• Nenhum resultado encontrado

PONTUAÇÃO DO ITEM INTERPRETAÇÃO DO ITEM 0 ≤ Escore ≤20 Discordância total

2 ESTADO, DESENVOLVIMENTO, MIGRAÇÕES, POLÍTICAS PÚBLICAS E INDIGENISTAS

2.1 ESTADO: BREVE RELATO HISTÓRICO DE SUA ORIGEM

Examinar as políticas públicas no Brasil, em especial as relacionadas e dirigidas às populações indígenas, exige que se faça um resgate sobre as diversas concepções do Estado moderno e sua relação com a sociedade civil. No decorrer da história da sociedade moderna, duas concepções de Estado são postas à discussão por acadêmicos e intelectuais: a que concebe o Estado como representante do bem comum e a que representa os interesses dominantes nas relações entre o Estado e a sociedade como relações de poder, isto é, o entende como representante de relações de poder entre classes sociais, estando este a serviço do poder hegemônico, da classe que detém o poder econômico e político.

No século XVI, Maquiavel, em sua obra ―O príncipe‖ (1513), analisou os diversos tipos de principados e as formas de governar, explicitando como os governantes devem proceder para conquistar e manter o poder. Em sua defesa sobre a centralização do poder político, assinala que ―Todos os Estados, todos os domínios que tem havido e que há sobre os homens foram e são repúblicas ou principados‖ (MAQUIAVEL, 1971, p. 11). Essa obra, considerada como crucial na construção do conceito de Estado, como modernamente é conhecido, descreve as maneiras de conduzir o governo mediante um poder concentrador, capaz de governar os homens pelas regras dos príncipes. A defesa de Maquiavel no que

concerne à centralização do poder político nas mãos do governante e suas recomendações sobre a melhor maneira de administrar o governo caracteriza a obra como uma teoria do Estado moderno, conforme assinalam diversos autores.

No século XVII, Thomas Hobbes, filósofo inglês, na obra ―Leviatã‖ (1651), ao analisar a natureza humana e a necessidade de governos e sociedades mediante um ―contrato social‖ propõe que a sociedade precisa de uma autoridade que soberanamente, mediante um poder absoluto e centralizado, possa assegurar a paz e a defesa comum; o Estado Leviatã. Para Hobbes, só é possível o exercício do poder por meio de um Estado forte, uma autoridade inquestionável. Só o poder absoluto é capaz de promover a obediência de seus súditos. Os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto, por meio de um pacto social. O pacto é o pretexto para justificar o exercício incondicional da dominação do monarca sobre seus súditos, em que, como assinala o autor, os homens:

[...] Cedem e transferem seus direitos a governarem-se a si mesmos a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferirem seus direitos a ele [...], autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas (HOBBES, 1974, p. 109).

O pacto social representa então, o enquadramento do cidadão para justificar o exercício do poder pelo Estado Leviatã. Para Hobbes (1974, p. 110), o exercício do poder advém da ―[...] autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror, assim inspirado, o torna capaz de conformar as vontades de todos eles‖. Nesse sentido, governar por meio do temor, da punição é essencial para um governo forte e coercitivo.

O Estado Leviatã em Hobbes se justifica pelos problemas vividos por este no Estado moderno. Segundo o autor, os homens de sua época em um estado puro ou natural, ou ―estado de natureza‖ encontram-se em constante ―guerra de todos contra todos‖ e nesse estado prevalece o egoísmo, o egocentrismo e a insegurança. As leis que regulam o comportamento humano são inexistentes, o senso de justiça não foi formado, o que permite aos homens agirem conforme seus interesses e paixões, fato este que levaria à aniquilação os mais fracos nessa sociedade sem leis e regras, conforme enfatiza Hobbes:

A cada um foi dado direito a tudo pela natureza; isso significa que em estado puramente natural, ou seja, antes do compromisso entre os homens através de convenções ou obrigações, era lícito a cada um fazer o que quisesse, ou contra quem bem julgasse, e podendo, portanto, usufruir e desfrutar de tudo o que quisesse ou pudesse adquirir (HOBBES, 2006, p. 23).

Hobbes, nessa passagem, reforça suas teses lançadas no ―Leviatã‖ (1651) a necessidade de um poder centralizador das ações dos homens, de um Estado absoluto.

No século XVII, John Locke (1973; 1999), filósofo inglês ideólogo do liberalismo, principal representante do empirismo britânico é também um defensor do ―contrato social‖. Tanto Hobbes como Locke são jusnaturalistas, ou seja, procuravam no ―estado de natureza‖ a explicação do ―pacto social‖, bem como da estrutura do governo político.

