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2 ESTADO, DESENVOLVIMENTO, MIGRAÇÕES, POLÍTICAS PÚBLICAS E INDIGENISTAS

2.5 REFORMA DO ESTADO E O APARATO LEGAL

2.5.2 Processo de setorização institucional e saúde indígena

O Decreto Presidencial nº 23, de fevereiro de 1991, transferiu a competência da saúde da FUNAI, responsável pela coordenação das ações de saúde destinadas aos indígenas e vinculada ao Ministério da Justiça, para o Ministério da Saúde. À FUNAI restou a atribuição de implementar o novo modelo de atenção à saúde indígena.

O Decreto Presidencial nº 1.141/1994 contraria essa posição devolvendo a coordenação das ações de saúde à FUNAI, restituindo-lhe a responsabilidade sobre a recuperação da saúde dos índios doentes, e a prevenção é mantida sob a responsabilidade do Ministério da Saúde, assim como as ações de imunização, saneamento, formação de recursos

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humanos e controle de endemias. Entretanto, por meio da Medida Provisória nº 1.911-8, de 29 de julho de 1999, a assistência médico-sanitária das populações indígenas foi transferida da FUNAI para a FUNASA, órgão do Ministério da Saúde responsável pela atenção à saúde indígena.

Na sequência de decisões legais, em agosto de 1999 foi criado o Decreto nº 3.156 que dispôs sobre as condições para a prestação de assistência à saúde dos povos indígenas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e também incluiu a transferência de recursos humanos e outros bens da FUNAI para a FUNASA, destinados ao mesmo fim.

Em setembro de 1999, a Lei nº. 9.836 criou o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no âmbito do SUS. Nesse mesmo ano por meio da Portaria nº 852, de 30 de setembro de 1999, ficaram definidos e implantados no país os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI).

Em janeiro de 2002 foi aprovada a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas por meio da Portaria nº 254. A Portaria nº 70/2003 da FUNASA estabeleceu que fosse garantida a assistência à saúde apenas aos indígenas moradores nas aldeias. Essa portaria modificou a metodologia de atuação, porém não houve modificação na estrutura do órgão, permanecendo o modelo de execução, pois não foram dadas à FUNASA condições de colocar em prática o novo planejamento metodológico.

A Portaria nº 70/GM, de 20 de janeiro de 2004, estabeleceu as diretrizes da gestão da saúde indígena e atribuiu à FUNASA a total ingerência sobre a saúde indígena, conforme disposto no artigo terceiro, inciso I, o qual enuncia que competem à Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) as seguintes funções: ―I - Coordenar, normatizar e executar as ações de atenção à saúde dos povos indígenas, observados os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde‖. Observa-se com isso que a FUNAI deixou de ser o órgão público responsável pelas políticas públicas de saúde, destinadas aos indígenas, vez que a FUNASA absorveu essas funções.

Segundo Garnelo e Brandão (2002), a saúde indígena, configurada como um subsistema do Sistema Único de Saúde, assume no Brasil diversas peculiaridades em relação às formas próprias de operar do SUS. Uma delas se refere à responsabilidade de gestão que cabe, por designação constitucional, ao Governo Federal. Essa disposição jurídica confere à saúde indígena uma movimentação oposta à trajetória de descentralização percorrida pelo SUS, pois nela o poder decisório deve permanecer concentrado no âmbito de órgãos federais, encarregados de prover atenção à saúde dos povos indígenas.

Conforme visto acima a responsabilidade pela prestação de cuidados de saúde aos povos indígenas se alternou nos últimos anos entre a FUNAI, órgão do Ministério da Justiça, e a FUNASA, órgão do Ministério da Saúde. No período de 1991 a 1994, a FUNAI promoveu várias iniciativas visando reassumir suas antigas atribuições, alocadas em outros órgãos federais, conforme Decreto nº 23/1991. Esses esforços relacionaram-se às ações de saúde e em 1994, com a revogação do Decreto supracitado e a edição do Decreto nº 1.141/1994, recuperou a responsabilidade sobre a saúde dos povos indígenas no Brasil. Para Garnelo (2006) isso resultou, em termos concretos, na paralisação dos investimentos do Ministério da Saúde e no descumprimento do atendimento às necessidades sanitárias dos povos indígenas, visto que a FUNAI sofreu um profundo sucateamento.

