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2.4.4 – IDtension – uma proposta francesa.

Há uma pesquisa sobre drama interativo em desenvolvimento na França que se afasta um pouco da proposta narratologista baseada na teoria neo-aristotélica, mas que ainda pode ser classificada como narratologista em virtude de fazer uso das teorias literárias na tentativa de modelar o sistema em desenvolvimento. Encabeçando o projeto, Nicolas Szilas preferiu descartar a teoria neo-aristotélica, melhor seria dizer que descartou algumas teorias narrativas, para criar sua própria teoria. Szilas segue o seguinte raciocínio: “atualmente há duas formas

que contribuem par implementar narrativa interativa nos computadores: hipertexto e jogos. Uma terceira forma é a do drama interativo, que ainda não foi efetivamente implementado porque, ou não aplicam a história em si ou ela é limitada a um gráfico de possibilidades determinadas pelo autor” (Szilas 2003). Segundo ele, sobre drama interativo há duas atitudes: os que proclamam sua impossibilidade (Jull, Frasca, Aarseth e outros ludologistas) e os crêem na sua possível existência e pesquisam buscando soluções (Mateas, Young, Magerko e ele próprio). Cada um desses últimos, segundo Szilas, tem usado as teorias narrativas da forma como lhes convém, e ele pensa que uma nova teoria deve ser criada (ibid).

Qualquer tentativa de construir um sistema para contar história interativa é guiada por um conjunto de teorias sobre o que é uma narrativa. Essas teorias podem produzir um modelo de narrativa de computador (...) É tentador na nossa atual descrição começar pelas teorias, e mostrar como tais teorias são usadas no modelo de computador, a fim de justificar escolhas de algoritmos específicos. Contudo, isto poderia ser uma ilusão de justificação. Há abundância de diferentes teorias narrativas, e pesquisadores do contar histórias digitalmente estão de fato escolhendo a teoria mais conveniente para suas aplicações. Além do mais, muitas das teorias narrativas não estão cientificamente estabelecidas; assim, a verdade de uma teoria contra outra é em si mesma controversa (...) Dessa forma, nós explicitamente desenhamos nossa própria teoria de narrativa e drama, duplamente influenciada pelas teorias existentes e pelas necessidades específicas de uma simulação em computador. Este modelo teórico serve como um intermediário entre teorias existentes e implementações práticas (ibid).

A teoria sobre a qual ele constrói modelo dele baseia-se em três pressupostos, que podem ser encontrados em Szilas (2003: 2):

1 – Qualquer narrativa é um discurso, ou seja, transmite uma mensagem ao seu leitor, espectador ou ouvinte. Isto significa que o autor não é isento e que toda história tem um tipo de moralidade. Deve então haver um conjunto de valores que julga se uma ação é boa ou ruim, mesmo que o “bem” e o “mal” sejam relativos.

2 – Uma narrativa é um tipo específico de discurso que envolve história. História é descrito por ele como uma sucessão de eventos e ações dos personagens seguindo uma série de regras. Partindo do estruturalismo, Bremond demonstrou que mesmo os belos contos russos estudados por Propp consistem de várias seqüências sobrepostas. A teoria de Szilas baseia-se no modelo de Bremond e Todorov26.

3 – A percepção deve ser levada em conta. Quando o nível da percepção é omitido, poderá até haver narrativas gramaticalmente perfeitas, mas que o receptor poderá não entender ou nas quais o receptor poderá não se engajar.

A abordagem que este projeto dá ao gerenciamento do drama interativo é semelhante à dos projetos Mimesis e IDA, a seguir, ou seja, esse projeto “foca nas propriedades narrativas

em vez de focar no curso de eventos e ações” (Szilas 2003: 2). Szilas, Marty e Réty justificam que o modelo baseado em enredo (plot-based) não é apropriado para o nível de interatividade que eles desejam disponibilizar porque são fundamentalmente lineares: a ordem dos eventos é pré-determinada. Por outro lado, a modelagem de personagens (character-based) simulando seres humanos não é suficiente para garantir a geração de histórias bem construídas porque, fundamentalmente, uma narrativa nesses casos têm causalidade inversa. O projeto francês, denominado IDtension é baseado num modelo computacional derivado da teoria acima, que por sua vez tem sua base no modelo estruturalista (Szilas, Marty & Réty 2003: 2-3).

