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4.1 O CENÁRIO POLÍTICO ECONÔMICO DO PRIMEIRO GOVERNO F ERNANDO H ENRIQUE C ARDOSO

As eleições de 1994 deram vitória não apenas a Fernando Henrique Cardoso, mas também aos seus aliados nos estados e no Congresso Nacional, possibilitando o aprofundamento e a consolidação do projeto político-econômico que se iniciou no lançamento do Plano Real. Segundo Sallum Jr. (1999), o grupo que assumiu o comando do país compôs um sistema de poder hegemônico capaz de moldar a sociedade de acordo com as diretrizes do liberalismo econômico234. Assim, seus principais objetivos eram reduzir a participação estatal nas atividades econômicas e conceder tratamento igual às empresas de capital nacional e estrangeiro.

Para tal, o governo submeteu os projetos de reforma constitucional e infraconstitucional ao Congresso e conseguiu aprovar medidas como: a-) o fim da discriminação constitucional em relação a empresas de capital estrangeiro; b-) a transferência para a União do monopólio da exploração, refino e transporte de petróleo e

234 A equipe do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso era composta por: Nelson Jobim no

Ministério da Justiça (seguido por Íris Resende e Renan Calheiros); Luiz Felipe Lampreia no Ministério das Relações Exteriores; Odacir Klein (substituído por Eliseu Padilha) no Ministério dos Transportes; José Eduardo de Andrade Vieira (seguido por Arlindo Porto Neto e Francisco Sérgio Turra) no Ministério da Agricultura e do Abastecimento; Paulo Renato Souza na Educação; Francisco Weffort na Cultura; Paulo de Tarso Almeida Paiva (seguido por Edward Amadeo) no Ministério do Trabalho; Reinhold Stephanes (substituído por Waldeck Ornelas) na Previdência; Adib Jatene (seguido por Carlos César Silva de Albuquerque e José Serra) no Ministério da Saúde; Raimundo Mendes de Brito no Ministério de Minas e Energia; José Israel Vargas no Ministério da Ciência e Tecnologia; Gustavo Krause no Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal; Edson Arantes do Nascimento no Ministério dos Esportes; Luiz Carlos dos Santos no Ministério de Coordenação de Assuntos Políticos; Raul Jungmannn no Ministério de Política Fundiária; Antônio de Almendra Freitas Neto no Ministério de Reforma Institucional; Dorothéa Werneck (seguida por Francisco Dornelles e José Botafogo Gonçalves) no Ministério da Indústria, Comércio e Turismo; José Serra (seguido por Antonio Kandir e Paulo de Tarso Almeida Paiva) no Ministério do Planejamento e Orçamento; Sérgio Motta (substituído por Luiz Carlos Mendonça de Barros) no Ministério das Comunicações; Luiz Carlos Bresser Pereira no Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado; e Pedro Malan no Ministério da Fazenda; além de Gustavo Franco no Banco Central; Winston Fritsch na Secretaria de Política Econômica; Clóvis Carvalho na Casa Civil; Alberto Cardoso na Casa Militar, Eduardo Jorge Caldas Pereira na Secretaria Geral; e Ronaldo Mota Sardemberg na Secretaria de Assuntos Estratégicos.

146 gás, antes detido pela Petrobrás, que se tornou concessionária do Estado; c-) a autorização para o Estado conceder o direito de exploração de todos os serviços de telecomunicações (telefone fixo e móvel, exploração de satélites etc.) a empresas privadas; d-) aprovação de lei complementar regulando as concessões de serviços públicos (eletricidade, rodovias, ferrovias etc.) para a iniciativa privada; e-) implementação de um enorme programa de privatizações e de venda de concessões tanto no âmbito federal como no estadual (SALLUM JR., 1999, pp. 31-32).

Giambiagi (2002) destaca ainda as mudanças na Previdência Social e no Sistema Financeiro. A reforma de Previdência, aprovada em 1998, instituiu a restrição de idade mínima para as futuras aposentadorias no âmbito do funcionalismo, combinada com um aumento progressivo do requisito de idade. Criou também condições para a incorporação de futuros quadros de carreira ao regime geral do INSS, sem os privilégios atuariais do regime dos servidores e estabeleceu fundos de pensão para os ingressantes. Por fim, desconstitucionalizou-se a fórmula de cálculo dos futuros benefícios, criando condições para que ela fosse definida na legislação, o que ocorreu no segundo governo FHC, com a aprovação da lei do “fator previdenciário”. A reforma do sistema financeiro incluiu a aprovação do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer); a privatização, após prévia federalização, de diversos bancos estaduais; a abertura do setor financeiro à participação do capital estrangeiro; e a exigência, por parte do Banco Central, de adoção pelos bancos de critérios mais rígidos para a concessão de créditos.