Entretanto, em 1998, mediante um parecer do Ministério Público, foi apontada a inconstitucionalidade do Decreto nº 1.141/1994, o que ocasionou uma nova destituição da FUNAI ao provimento da saúde indígena, provocando um vácuo nesse provimento. Esse vácuo foi interrompido com a aprovação da Lei nº 9.836/1999 (Lei Arouca), que aprovou a criação do Subsistema de Saúde Indígena no âmbito do SUS.

Segundo Langdon (2000; 2004), a política de saúde indígena é setorial e produzida no contexto, tanto da política de saúde para a população brasileira em geral, quanto da política indigenista direcionada para as minorias étnicas que residem no território brasileiro. Na organização do SUS foi criado em 1999 o Subsistema de Saúde Indígena, que segundo seus mentores se deu face às desigualdades e iniquidades vivenciadas pelos povos indígenas no Brasil.

Na década de 1990, com a política neoliberal do Estado mínimo, houve um impacto nas políticas de alocação de recursos no SUS, causando redução no quadro de servidores e ocasionando repercussões negativas no setor da saúde e, consequentemente na política setorial da saúde indígena.

Esse impacto repercutiu também no Subsistema de Saúde Indígena, mediante setorização do atendimento, o qual foi organizado por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), compostos pelos postos de saúde no interior das Terras Indígenas (TI), pelos polos base e Casas do Índio. Nos postos de saúde passaram a atuar os Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e os Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN); nos polos base passaram a atuar as Equipes Multiprofissionais de Saúde Indígena (EMSI). Esse modelo foi adotado nos sistemas locais de saúde para a prestação de assistência à população aldeada.

No período de 1999 a 2000 a FUNASA implantou os 34 distritos sanitários existentes hoje no país. Com a distritalização houve extensão da cobertura sanitária para locais onde não

havia esse atendimento, entretanto essa setorização provocou a deterioração no serviço ofertado e na qualidade do referido serviço. Segundo Garnelo (2006) a qualidade dos serviços dos DSEI apresentou baixa resolutividade, mediante uso abusivo de medicamentos e acentuado etnocentrismo nas práticas sanitárias. Além desses problemas, Athias e Machado (2001), Pedrosa (2002) e Langdon (2004, 2007) destacam outros como: a baixa sensibilidade cultural da atenção dispensada, a irregularidade e baixa qualidade dos serviços, alta rotatividade da mão-de-obra nos distritos sanitários, entre outros. Para esses autores tais problemas estão vinculados à redução dos recursos destinados à saúde indígena, aos impactos da setorização e às deficiências da gestão da FUNASA. No que respeita à alta rotatividade da mão-de-obra nos distritos sanitários, esses autores assinalam que foram decorrentes de vários fatores, entre eles questões políticas, dificuldades de adequação ao trabalho, precárias condições de trabalho e pressões inerentes às funções dos profissionais que atuam nos distritos sanitários.

Langdon e Diehl (2007), ao analisarem o modelo de atenção à saúde indígena implantado a partir de 1999 no sul do país, especialmente em Santa Catarina, perceberam a existência de alguns entraves ao andamento eficiente desse modelo, o que dificultou a realização de um serviço básico com atenção diferenciada.

Para esses autores a capacitação dos AIS e o seu papel não foram bem definidos e isso ocasionou dúvidas e equívocos na execução das tarefas. Além disso, o processo de seleção desses agentes foi determinado por meio de interesses políticos internos e externos e isso dificultou na seleção de pessoal qualificado. Outro fator prejudicial assinalado por Langdon e Diehl refere-se às relações hierarquizadas dos AIS com os outros profissionais de saúde e com os índios. A atenção diferenciada, que seria o norte na condução das relações com os usuários desse sistema, foi pouco compreendida pelos AIS e pelos demais membros das Equipes Multiprofissionais de Saúde (EMS).

Para Garnelo (2006) o atual modelo de atenção à saúde indígena incorpora o antigo modelo do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que consistia na persistência do modelo campanhista de assistência à saúde, baseado no deslocamento periódico de Equipes Volantes de Saúde (EVS) para as aldeias. Entretanto, nesse modelo, adotado na atualidade, a cobertura na atenção à saúde é descontínua, portanto, incapaz de prevenir doenças e promover a conservação da saúde.

