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1.2 – Cibertexto – uma teoria para leitura interativa

No início dos anos 1990, Espen Aarseth preocupava-se, como muitos acadêmicos na época, em compreender e teorizar o hipertexto. A Internet ainda não havia se tornado o fenômeno que depois se tornou e Aarseth foi um dos primeiros pensadores a se opor às tentativas de uso das teorias literárias para explicar jogos e outras atividades no computador, assim, em 1994 escreveu um texto no qual contesta o uso do termo “hipertexto” para explicar diferentes fenômenos. Ele então propôs que textos não-lineares fossem objetos de estudo de outro campo de conhecimento (Wardrip-Fruin 2003: 762-780). Em 1997, Aarseth ampliou a aplicabilidade de seu estudo para fenômenos além do hipertexto. No livro “Cybertext:

Perspectives on Ergodic Literature” (1997) ele propõe o uso do termo “cibertexto” para definir uma ampla gama de atividades de leitura, incluindo jogos de computador e hipermídia. Antes, é necessário compreender como Aarseth usa alguns termos em sua teoria:

O sentido de texto, usado neste estudo é mais próximo do trabalho lingüístico (ou observável) do que da galáxia de significados pós-estrutural (ou metafísico). Mas, apesar do meu sentido ser próximo de ambos os significados, ele também é radicalmente diferente deles. Em vez de definir texto como uma cadeia de significados, como fazem lingüistas e semioticistas, uso a palavra para toda uma extensão de fenômenos, de poemas breves até complexos programas e bases de dados. Como indica o prefixo ciber, o texto é visto como uma máquina – não metaforicamente, mas, como um artifício mecânico para a produção e consumo de signos verbais. Da mesma forma que um filme é imprestável sem um projetor e uma tela, assim um texto deve consistir de um meio material bem como de uma coleção de palavras. A máquina, claro, não está completa sem uma terceira parte, o operador (humano), e é dentro desta tríade que o texto acontece (Aarseth 1997: 20-21) (itálicos do próprio autor).

Segundo Aarseth, o prefixo ciber é derivado de cybernetics, do livro (e disciplina) de Norbert Wiener3, usado originalmente para descrever sistemas (orgânicos e inorgânicos) que contenham algum tipo de “feedback” (ibid), ou seja, sistemas que possuem algum canal de retro-alimentação. O termo “ergódico” advém da física e deriva das palavras gregas ergon e

hodos, significando trabalho e caminho. “Durante o processo cibertextual, o usuário terá

efetuado uma seqüência semiótica, e o movimento seletivo é um trabalho de construção física que vários conceitos de ‘leitura’ não dão conta de explicar” (Aarseth 1997: 1). Ou seja, ao ler um cibertexto, algum caminho é percorrido e algum rastro é deixado pelo usuário.

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3- Citação de Aarseth: WIENER, Norbert (1948). Cybernetics; or Control and Communication in the Animal

Em resumo, Aarseth propõe a compreensão do uso de aplicativos interativos através do conceito de cibertexto. Ciber, uma atividade com algum tipo de informação retro- alimentada e “texto” porque o termo quer dizer um conteúdo que não se separa do meio que o suporta nem do operador que o opera. Ao utilizar um cibertexto, o usuário percorre um caminho e deixa um rastro, que é descrito na teoria através do termo ergódico. A todo este processo o autor chama “literatura ergódica”. Antes de propor uma teoria fechada, ele a propõe como uma “perspectiva”, prevendo que novas formas de utilização do cibertexto surgirão, e que estas deverão se incorporar à teoria, ou ampliá-la.

Aarseth trata texto como uma máquina, que não está completa senão por um humano e que, adicionalmente, deve consistir de uma mídia material, ou seja, deve existir em um meio material que exerce influência no processo. Temos aí a tríade que ele monta em um diagrama.

OPERADOR TEXTO / MÁQUINA SIGNO MEIO VERBAL Figura 1.1

Um texto, então, é qualquer objeto com a função primária de transmitir informações. Duas observações seguem desta definição: (1) um texto não pode operar independentemente de algum meio material, e isto influencia seu comportamento; e (2) um texto não é igual à informação que ele transmite. Informação aqui é entendida como uma seqüência (string) de signos, os quais podem (mas não tem que) fazer sentido para um dado observador (Aarseth 1997: 62) (itálico do próprio autor).

Sobre a “string” ou seqüência de signos, Aarseth as distingue entre scriptons, que são as seqüências como elas aparecem para os leitores; e textons, que são as seqüências de signos conforme elas existem no texto, ou, como foi explicado, são as unidades mínimas de leitura do texto. Como exemplo, ele cita o livro Cent Mille milliards de poèmes (Raymond Queneau), que possui apenas 140 linhas de texto (140 textons) que se combinam em cem mil milhões de poemas, ou seja, 100.000.000.000.000 de possíveis scriptons. Esse poema foi reproduzido no livro The New Media Reader (Wardrip-Fruin 2003: 147-167). Aarseth mostra então que a partir de sete variáveis podemos analisar qualquer texto, conforme a tabela seguinte:

Variável: Valores possíveis: Dinâmicas (Dynamics) Estático, Intratextônico (IDT) e Textônico (TDT)

Determinabilidade (Determinability) Determinável, Indeterminável. Transiência (Transiency) Transiente, Intransiente. Perspectiva (Perspective) Pessoal, Impessoal.