Para implementar as reformas, Diniz (2000) lembra que o governo utilizou intensamente do recurso à edição e reedição de Medidas Provisórias e fez do Legislativo a instância para a qual seriam canalizados os conflitos, as demandas e os interesses dos grupos de pressão e dos lobbies, eliminando, portanto, quaisquer outros canais institucionalizados de negociação. As ações do setor industrial passaram a se estruturar por meio de lobbies no Legislativo, de modo que as organizações se profissionalizaram a ponto de estabelecer escritórios e contratar profissionais para acompanhar a tramitação de projetos e discussões sobre temas de interesse do empresariado no Legislativo. Esta organização tinha em vista fazer valer os interesses do setor nesta arena (DINIZ, 2003, p. 23).

147 Assim, a viabilização das reformas decorreu da formação, ainda que em bases clientelistas, de uma ampla e heterogênea coalizão parlamentar de sustentação do governo e da “blindagem”, conduzida pela equipe econômica, do núcleo central do projeto governamental (plano de estabilização e políticas estratégicas, como as privatizações).

(...) o modelo insulado de gestão, dominante durante o governo Collor, persistiu sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, que reforçou a primazia burocrática, atribuindo papel central ao Ministério da Fazenda, ao Banco Central e ao Tesouro Nacional, que formariam, ao lado do BNDES, o núcleo duro do Estado, responsável pelas decisões estratégicas, sobretudo no que se refere à política econômico-financeira, controlando as informações mais relevantes, principalmente aquelas que circulam nas instância internacionais e dispondo de acesso privilegiado às decisões externas (DINIZ, 2002, p. 249).

No entanto, apesar dos objetivos comuns e da afinidade em relação às reformas liberalizantes, havia divergências político-ideológicas consideráveis entre os membros da equipe econômica do governo. Segundo Sallum Jr. (1999), a polarização se dava em torno de duas versões do liberalismo, o neoliberalismo235 e o liberal-desenvolvimentismo236, com amplo predomínio do primeiro sobre o segundo. Do primeiro lado, estavam Gustavo Franco, Pedro Malan, Winston Fritsch237 e o próprio Presidente da República; do segundo, José Serra, Bresser Pereira, Dorothéa Werneck, Francisco Dornelles, Sérgio Motta, José Roberto Mendonça de Barros238 e Luiz Carlos Mendonça de Barros. Este último, em entrevista à Folha de S. Paulo, descreve claramente o conflito no seio do governo:

Quem formulou o Plano Real – o Pérsio Arida, o André Lara e o Edmar Bacha – não o executou. Quem executou o Plano Real foram outras duas pessoas que não tinham participado da formulação, Pedro Malan e

235 Esta corrente tinha como prioridade a estabilização e para tal defendia políticas como: a-) manutenção do

câmbio valorizado frente ao dólar e outras moedas; b-) ampliação da abertura comercial; c-) renovação rápida do parque industrial instalado e maior competitividade nas exportações; d-) política de juros altos; e-) realização de um ajuste fiscal progressivo e de reformas estruturais (previdência, administrativa e tributária) que equilibrassem em „definitivo‟ as contas públicas; f-) extinção das políticas industriais setoriais (SALLUM JR., 1999, p. 33).

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Prioriza a estabilização monetária, mas, para minimizar seus efeitos destrutivos, defende políticas compensatórias como: a-) câmbio não apreciado; b-) juros mais baixos para não desestimular a produção e o investimento; c-) políticas setoriais que ampliem a competitividade dos produtos brasileiros; e d-) aumento da participação da produção local no comércio mundial (SALLUM JR., 1999, p. 35).

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É importante lembrar que Fritsch foi um dos elaboradores da proposta de política industrial do governo Collor e adotava, naquele momento, uma perspectiva que contemplava a liberalização, mas também ações estratégicas do Estado para incentivar a competitividade. De modo algum, podemos classificar as medidas de política industrial por eles propostas de neoliberais. Até porque o próprio conceito de política industrial contraria a perspectiva neoliberal.

