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2 ESTADO, DESENVOLVIMENTO, MIGRAÇÕES, POLÍTICAS PÚBLICAS E INDIGENISTAS

2.5 REFORMA DO ESTADO E O APARATO LEGAL

2.5.1 CF/1988, reforma do Estado e os indígenas

A Constituição Federal de 1988 promoveu legalmente mudanças na esfera institucional e na ação prática de políticas públicas dirigidas às populações indígenas, haja vista que o discurso jurídico pretende ser o ―porta voz‖ da sociedade. Esse marco institucional impulsionou fragmentações na ação dos órgãos do Estado brasileiro em atendimento às necessidades das populações indígenas do país. Isto, em termos práticos, significou a divisão da atenção às populações indígenas por vários órgãos do poder público federal.

A Constituição atual enfoca os direitos constitucionais dos índios em capítulo específico (Título VIII, "Da Ordem Social", capítulo VIII, "Dos Índios"), além de outros dispositivos dispersos ao longo de seu texto e do art. 67 das Disposições Transitórias da Constituição. Em termos institucionais, a CF/1988 aparece como um documento composto de normas direcionadas para diversos setores da sociedade, em suas especificidades. Mas, no caso indígena, configurou-se em uma primeira estratégia em busca dos direitos indígenas, em

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Essa lei propõe princípios de um paradigma multicultural, no que diz respeito às diversidades étnico-culturais existentes no Brasil. No que se refere à educação, o respeito à pluralidade, à diversidade e às especificidades de cada povo indígena devem ser garantidos. Além de tratar da valorização da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições das sociedades indígenas (Artigo 101, inciso I).

que estão relacionados à terra, à educação, à saúde e à cultura, proporcionando maior visibilidade e participação política aos indígenas na arena institucional do país.

Após a promulgação da Constituição atual, modificou-se legalmente a abordagem da diversidade cultural. Os índios deixaram de ser considerados povos de cultura em vias de extinção, cujo destino desejável seria a incorporação à chamada ―comunhão nacional‖. Pelo contrário, ficou assegurada a alteridade cultural, abandonando-se qualquer referência a sua integração ou incorporação.

O caput do artigo 231 da CF/1988, Capítulo VIII – Dos Índios, trata do reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, atribuindo à União a competência em demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Assim, a CF/1988 garante legalmente a proteção e o respeito à organização social, usos e costumes, línguas, crenças e tradições, e o reconhecimento dos direitos originários sobre as terras que ocupam. Nos parágrafos seguintes ao artigo o legislador atribuiu uma conotação especial, revolucionária se comparado ao teor das Constituições anteriores15, haja vista reportar-se ao direito a terra como direito originário à posse da terra, assim como a definição de ―terras indígenas‖ que passam a incorporar novas conotações, tais como: terra como direito de posse e usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios, dos lagos existentes na terra originária, inclusive os relacionados ao aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos e a participação nos resultados da lavra das riquezas minerais. Além disso, o legislador, no § 4º, reafirma que as terras indígenas, tratadas no referido artigo, constituem-se como inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas são imprescindíveis. Com isso, as condições de sobrevivência das populações indígenas passam a ser incluídas como item importante na análise de estudiosos do assunto e nos pareceres sobre a criação legal das terras indígenas.

O disposto no caput do artigo 231 da CF/1988 regulamenta o direito à diversidade, revogando os demais artigos constitucionais que tratam da integração dos índios, reconhecendo as categorias de ―índios‖, ―comunidades‖ e ―grupos indígenas‖, excluindo-se assim a perspectiva assimilacionista que concebe os índios como categoria transitória. Nesse sentido, os índios passam a ser considerados como categoria étnica, enquanto segmento diferenciado da sociedade nacional, com direitos regulamentados sobre a posse e garantia de

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suas terras, enquanto direitos originários, anterior à criação do próprio Estado, permitindo- lhes, assim, a administração de seu patrimônio.

O artigo 232 dispõe que os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. Com isso, este artigo retira do órgão indigenista oficial, a FUNAI, a tutela parcial sobre os indígenas. Assim, estabelecem-se limitações à interveniência da FUNAI nos atos dos indígenas, permitindo-lhes ingressarem na justiça sem a mediação da FUNAI e com o acompanhamento do Ministério Público em todo o processo.

Decisões importantes para os indígenas e as suas comunidades passam a depender de aprovação do Congresso Nacional, como a aprovação de projetos de mineração e aproveitamento de recursos hídricos e energéticos em TI, ouvidas as comunidades indígenas ao longo do processo. Entretanto, as decisões do Congresso Nacional nem sempre atendem aos interesses dos índios. Um exemplo disso se deu na aprovação da hidrelétrica de Belo Monte quando da aprovação do referido projeto, apesar da discordância dos indígenas.

Disso, pode-se inferir que os dispositivos da Constituição Federal de 1988 expressam legalmente a defesa dos direitos e interesses dos índios, no entanto o direito de fato pode não representar o expressado formalmente em lei, haja vista as ressalvas presentes na própria CF/1988 conforme identificado no § 6º no que concerne ao ―[...] relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar [...]‖ (CF/1988, p. 131). Essa ressalva, disposta na CF/88 e as possíveis leis complementares subsequentes, autorizam o governo brasileiro, mediante aprovação no Congresso, colocar em discussão a implantação de macroprojetos, justificados por serem relevantes ao interesse público da União.