Se examinarmos de perto os modelos estruturalistas, duas características são de interesse particular para o Drama Interativo: primeiro, os estruturalistas introduziram a particular idéia de uma função, uma ação definida a partir do ponto de vista da intriga. Assim, o estruturalismo foca diretamente no significado das ações, a partir da perspectiva da história. Aplicado a aplicações interativas, isto fornece uma clara distinção entre ambientes virtuais realísticos, que imitam o mundo real (ver personagens baseados em IA em mundos virtuais realísticos), e Drama Interativo, que almejam expressar significância através da narrativa (...) “A paixão que nasce da leitura de um romance não é a da visão, mas a da significação” [citação de Barthes]. Tendências atuais no Drama Interativo confirmam esta evolução através de uma visão global do Drama Interativo. Segundo, teóricos estruturalistas formalizam suas abordagens, modelando transformações na narrativa com lógica baseada em predicado. Este tipo de formalismo é apropriado para a simulação no computador mesmo que a transcrição da teoria para a programação do computador não siga um curso direto (Szilas 2002: 2).

__________ __________ __________ __________ __________ __________ __________ 26 – São apontados dois livros, dos quais entendo que aqueles cientistas tiraram suas teorias:

- Bremond, C.: Logique du récit. Seuil, Paris (1974);

O sistema IDtension consiste de cinco módulos, cada um com funções específicas. O módulo world of the story cuida das entidades básicas da história (personagens, metas, tarefas, obstáculos, etc), do estado dos personagens e dos fatos relativos à situação material do mundo da história (por exemplo, se uma porta está fechada, se um copo está cheio).

O módulo narrative logic calcula o conjunto de todas as ações possíveis para um personagem num determinado estágio da narrativa, e o faz baseado em informações provenientes do estado das coisas no world of the story.

Há outro módulo no sistema, denominado user model que armazena o estado do usuário no drama em um dado momento e também calcula o impacto que cada ação calculada pelo narrative logic pode provocar sobre o usuário.

A dinâmica deste sistema gira em torno de um núcleo, o módulo narrative sequencer, que recebe a lista de todas as ações possíveis para um personagem (vinda do narrative logic) e a envia para o módulo que gerencia o usuário (user model) para que este último avalie os possíveis impactos que cada ação pode causar no usuário. O user model então devolve o cálculo do impacto para o narrative sequencer que, a partir daí, prioriza, seleciona e cria um ranking das ações mais valiosas tentando conseguir efeitos narrativos ou tentando preencher alguma necessidade do usuário.

Em outras palavras, e de uma forma mais abstrata, há nesse modelo um mundo no qual coisas (personagens, objetos, etc) existem e tem seus estados (aberto, parado, vivo, etc). Esse mundo informa um agente que calcula as possibilidades de continuação para a narrativa a cada momento. Há o interator que age neste mundo e ele é “modelado” em função de suas ações e reações aos acontecimentos do mundo virtual. Baseado neste modelo do usuário o programa calcula o impacto de uma certa ação sobre ele. Um gerente de drama é usado para analisar, a partir da lista de ações e do impacto delas sobre o usuário, qual a ação seguinte que será executada no palco (a interface).

Dependendo do modo narrativo escolhido para o seqüenciador narrativo, há várias formas para ativar estes cinco módulos. Atualmente, temos dois modos: 1) geração automática: o seqüenciador narrativo escolhe uma ação dentre as melhores ações, que é enviada para o teatro; 2) primeira pessoa: o usuário é responsável por todas as ações de um personagem. O usuário e o computador alternam suas ações como num jogo de xadrez (Szilas 2003: 4).

O sistema tem uma intricada teia que amarra o cálculo das ações ao sistema de valores, às metas e objetivos, à modelagem de obstáculo e ainda aos efeitos narrativos desejados:

O Cálculo das Ações: Por ação, queremos dizer um ato de diálogo ou um ato de performance no mundo virtual, que tem uma significação narrativa. A escolha do conjunto de ações genéricas advém da narratologia. Estas ações constituem as unidades básicas da seqüência narrativa. As ações atuais são: decidir, informar, incitar, dissuadir, aceitar, recusar, fazer, condenar e congratular (decidir envolve as metas, enquanto aceitar envolve as tarefas). Essas ações contem parâmetros, que são elementos do mundo da história: 1• personagens, metas, obstáculos, tarefas, atributos; 2• estados dos personagens: DESEJO (WISH), CAPACIDADE, CONHECIMENTO, VONTADE (WANT), etc (DESEJO envolve uma meta, enquanto

VONTADE envolve uma tarefa). Um conjunto de 35 regras produzem as ações possíveis (ibid) (Itálicos meus e maiúsculas do próprio autor)

O sistema foi pensado para trabalhar temas narrativos diversos, diferente de alguns sistemas anteriores que limitam o domínio, o contexto da história:

O modelo de tarefas do IDtension aceita a modelagem de vários fenômenos narrativos tais como conflitos internos e externos, obstáculos esperados e inesperados, oposição ética entre personagens, conflito de interesses entre personagens, etc (Szilas, Marty & Réty 2003: 5).