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Gustavo Franco (...) Para enfrentar a inflação e a indexação que tínhamos, era preciso ter o mecanismo da URV (Unidade Referencial de Valor, indexador atrelado ao dólar) e o câmbio fixo, durante um certo tempo, para permitir que as pessoas tivessem uma noção de valor da moeda e saíssem do overnight. E que saíssem da URV e viessem para o real. O sucesso tão grande subiu à cabeça das pessoas que estavam ali. Esqueceram que aquele instrumento de câmbio fixo era passageiro. Eles alegam que houve a crise do México. Após a estabilização, tinha que

passar para um sistema de câmbio flutuante e isso não foi feito. Fiquei

louco de tanto repetir isso. Como havia uma oferta vasta de recursos, foi fácil manter o câmbio fixo valorizado. A sociedade se aproveitou disso, porque as importações ficaram baratas, era a maior farra. Isso, de certa

forma, impregnou-se politicamente dentro do governo. Mas sempre houve um grupo de pessoas, e o mérito disso é do Serra e do Beto (José Roberto Mendonça de Barros), meu irmão, que alertavam para o perigo. O Serra cansou e foi cuidar da vida, e o Beto ficou. Quando fui para lá, estava nesse grupo. O presidente da República fez a escolha. Uma escolha que você não pode criticar, porque o ministro da Fazenda, Pedro Malan, e o presidente do Banco Central, Gustavo Franco, garantiam a ele que não havia problema. E dois ou três chatos

diziam o contrário. Quando veio a crise da Ásia, o presidente começou a entender o risco. Começou a preparar a transição, mas esse processo demorou demais. Em função da crise da Rússia, decidiu-se mudar o regime cambial, só que aí havia uma crise internacional. E nós dissemos: „Para mudar o regime cambial agora, você tem que fazer um acordo com o Fundo‟, porque não tínhamos mais os mercados nos financiando. Faríamos o acordo com o Fundo para mudar o regime cambial. Isso era o que estava combinado. Acontece que veio o grampo no BNDES239 e as pessoas que estavam se preparando para fazer a transição saíram. O presidente da República ficou sem a equipe que tinha e manteve a política (...). (MENDONÇA prega "agenda racional" a FHC, Folha de S.Paulo, 26/12/1999 grifos meus)

O conflito abrangia aspectos que transcendiam a questão do câmbio. Reportagem publicada, em julho de 1995, na revista Rumos do Desenvolvimento retratou claramente outros pontos de divergências. Malan considerava o “Custo Brasil” o problema fundamental e afirmava que a agenda do segundo e do terceiro ano de governo seria “redução dos custos do capital, trabalho, portos, infraestrutura, desburocratização, desregulamentação”. Citou ainda a Argentina como exemplo a ser seguido240

. Serra não

239 Adiante trataremos deste tema. 240

Em 1995, a Argentina já havia implementado as reformas pretendidas por Malan e por esse motivo era vista como exemplo. Cruz (2007) relata que, em 1989, o governo argentino anunciou um programa amplo de reforma do comércio exterior e de liberalização financeira com a liberdade total de entrada e saída de capitais do país e a autorização para a saída irrestrita de fundo a título de royalties, juros e dividendos. A partir de 1990, o governo desregulamentou as operações em bolsas e mercados de valores, eliminou as restrições à entrada de bancos estrangeiros e à abertura de novas agências de bancos nacionais. Em 1992, reformou-se a lei que regia o Banco Central, determinando-se que seus diretores e presidentes seriam nomeados pelo

149 negava a importância destes aspectos, mas ressaltava a necessidade de aumentar a taxa de investimentos: “O erro do Brasil é o curto-prazismo. A tendência é privilegiar os investimentos de curto prazo, capital volátil, em vez de recursos que vêm dos organismos multilaterais” (DESENVOLVIMENTO: a hora é agora, 1995, p. 24). Em oposição a Serra, Gustavo Franco apostava no caráter virtuoso da poupança externa como forma de financiar a estabilização:

As reservas vêm crescendo e as captações também. O Brasil fez dois grandes lançamentos de bônus da República e as empresas brasileiras não têm encontrado dificuldade em financiar o comércio. O grau de volatilidade depende da confiança na economia de um país (DESENVOLVIMENTO: a hora é agora, 1995, p. 25).

Sallum Jr. considera que a aposta da Presidência da República no neoliberalismo se deu devido à percepção de que esta era a melhor forma de preservar a estabilidade dos preços, permitindo, portanto, que o governo tivesse maior controle sobre a atuação dos agentes e sobre os resultados obtidos nas várias arenas de disputa política.

