogestão das escolas até a violência desenfreada da polícia militar. Uma importante reflexão sobre o feminismo, o atual modelo educacional, e o poder popular.

5 Disponível em: https://youtu.be/TbNqoky5HVY. Acesso em 02 nov. 2019.

6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W3FjtBfSpbk. Acesso em 02 nov. 2019. 7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA. Acesso em 02 nov. 2019.

4 Ocupa Tudo: Escolas Ocupadas no Paraná. (56 min; 10 mai. 2017)8 Carlos Pronzado; La Mestiza Audiovisual. 2,7 mil; 108.

Retrata a luta dos estudantes secundaristas paranaenses contra a MP da Reforma do Ensino Médio proposta pelo governo federal. Os estudantes também lutavam contra o PL Escola sem Partido e a PEC 55, que congela os investimentos sociais durante 20 anos. Das mais de mil escolas ocupadas no país em 2016, 850 foram no Paraná.

O filme conta com uma linha narrativa que consegue expressar em profundidade os sentidos políticos e históricos desse que foi o maior movimento de ocupações já registrado na História. O filme se notabiliza como uma produção coletiva, colaborativa e de natureza independente, viabilizada pelo envolvimento de sujeitos que estiveram na linha de frente do movimento e/ou que atuaram em sua defesa nos meios escolares, jurídicos e midiáticos. Mais que um registro documental tradicional, Ocupa Tudo é parte das necessárias e urgentes mobilizações em defesa dos direitos sociais no Brasil.

Fonte: Elaboração da autora, 2020.

Com a finalidade de obter informações adicionais a respeito do processo de produção dos quatro filmes listados, através do suporte digital, criou-se um formulário no Google Docs que contemplava indagações adicionais. Intitulado “Questionário sobre as narrativas multimidiáticas do movimento estudantil de ocupação” (Apêndice A), a resposta ao documento acrescentaria novos olhares sobre os vídeos documentários, e com a adição de dados de quem esteve diretamente vinculado às realidades aqui, nesta investigação, observadas virtualmente.

Através das redes sociais Facebook e Instagram, os(as) diretores(as) e/ou responsáveis foram localizados(as) e, assim, o link do formulário foi enviado. Para o preenchimento do questionário e envio da resposta, o endereço eletrônico seria o mesmo, isso porque os recursos viabilizados pelo Google Docs permitem a

gravação das respostas, e as disponibiliza on-line no instante em que o usuário envia o arquivo digital.

Infelizmente, a proposta não foi concretizada, visto que somente um dos selecionados respondeu à enquete digital. A inexistência de interesse por parte dos(as) envolvidos(as) na produção das obras pode suscitar uma reflexão acerca da eficácia/ineficácia na interação digital, ou ainda, certa desconfiança em iniciativas de contato realizadas via redes sociais. Assim como, pode simplesmente revelar algum desinteresse daqueles que receberam a enquete, questão que não cabe refletir no ínterim da presente tese.

A respeito do gênero documentário, esse tipo de documento visual-textual- sonoro que é gerado a partir de acontecimentos históricos, políticos, culturais etc., vale ponderar que:

os documentários representam o mundo histórico ao moldar o registro fotográfico de algum aspecto do mundo de uma perspectiva ou de um ponto de vista diferente. Como representação, tornam-se uma voz entre muitas numa arena de debate e contestação social (NICHOLS, 2005, p.86).

Pelas descrições disponibilizadas em cada canal, é possível observar a identificação dos sujeitos organizadores, produtores e/ou diretores com o movimento social de ocupação, o que sugere, em princípio, que tais registros apresentem a visão daqueles que se mobilizaram nas ocupações das instituições públicas de ensino contra as ações do governo.

Conforme reflete Monasta:

Gramsci e Maquiavel nos colocam uma importante questão: qual é a função “educativa” de uma descrição objetiva dos mecanismos do poder político e, no caso de Gramsci, dos mecanismos da ideologia? Educar as pessoas para que tenham uma postura realista e, consequentemente, participem da luta política contra os poderes, ou então desvendar o lado oculto da política, para que as pessoas desconfiem da mesma, vivam sua vida de forma independente e tenham uma opinião própria à margem do poder político? (2010, p. 29).

Partindo desse ponto, nesta pesquisa, e considerando a materialidade histórica da luta pelos direitos à educação pública de qualidade, busca-se identificar metodologicamente a função educativa e filosófica estabelecida nos atos de

resistência – principalmente por conta do perfil dos sujeitos atuantes no movimento estudantil: jovens atuantes refletindo criticamente sobre a realidade, em sua maioria ainda adolescentes, que o senso comum julga como apáticos e alheios ao cenário social e político do país.

Segundo Gramsci, “o pensamento crítico é a investigação contínua e o desvendamento das bases materiais da própria teoria, isto é, a crítica da utilização ideológica da teoria” (MONASTA, 2010, p. 30). Por esse pensamento e por outras reflexões carcerárias gramscianas, como pressuposto téorico-metodológico, propõe-se tecer uma análise crítica a partir da filosofia da práxis, considerando a sua aplicação nos acontecimentos e na história em construção contínua, ou seja, na base “material” histórica.