Acesso (Access) Randômico, Controlado.

Ligação (Linking) Explícito, Condicional, Nenhum.

Funções do Usuário (User Function) Exploratória, Configurativa, Interpretativa, Textônica.

Cada variável é bem detalhada no livro. Aqui serão mostradas apenas duas com a finalidade ilustrativa. Para a variável “dinâmicas”, por exemplo:

a) um texto é estático quando os scriptons são constantes ou;

b) um texto é dinâmico quando: os conteúdos dos scriptons podem mudar enquanto o número de textos permanece fixo (IDT) ou quando tanto os scriptons quanto textons (em número ou conteúdo) podem mudar (TDT).

Outro exemplo: tomando a variável “determinabilidade”, um texto pode ser:

a) determinável se os scriptons adjacentes (a cada um deles) são sempre os mesmos, ou; b) indeterminável no caso contrário.

Para ilustrar a relação entre cada conceito e as funções do usuário na teoria da leitura ergódica, Aarseth montou um esquema, um gráfico:

Leitura Dinâmicas Tipo de Texto Função do usuário

Figura 1.2: Representação gráfica da leitura ergódica.

CYBERTEXTO HIPERTEXTO TEXTO COMUM TEXTÔNICA DINÂMICA CONFIGURATIVA EXPLORATIVA INTERPRETATIVA LINEAR ERGÓDICO U S U Á R I ESTÁTICA O

A explicação sobre o as relações do usuário com os tipos de texto é simples e pode ser encontrada em Aarseth (1997: 64-65), reproduzida a seguir. Observando abaixo da linha tracejada inferior (fig 1.2) veremos que tudo o que está abaixo dela se refere à leitura LINEAR. Na coluna “Dinâmicas” vê-se o estado estático dos textos, porque os scriptons são estáticos e o usuário não pode mudar um discurso linear. Ainda na camada da leitura LINEAR, na coluna “Tipo de Texto”, encontra-se qualquer dos três tipos de texto: o ergódico, o hipertexto ou o texto comum. Isso quer dizer que qualquer tipo de texto tem uma porção de leitura linear. Na coluna “função do usuário” vê-se que a função do usuário na leitura LINEAR é apenas

interpretativa.

Observemos então acima da linha tracejada inferior. Tudo o que estiver acima daquela linha refere-se à leitura ERGÓDICA. A variável “Dinâmicas” neste caso pode estar tanto no estado estático quanto no estado dinâmico. A leitura ERGÓDICA estática acontece no caso do hipertexto. Já a leitura ERGÓDICA dinâmica é aquela que Aarseth chama cibertexto. O autor explica que o sentido das setas indica as funções que o usuário pode realizar, por exemplo, na leitura LINEAR a função do usuário é apenas interpretar e o sentido da informação é sempre do texto para o usuário. Na leitura ERGÓDICA de um cibertexto, por exemplo, o usuário “deve” realizar a tarefa interpretativa (obrigatória em todos os tipos de texto), e em adição ele pode realizar as funções explorativa, configurativa e/ou textônica. A função textônica é aquela em que o usuário pode alterar os textons, ou seja, o próprio conteúdo de que são feitos os textos. Essa teoria, a tipologia, e a forma de abordar os diversos tipos de texto são bastante flexíveis e serve para analisar desde os livros tradicionais até hipermídia, audiovisual, jogos de computador, ou aplicativos interativos na TVi.

Afinal, o que tem esta teoria a ver com TVi? Aarseth partiu da “máquina texto”, e “texto” tem sentido amplo, assim pode-se usar a teoria para compreender a relação triádica entre usuário, a TVi e os aplicativos televisuais interativos. Seguindo o mesmo raciocínio de Eskelinen (2001) que analisou jogos de computador usando a teoria de Aarseth: o operador, na tríade, pode ser substituído por tele-interator, o meio pode ser substituído por TVi, e signo

verbal será a cadeia de signostelevisuais interativos. Nos aplicativos da TVi encontraremos leitura LINEAR (filmes, novelas, telejornal, etc) durante as quais os usuários exercerão apenas

a função interpretativa (figura 1.2). Quando um aplicativo interativo da TVi é executado o usuário adentra o campo da leitura ERGÓDICA e geralmente o primeiro tipo de “texto” em que o tele-interator adentra é o hipertexto. Nesse momento o usuário continua a exercer a função interpretativa e pode passar a exercer também a função explorativa, ou seja, pode explorar o hipertexto. Conforme os usuários utilizam aplicativos mais sofisticados, com interatividades

mais complexas e com níveis maiores de automação, eles passam a utilizar cibertextos. Os usuários continuam tendo que interpretar o conteúdo, mas podem começar a explorar o ambiente. Podem ainda fazer uso de funções superiores, como configurar o ambiente e até mesmo modificá-lo, quando lhes forem permitidos usar a função textônica.