Para que se entenda melhor a lógica das escolhas feitas, vale montar uma pequena equação das implicações em custos/benefícios prováveis da escolha entre fundamentalismo neoliberal e liberal-desenvolvimentismo. O primeiro oferecia mais garantias imediatas de „segurar o Real‟ – preservando o prestígio político difuso que ajudava o governo a manter suas posições nas várias arenas políticas – e mais riscos de médio e longo prazo, por conta do eventual crescimento da taxa de desemprego e de perturbações provenientes do sistema financeiro internacional. O segundo prometia mais garantias de médio e longo prazo – maior impulso ao crescimento e ao equilíbrio das relações econômicas com o exterior e menor fragilidade em relação a oscilações bruscas do sistema financeiro internacional – porém menos segurança política de curto prazo, em função da eventual perturbação monetária derivada, por exemplo, de uma mudança na política cambial ou de juros (SALLUM JR., 1999, p. 44).

Presidente da República e estavam proibidos de financiar governos provinciais, empresas públicas ou empresas privadas não financeiras. Outras importantes mudanças foram: a reforma do regime de investimentos estrangeiros, que previa tratamento igual aos investidores externos e domésticos, e as privatizações, as quais garantiram a cobertura dos déficits comerciais e a ampliação da oferta monetária. O processo caracterizou-se pela rapidez e pelo papel predominante do capital estrangeiro. Retomar esta declaração de Malan, após a crise vivida pela Argentina, é emblemático até porque o país tornou-se exemplo dos males que reformas liberalizantes radicais poderiam ocasionar. Demonstra claramente a perspectiva almejada pelo ministro, corroborada pelo presidente do Banco Central e questionada por forças políticas que compunham o governo.

150 Loureiro e Abrucio (1999) também consideram que o Ministério da Fazenda se tornou o principal núcleo de poder do gabinete presidencial, sendo seus integrantes os mais importantes policy makers do Executivo federal. Para os autores, o caráter estratégico do Ministério da Fazenda decorreu, fundamentalmente, de o êxito da política econômica ser crucial para o governo obter apoio parlamentar e controlar a delegação de poderes e responsabilidades na distribuição de cargos públicos a aliados. No entanto, no caso do governo FHC, há razões mais específicas. A primeira diz respeito ao contexto de escassez de recursos e de necessidade de controlar as contas públicas; a segunda refere-se à importância do plano de estabilização para o sucesso do presidente, a outra estava nos laços de confiança estabelecidos entre o presidente e a cúpula do Ministério e a última deriva do poder de liberar e contingenciar recursos da Secretaria do Tesouro Nacional, o que fez com que o Ministério pudesse controlar os outros órgãos (LOUREIRO & ABRUCIO, 1999, pp. 71-85).

A chave para obter o controle da distribuição de cargos, por fim, foi obtida alçando um ministério em particular a um status não só acima dos demais, como também responsável pela fiscalização de todos os outros ministérios a partir do ângulo financeiro. Trata-se do Ministério da Fazenda. Além de este governo estar intrinsecamente ligado à lógica financeira, como quase todos na América Latina, o MF constituía, basicamente, a “casa” dos técnicos que participaram da gestão bem- sucedida do Plano Real, sob o comando do então ministro Fernando Henrique. A grande estabilidade de Pedro Malan no cargo é a maior prova do caráter estratégico adquirido pelo Ministério da Fazenda. (LOUREIRO e ABRUCIO, 1999, p. 79)

Assim, a centralidade do Ministério da Fazenda no governo garantiu a adoção de políticas macroeconômicas afinadas com o ideário neoliberal. Segundo Pinheiro, Giambiagi e Gostkorzewicz (1999), nos anos 1995-1998, a política macroeconômica fundamentou-se numa combinação de câmbio sobrevalorizado, política monetária contracionista e política fiscal expansionista.

Em relação à política cambial, Fernando Ribeiro (2005) destaca a justificativa que embasava a sobrevalorização do câmbio. Considerava-se que os processos de estabilização monetária, de abertura comercial e financeira e da globalização implicariam a apreciação da taxa real de câmbio, devido à entrada de capitais externos. Estes capitais impulsionariam a reestruturação industrial que elevaria a produtividade dos fatores de produção e a

151 importação de bens de capital. As exportações nacionais seriam mais competitivas, dispensando qualquer forma de política industrial setorial e/ou de política cambial com viés exportador. Acreditava-se, ainda, que, no médio prazo, a reestruturação industrial e a presença de empresas transnacionais na economia brasileira permitiriam a reversão dos saldos deficitários da balança comercial. O fato é que, no curto prazo, o governo valia-se da política monetária contracionista, mantendo altas taxas de juros para financiar o déficit em transações correntes e remunerar adequadamente os capitais necessários ao seu financiamento e à postergação das amortizações da dívida externa. Os juros altos favoreciam a ampliação do investimento direto externo e a captação externa de empréstimos e financiamentos, esta última decorrente dos diferenciais entre as taxas de juros doméstica e externa.