No ―estado natural‖, os homens viviam em perfeita liberdade e harmonia, contudo estariam sujeitos a certos inconvenientes (LOCKE, 1999). Nesse sentido, um dos principais problemas seria ―[...] a possível inclinação no sentido de beneficiar-se a si próprio ou a seus amigos. Como consequência, o gozo da propriedade e a conservação da liberdade e da igualdade ficariam seriamente ameaçados‖ (LOCKE, 1999, p. 16). Assim, o contrato seria estabelecido não entre governantes e governados, mas entre homens igualmente livres, onde o estado natural seria abandonado e se criaria uma sociedade política. Em realidade, tal argumento consiste em pretexto para justificar a presença do Estado.

Apesar da defesa contratualista, há diferenças nas concepções de Hobbes e Locke. Para Hobbes, o Estado absoluto era imprescindível à manutenção da ordem social, daí a necessidade do poder coercitivo, absoluto, centralizado e da obediência da sociedade, mediante pacto, de modo que este pudesse assegurar a paz e a defesa comum, a ordem social. Em Locke, o Estado tem função diferente do idealizado por Hobbes, vez que se configura como um Estado guardião, que apenas centraliza as funções administrativas, mas não atua como único ente capaz de coibir a natureza violenta e agressiva humana.

O contrato social em Locke é consentido pelos indivíduos da sociedade ao Estado para que este governe de modo a garantir os direitos individuais, assegurar a segurança jurídica, o direito a propriedade privada, aprofundando assim os direitos naturais dados por Deus ao indivíduo.

A abordagem de Locke (1973) contraria a visão hobbesiana, representada pelo Estado Leviatã, pois assume a concepção do Estado do bem comum. O pacto consiste na concessão de todo o poder que os indivíduos têm no Estado de natureza ao ceder às mãos da sociedade e, dessa maneira, aos governantes, com o encargo expresso ou tácito de que seja empregado para o bem de todos e para a preservação da sociedade. Ao renunciar aos direitos naturais e os confiar ao Estado, o que está em discussão é a garantia, de modo racional, da sua propriedade e dos seus bens.

Rousseau (1973), outro filósofo do contratualismo, no século XVIII expressa as concepções filosóficas que fundamentaram a sociedade moderna. A ilustração ou filosofia das

luzes correspondeu à crença na razão humana. Na obra ―Do contrato social‖ (1762), Rousseau expõe sua noção de contrato social que, diferentemente de Hobbes e Locke, considera que o pacto social representa a vontade social, ou seja, por ser um pacto de associação de vontades de indivíduos e não de submissão destes, expressa os diversos interesses da sociedade, que não se constituem na somatória das vontades individuais. Para Rousseau o bem comum representa ―[...] uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes‖ (ROUSSEAU, 1973, p. 38). Por isso, por meio do contrato social, abre-se uma via de sobrevivência em que o homem passa do ―estado natural‖ para o civil, construída não apenas por indivíduos isolados, mas por uma vontade geral, sob administração do Estado.

No século XIX, Karl Marx (1982) apesar de não se deter no estudo do Estado, interpreta-o como instrumento de dominação de classe, em que os meios de produção estão a serviço da classe dominante. Marx, embora desejasse submeter o Estado a um estudo sistemático e aprofundado, conforme atestam alguns autores, não o empreendeu. No entanto, em diversas obras5, assinala que o Estado representa uma estrutura de poder que concentra e põe em movimento a força política da classe dominante. No ―Manifesto Comunista‖ (1848), Marx e Engels identificam a burguesia moderna como classe opressora, detentora dos meios de produção e, portanto, do poder político capaz de subjugar a classe proletária. Assim afirmam: ―O executivo do Estado moderno nada mais é do que um comitê para administrar os assuntos comuns de toda burguesia‖ (1848, p. 36). Em outra passagem expressam a mesma ideia: ―A força de coesão da sociedade civilizada é o Estado, que, em todos os períodos típicos, é exclusivamente o Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada‖ (1848).

No século XX, Lênin (1978, p. 141) fundamentado na análise materialista marxista, na obra ―O Estado e a revolução‖ (1917) analisa o Estado como instrumento de dominação de classe e assinala fundamentado em Marx que: ―[...] O Estado é um organismo de dominação de classe, um organismo de opressão de uma classe por outra; é a criação de uma ‗ordem‘ que legaliza e consolida essa opressão [...]‖ (MARX apud LÊNIN, 1978, p. 141). Nesse contexto, o Estado se configura como representante dos interesses de classe, cuja finalidade é garantir os privilégios da classe detentora de poder, da classe burguesa, em detrimento da classe proletária.

5

A burguesia e a contra-revolução (1848); As lutas de classe em França de 1848 a 1850 (1850); O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (1852).

A partir da análise supracitada, na qual se buscou apresentar na história o Estado como modernamente conhecido, isto é, como representante do poder político e, portanto dos interesses hegemônicos, apresenta-se o modus operandi de como se empreendera a discussão em questão.