Além disso, com a responsabilidade total da FUNASA na atenção à saúde indígena, esse órgão recebeu atribuições para as quais não dispunha de condições na sua estrutura, pois

não contava com recursos humanos em termos qualitativos e quantitativos17. Assim, diante dessas limitações, houve por parte da FUNASA a opção da terceirização, por meio de convênios, com prefeituras municipais, organizações indígenas e outras organizações não governamentais. Na realidade, essa experiência de terceirização não era nova, pois foi usada no passado como estratégia no SUS, com convênios entre o Governo Federal e as secretarias de saúde municipais, porém foi abandonada em decorrência de entraves burocráticos inerentes a esse tipo de pactuação.

A respeito da terceirização das ações à saúde indígena, Garnelo (2006) aponta dificuldades graves, como: lentidão no fluxo de custeio, descontinuidade das ações, gasto excessivo em atividades-meio de administração das convenentes e tendência ao uso inadequado dos recursos disponibilizados.

Segundo essa autora (2007), outro aspecto dificultador do modelo de distritalização refere-se ao abandono da noção de integralidade, visto que as práticas sanitárias se caracterizam pela fragmentação dos procedimentos e pela ausência de ações estruturais (intersetoriais) que proporcionem ampliação do acesso aos serviços de saúde e melhore as condições de vida.

Para Garnelo (2007), as análises dos documentos normativos do Subsistema de Saúde Indígena se mostram repetitivos em princípios genéricos de ação, como o que aponta para a articulação e fortalecimento dos sistemas de medicina tradicional, haja vista não se traduzirem em atividades concretas nas programações anuais dos DSEI e nem nas práticas sanitárias das equipes.

Quanto ao perfil de qualificação dos profissionais que pertencem aos quadros dos DSEI há dúvidas em relação à qualidade da formação destes, mediante habilidades e competências exigidas para a execução da função como profissionais empregados nos distritos sanitários que atendem a população indígena. Além disso, como os profissionais contratados possuem contrato fixo, por tempo restrito e não renovável, isto gera alta rotatividade na contratação, influenciando nos investimentos com vistas à capacitação. Como consequência, têm-se uma fragilidade nos vínculos trabalhistas dos contratados pelas conveniadas.

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Conforme dados do Tribunal de Contas da União (TCU)/Secretaria de Fiscalização e Avaliação de Programas de Governo e Relatório de Auditoria na Fundação Nacional de Saúde, referente ao período de abrangência de 2000 a 2007, a FUNASA possuía cerca de 63,7 mil pessoas em sua folha de pagamento, entre eles 46% era cedido a estados e municípios, aproximadamente 36% eram aposentados ou pensionistas e apenas 18% do quadro efetivamente desempenhavam atividades de sua responsabilidade.

Outro aspecto também a destacar são as lacunas nos desenhos da programação das ações distritais, em decorrência da ausência de informações consistentes sobre o perfil epidemiológico e as necessidades de saúde das populações indígenas atendidas, que inviabilizam a execução do trabalho com qualidade.

Vale destacar que a implantação do Subsistema de Saúde Indígena se efetivou sob o ápice da descentralização no SUS, com a transferência de competências dos órgãos federais para as secretarias municipais de saúde. De modo inverso, mediante centralização, deu-se a política de saúde indígena vinculada à FUNASA, órgão federal gestor e executor do Subsistema de Saúde Indígena.

Depreende-se das leis acima citadas que a condução da saúde indígena, conforme interesses político-ideológicos do Governo Federal tem passado a gestão de um órgão a outro. Essas mudanças de gestão e a descentralização vêm gerando dificuldades na atenção da saúde indígena, visto que não há unidade de gestão, isto é, cada órgão e suas instâncias regionais deliberam as suas políticas independentemente. Um exemplo disso é o caso da FUNASA que sem condições de contratar pessoal, efetua convênios e contratos com prefeituras e organizações da sociedade civil, indígenas e não indígenas, para promoverem a saúde indígena. Esses procedimentos não levaram a resultados positivos. No caso das organizações indígenas que passaram a fazer a execução de projetos de saúde houve a mudança de papéis, visto que abandonaram a condição de controladores das ações dos órgãos, deixando de exercer o papel importante de controle social.

À semelhança do que ocorreu na saúde tem-se a descentralização da educação indígena, a qual será discutida a seguir.