No que se refere à educação escolar indígena, o artigo 210 da CF/1988 estabelece que o ensino fundamental regular seja em língua portuguesa, com a garantia da utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Rodrigues (1988) se manifesta sobre isso durante a I Reunião Técnica sobre Educação Escolar Indígena, realizada em 1988 em Brasília, sob o patrocínio do MEC, com a participação da FUNAI e representantes de várias secretarias estaduais de educação.

Para esse autor a língua é o instrumento fundamental na educação, seja esta informal ou formal e escolarizada. Os processos cognitivos básicos dos seres humanos se desenvolvem em relação íntima com sua língua materna e isso faz desta o melhor instrumento de aprendizagem, tanto para a criança quanto para o adulto. Assim, assevera Rodrigues (1988), a utilização de uma segunda língua, na educação, só deveria ocorrer quando esta fosse

realmente dominada pelos alunos, pois, uma língua mal compreendida é um instrumento ilusório de educação, francamente prejudicial para os educandos.

A CF/1988 garantiu legalmente o direito à diferença. Apesar disso, sabe-se que na história do Brasil, as alterações legais não se traduzem necessariamente em mudanças nas políticas públicas, e neste caso indigenistas. A CF/1988 modificou a abordagem da diversidade cultural, em que os indígenas deixaram de ser considerados povos de cultura em vias de extinção, cujo destino desejável seria a incorporação à chamada ―comunhão nacional‖. Assegurou-se, conforme requerido pelos organismos multilaterais do capitalismo internacional, a alteridade cultural, a qual substituiu ideologicamente a referência à integração ou à incorporação do índio na comunidade nacional, que era a única via possível até a promulgação da citada Constituição.

Agora, o discurso remete ao índio o direito à existência não tutelada, do convívio coletivo social, ainda que isso expresse somente o discurso ideológico. Como consequência, têm-se o rompimento da unidade, em que o direito legal expressa a teoria e o direito de fato à realidade prática, concreta, uma vez que os avanços políticos não foram acompanhados de medidas concretas do exercício da chamada cidadania.

A Constituição de 1988 criou a necessidade de revisão da legislação ordinária e inclusão de temas novos no debate jurídico relativo aos índios. A partir de 1991, projetos de lei foram apresentados pelo Executivo e por parlamentares, a fim de regulamentar alguns dispositivos constitucionais e adequar à legislação anterior, pautada pelos princípios da integração dos índios à ―comunhão nacional‖ e da tutela, aos termos da carta nova. Esses novos procedimentos legais serão tratados nas seções seguintes, mormente aos relativos a educação e saúde indígenas.

A reforma do Estado no governo Collor (1990-1992) retira da FUNAI a exclusividade sobre a elaboração e execução de política indigenista. Assim, as ações de saúde e educação passaram a ser de responsabilidade dos ministérios da Saúde (MS) e da Educação (MEC), inaugurando, com isso, um modelo de ação descentralizado sobre as populações indígenas.

Esse processo de desmembramento de ação permitiu a fragmentação na atuação do Estado brasileiro sobre a referida população. A esse respeito, Verdum (2003) assinala que a descentralização provocou uma desarticulação entre os atores governamentais e não governamentais indígenas e não indígenas, vez que não há ―[...] um ou o ‗órgão indigenista governamental‘, mas um conjunto de atores governamentais e não-governamentais indígenas e não indígenas, envolvidos em políticas indigenistas setoriais e intersetoriais‖ (VERDUM, 2003, p. 12). Segundo ele, os atores responsáveis pelas políticas indigenistas deveriam

[...] ser melhor articulados, coordenados e orientados por objetivos claros, respaldados por instrumento legal adequado, por um orçamento suficiente e por uma capacidade técnica e política de gestão e avaliação compatível com o desafio da democracia participativa (VERDUM, 2003, p. 12).

Esse pensamento encontra ressonância na opinião de um ex-indigenista da FUNAI, em entrevista realizada em setembro de 200816 sobre as ações institucionais do Estado brasileiro atualmente, visto que considera que a descentralização provoca a desarticulação entre os vários órgãos estatais e não estatais que atuam com as populações indígenas, o que, ―[...] de certa forma, inviabiliza a implementação de políticas públicas, de projetos que visem conjuntamente o benefício dessa população‖ (Informação verbal, 2008).

Segundo Moreira Neto (2005) essa mudança, a descentralização dos órgãos indigenistas, não provocou grandes alterações na política indigenista do Brasil, visto que para este autor ela segue certa continuidade, pois desde suas origens, no período colonial, não houve mudanças significativas concretas até o presente momento (MOREIRA NETO, 2005). Para este autor a política indigenista brasileira caracteriza-se por certo imobilismo, haja vista que não proporcionou mudanças significativas para as populações indígenas no Brasil.

Em face dos preceitos legais da CF/1988, que apresenta modificações normativas nas relações do Estado com a sociedade civil, o Estado brasileiro, representado por suas instituições, viu-se obrigado a se adequar à CF/1988, criando novos dispositivos legais, a fim de que os mesmos atendessem as referidas alterações legais e normativas. Assim, as ações governamentais para essas mudanças foram promulgadas por meio de alguns decretos, leis, medidas provisórias e portarias, os quais serão examinados a seguir.