Vamos tentar aplicar esta teoria para entender alguns exemplos práticos de aplicativos interativos na TVi, analisando apenas a função do usuário. Em um dado momento um usuário da TVi clica o botão de interatividade e seleciona um serviço no qual aparece uma tela com texto simples, como o serviço de teletexto, ainda comum na Europa (Gawlinski 2003: 10). A função que o usuário poderá fazer é interpretar o scripton (o texto literal) que foi montado na tela. Ocorre que o fato de o usuário ter ativado a interatividade já o coloca na condição de explorador, portanto, neste sentido, na TVi o usuário apenas terá a função de leitor linear quando assistir a uma narrativa linear, uma novela ou telejornal, por exemplo. Em outro momento, o usuário aciona um serviço em que links ou botões apontam para outras telas, como nos serviços walled gardens. Nesse caso, o usuário executa tanto a função interpretativa (ao interpretar o conteúdo da tela) quanto explorativa (ao vasculhar outras páginas ou outros ambientes do aplicativo). Num terceiro momento, o usuário aciona o botão interativo e, por exemplo, entra em um jogo (um arcade game) no qual lhe é permitido “montar” um avatar através de menus, da mesma forma como se montam personagens nos RPGs. Nesse caso o usuário executa uma função configurativa porque está alterando parâmetros do ambiente. O quarto momento é mais difícil de ser pensado na TVi, porque na função textônica o usuário deve ser capaz de modificar o conteúdo, ou seja, modificar os textons. Como na TVi o conteúdo geralmente segue o modelo top-down, da emissora para o usuário, é mais difícil pensar uma forma de o usuário modificar os textons que compõem o audiovisual. Há exemplos de jogos atuais nos quais os usuários modificam partes da programação (textons) dos jogos, criando novos cenários, novas funções, novas regras que alteram a forma como estes jogos são apresentados. Isso é até possível na TVi porque em ambientes de rede pode-se pensar que o usuário tem possibilidade de enviar textons pelo canal de retorno para a emissora. Outra forma de atuação textônica seria este usuário alterar os textons no aplicativo que estiver rodando localmente no STB. Embora não seja prática usual, há canais pelos quais é possível inserir imagens e vídeo nos STBs, através de portas de entradas como a USB.

A teoria de Aarseth ajuda a entender a relação que o usuário tem com qualquer conteúdo da TVi, desde uma narrativa linear, até a mais interna camada da “cebola”, fazendo aqui uso da metáfora de Ryan (2005a) anteriormente exposta. Essa teoria pode ajudar

entre o usuário, o meio TVi e o conteúdo televisual interativo. A teoria pode inclusive ser relacionada com a tese (e a metáfora) de Ryan sobre interatividade. Para alcançar o miolo da cebola de Ryan, ou seja, para fazer com que o usuário tenha interatividade interna-ontológica, um designer de aplicativos televisuais interativos deverá permitir que o tele-interator seja, de alguma forma, um personagem interno do audiovisual. Além disso, este usuário deverá ter capacidade de modificar o ambiente (enredo, cenário, regras, etc) e esta é a função textônica do usuário que Aarseth descreve em sua teoria. Os outros graus de interatividade da tese de Ryan podem ser facilmente encaixados na teoria de Aarseth a partir do grau mais básico descrito por Ryan: a interatividade externa-exploratória (a casca externa da cebola), na qual o usuário observa o ambiente de um ponto de vista externo e pode apenas “ler” o conteúdo audiovisual; que na teoria de Aarseth equivale à função interpretativa da leitura linear. As duas abordagens, a de Aarseth e a de Ryan, de certa forma se completam e se equivalem.

No início do presente trabalho foi falado sobre a necessidade de um conceito teórico estabelecido que pudesse servir de base para compreender TVi. Também foi explicado sobre a necessidade de uma teoria que pudesse explicar a relação entre os atores, entre os elementos componentes da tríade usuário, meio e conteúdo. Para este fim foi escolhida a teoria do cibertexto de Aarseth, enquanto que para aquele fim fez-se opção pela hipermídia e a partir de suas características mais importantes foi feita uma análise entre as diferenças e semelhanças entre TVi e hipermídia. Assim, espera-se que a esta altura do presente texto estejamos munidos de fundamentos para analisar as propostas de novos tipos de aplicativos interativos que serão mostrados nos próximos capítulos. Contudo, falta ainda compreender o que é TVi, o que será feito em seguida.