Sallum Jr. (1999) lembra que nem mesmo as crises internacionais (a crise mexicana do fim de 1994, a crise asiática de 1997 e a moratória da Rússia, de agosto de 1998) conduziram a mudanças substantivas nos pressupostos deste modelo, pois para se preservar a estabilidade da moeda prevaleceu a aposta na elevação drástica dos juros, o que possibilitou a manutenção das reservas, mas restringiu a atividade econômica interna. As políticas compensatórias adotadas (a leve desvalorização real da taxa de câmbio, por exemplo) não foram suficientes para contrabalançar a fragilidade financeira externa. Para o autor (2001), a permanência do modelo decorria da visão otimista do governo em relação à globalização dos mercados financeiros. Considerava-se que, caso se desenvolvesse a política econômica „adequada‟, não faltaria capital para equilibrar os déficits na balança de transações correntes.

A política econômica „adequada‟ envolveu também a implementação de um rigoroso ajuste fiscal241, o que exigiu do governo federal o efetivo controle das finanças estaduais e municipais. De acordo com David Samuels (2003), a descentralização fiscal, que se acentuou à medida que a democratização avançou, implicou problemas para o equilíbrio do orçamento e dificultou a estabilidade macroeconômica. De Sarney a Itamar Franco, nenhum presidente enfrentou os governantes estaduais e os obrigou a conter seus gastos e a pagar suas dívidas. Isto porque as operações de salvamento das dívidas estaduais

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O ajuste fiscal dos estados envolvia a fixação de metas para a dívida financeira, o resultado primário, as despesas de pessoal, os investimentos, a arrecadação de receitas próprias e a privatização (CASTELLAR, 2002).

152 tinham como contrapartida o apoio dos governadores aos projetos do governo no Legislativo.

Samuels afirma que, ao contrário dos outros presidentes, Fernando Henrique colhia os frutos do Plano Real, tendo, portanto, poder e legitimidade para comandar mais de 70% das cadeiras nas duas casas do Legislativo. Este aspecto somado a outros como o aumento das taxas de juros e o fim da inflação242 foram determinantes para que o Presidente tivesse meios concretos para controlar os gastos dos estados e municípios.

Assim, em 1996, o governo criou, no âmbito da Secretaria do Tesouro Nacional, uma secretaria adjunta responsável pela área de estados e municípios. Dela emanou a proposta de renegociação das dívidas que embasou a Lei 9.496/97, que tinha como base a federalização das dívidas e exigia dos estados a implementação de medidas de austeridade e de um programa de privatização das estatais.

A Lei 9.496/97 estabeleceu critérios para disciplinar a renegociação. Essa é parte integrante de um programa de ajuste fiscal dos estados que fixa metas para a dívida financeira, o resultado primário, as despesas de pessoal, os investimentos, a arrecadação de receitas próprias e a privatização. Os pagamentos das prestações da dívida renegociada são garantidos pela vinculação das receitas próprias dos estados e dos repasses do FPE (Fundo de Participação dos Estados), recurso esses que podem ser bloqueados em caso de inadimplência. Os contratos fixam limites máximos de comprometimento da receita líquida real com os encargos da dívida. Finalmente, a emissão de dívida nova não será permitida enquanto a dívida financeiras do estado for maior do que a sua receita líquida anual (RIGOLON; GIAMBIAGI, 1999, pp. 129-130)

Pinheiro e Giambiagi (2000, pp. 31-32) relatam que a proposta estabeleceu também que os pagamentos se dariam na forma de uma tabela Price, com prestações mensais ao longo de trinta anos e juros reais de 6% a.a. Como os juros estavam abaixo dos praticados no mercado, o governo federal determinou que os estados realizassem acordos de reescalonamento da dívida prevendo a quitação de 20% do principal mediante a venda de ativos, o que incentivou o início das privatizações estaduais. Samuels (2003) ressalta as outras exigências do governo federal para o refinanciamento das dívidas. Os estados deveriam parar de emitir títulos para cobrir suas dívidas até que o montante total dos débitos representasse menos de um ano da receita tributária. Além disso, em 1995, a “Lei Camata” já havia estipulado que, a partir de janeiro de 1999, haveria retenção de fundos