Quanto à autoria neste sistema francês, pode-se resumir que um autor (humano) trabalha em três níveis para construir a história: estrutura, texto superficial e parâmetros. O autor escreve a estrutura na forma de metas e tarefas para os personagens (NPCs) e para a história. Para cada entidade específica da história o autor deve escrever tais metas e tarefas. Parâmetros permitem que o autor controle a narrativa porque eles modificam o peso de cada efeito no cálculo de cada ação. O texto superficial permite ao autor detalhar as ações, por exemplo: X informa a Y que ele (X) quer executar a tarefa “t”. Isso é uma declaração explícita de como uma ação acontece na história e tem uma sintaxe própria, ou seja, deve ser declarada em uma linguagem apropriada do programa. Deve-se observar que o autor não escreve nada de forma linear, especificando o que vai acontecer na história, mas descreve ações (o que e como fazer se tal situação acontecer). O autor descreve as metas e tarefas de cada personagem e informa o “peso” que cada ação causa em cada personagem NPC.

Szilas observa que as primeiras experiências foram bastante complicadas porque os autores tinham dificuldades para imaginar um mundo e uma história dessa forma e que foi difícil fazer com que tais autores se desvencilhassem do formato linear de narração. No sistema um autor cria a história em uma planilha e determina metas, tarefas, ações, parâmetros e outras coisas, tudo neste formato. Essa forma de autoria foi em certo grau pensada para prevenir que o autor pensasse linear, por este motivo evitou-se o editor de texto (ibid: 5-8).

Conforme foi visto anteriormente, Bringsjord afirma que “não haverá procedimento

(algoritmo) capaz de decidir se uma história é ou não interessante para um ser humano”. Realmente, talvez seja impossível colocar no computador um modelo de apreciação estética; como o proposto por Hume em Do Padrão do Gosto, por exemplo. Segundo Hume, o gosto é subjetivo e dependente de fatores como cultura, conhecimento, experiência e sensibilidade.

Só o bom senso, ligado à delicadeza do sentimento, melhorado pela prática, aperfeiçoado pela comparação, e liberto de todo preconceito, é capaz de conferir aos críticos esta valiosa personalidade e o veredicto conjunto dos que a possuem, seja onde for que se encontrem, é o verdadeiro padrão do gosto e da beleza (Hume, David (1984). Do padrão do gosto. Em Berkeley-Hume. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril pp. 317-327).

Ao aceitar a assertiva acima fica implícito que, em certo sentido, o gosto é uma operação lógica comparativa entre um certo fenômeno percebido e um conjunto de valores, adquiridos e atualizados no tempo. Neste sentido o modelo francês dá um passo na direção de conseguir o intento que Bringsjord afirma não ser possível. Ao calcular o impacto das ações sobre o “modelo do usuário” e decidir pela ação que causa mais efeito narrativo sobre ele, o sistema francês põe em prática uma forma de exercício de juízo de valores, ou seja, “um julgamento ético” (ibid).

Graças à riqueza do modelo descrito acima, a Lógica Narrativa fornece um conjunto de ações que são potencialmente muito interessantes do ponto de vista da narrativa. O interesse real da narrativa, no entanto, depende do cálculo correto do impacto no usuário. Identificamos seis critérios a serem satisfeitos a fim de se ter uma “boa” história: 1) consistência motivacional: a ação ser consistente com a meta do personagem. 2) consistência ética: a ação ser consistente com ações prévias do mesmo personagem, com respeito ao sistema axiológico (conjunto de valores do personagem). 3) relevância: a ação ser relevante de acordo com as ações que acabaram de ser executadas. Este critério corresponde a uma das máximas de Grice. 4) carga cognitiva: a ação abre ou fecha processos narrativos, dependendo do corrente número de processos abertos. Um processo é uma micro seqüência narrativa (...); 5) caracterização: a ação ajuda o usuário na compreensão dos atributos do personagem. 6) conflito: a ação tanto gera diretamente algum conflito (executando uma tarefa conflitante) quanto arrasta o usuário através de uma tarefa conflitante (por exemplo, ao bloquear uma tarefa não conflitante se existir uma alternativa conflitante). Este conjunto de critérios pode futuramente ser modificados. Outros critérios interessantes têm sido propostos (Szilas, Marty & Réty 2003: 5). Destaques meus.

Resta-nos acompanhar e de alguma forma torcer para que este modelo obtenha sucesso real. Até 2003 o sistema fazia a saída apenas na forma de texto, mas os autores prometiam desenvolvimento de interface 3D para um futuro próximo (ibid: 4).