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3.3 – O problema do gênero.

Nos tópicos anteriores foram mostradas algumas abordagens e argumentações sobre a diferença entre narrativas e jogos. Se o assunto é recorrente na presente dissertação de mestrado é porque estão sendo buscadas bases para a compreensão de aspectos da criação e da produção de conteúdo para TVi. Ainda que pareça intuitiva a noção de que uma história é diferente de um jogo, aqui são procurados conceitos científicos que confirmem tais diferenças, ao mesmo tempo em que se tenta extrair desses conceitos alguma orientação no sentido do que pode ou não funcionar na criação de audiovisual interativo para a TVi.

Em tópicos anteriores foram analisadas as possibilidades de implantação de alguns tipos de aplicativos na TVi, em especial os dramas interativos. No entanto, Aarseth discorda que alguma espécie de “ciberdrama” possa mesmo existir e aponta problemas conceituais nas propostas dos dramas interativos. Não se trata de retomar agora a questão da possibilidade de haver ou não uma “novela interativa”. Aarseth analisa outros aspectos. Parece apropriado

analisar seus argumentos que esclarecem alguns pontos que podem ajudar tanto pesquisadores que procuram entender a dinâmica dos jogos e ciberdramas no meio TVi, como também os designers e criadores de conteúdo para TV interativa. Aarseth trata em especial da questão da adaptação nas narrativas e nos jogos:

Qualquer jogo consiste de três aspectos: (1) regras, (2) um sistema material/semiótico (mundo do jogo –

gameworld), e (3) o jogar o jogo (gameplay – o evento resultante da aplicação das regras ao mundo

virtual) (...) Em adição a estes três componentes, há o conhecimento efetivo do jogo por parte do jogador, na forma de estratégias e técnicas de performances, e topografias mentais, assim como guias escritos e outras informações para-textuais sobre os jogos (Aarseth 2004: 47-48).

Aarseth mostra que Eskelinen (2001) havia demonstrado que tanto os jogos quanto as narrativas são independentes do meio. Uma história pode ser transcrita para sistemas orais, quadrinhos, cinema, teatro, TV, ópera, livros e outros. Nas várias versões da mesma história permanecem eventos chaves e relacionamentos. Um jogo pode ser transcrito de tabuleiro para a tela do computador, para um jogo de representação (RPG), para mundos virtuais 3D, para jogo de cartas, de dados e outros. Nas várias versões de um jogo as constantes são as regras, que é aquilo que o caracteriza como sendo o mesmo jogo (Aarseth 2004: 50). Dessa forma, indaga Aarseth, o que acontece quando se tenta traduzir uma história em um jogo? O que acontece com o enredo? Quando se tenta transcrever um jogo para uma história, o que acontece às regras? O que acontece com o “jogar o jogo” (gameplay)? (ibid).

Livros são ótimos ao relatar a vida interna dos personagens, já o cinema nem tanto, e jogos são chatos quando tentam fazê-lo ou prudentemente nem tentam, explica Aarseth. Diferente da literatura, os jogos não são sobre os “outros”, jogos são sobre “si mesmo”. Ainda segundo ele, jogos focam no domínio-próprio e na exploração de mundos externos, não na exploração de relações interpessoais (exceto jogos com múltiplos usuários), e quando tentam, como em The Sims ou Black and White, é de uma perspectiva como a de um deus. Temos jogos inspirados em filmes e vice-versa, não seriam exemplos de transcrições?

Usando a teoria dos gêneros de John Cawelti3, Aarseth mostra que formas implícitas (as estruturas narrativas e as regras do jogo) permanecem intraduzíveis, embora convenções culturais como cenários e tipos de personagens sejam perfeitamente traduzíveis. Ele conclui que “embora elementos não-lúdicos e não-narrativos possam ser traduzidos, elementos

chaves, a narração e o jogar o jogo, como óleo e água, não se misturam” (ibid: 50-51). __________ __________ __________ __________ __________ __________ __________

3 – Aarseth cita John Cawelti: CAWELTI, John (1976). Adventure, Mystery and Romance. Formula Stories as Art and Popular Culture. Chicago: University of Chicago Press.

Quando discute a arte da simulação, Aarseth mostra que os prazeres do videojogo não são primariamente visuais, são sinestésicos, funcionais e cognitivos4. No jogo, as habilidades são recompensadas, os erros, literalmente punidos. O olhar do jogo não é o olhar do cinema. “Quando histórias existem dentro de jogos, elas são superficiais, como um motorista de táxi

cuja função é nos levar de um evento lúdico para outro” (ibid:52). Segundo ele, elas são supérfluas como ilustrações em livros de histórias e ignorá-las não afeta em nada o jogar o jogo. “A estrutura escondida atrás da maioria dos jogos de computador não é narrativa, e

sim simulação” (ibid). Assim, ele mostra que o propósito das histórias é diferente do propósito dos simuladores: “se você quer entender um fenômeno, não basta ser um bom

contador de histórias, você precisa entender como as partes funcionam em conjunto e a melhor forma para fazer isto é construir um simulador” (ibid: 52).

O jogo de computador é a arte da simulação. Um subgênero da simulação, em outras palavras. Jogos de estratégia são às vezes chamados jogos de “simulação” por engano, mas, todos os jogos de computadores contêm simulação. Na verdade, é o aspecto dinâmico do jogo que cria um “mundo do jogo” (gameworld) consistente. Simulação é o Outro hermenêutico das narrativas, o modo alternativo do discurso, da base para cima (button-up) e emergente, enquanto histórias são de cima para baixo (top-down) e pré- planejadas. Em simulações, conhecimento e experiência são criadas pelas ações e estratégias do jogador, ao invés de recriadas por um escritor ou cineasta (ibid).

A questão do tempo no jogo e na simulação é encarada sobre outro ponto de vista por Aarseth. Para ele os jogos e a vida são eventos primários que acontecem em tempo real, enquanto narrativas são fenômenos secundários. As narrativas são uma revisão dos eventos primários e, dessa forma, acontecem a posteriori aos eventos primários (Aarseth 2004: 50). Partindo do pressuposto que a vida e os jogos são fenômenos primários em tempo real, e que narrativas são eventos secundários, ele conclui que

histórias e simulações não são totalmente incompatíveis, mas a simulação, como um fenômeno primário, deve ser a base para qualquer combinação dos dois, e não vice-versa, da mesma forma que com histórias e a vida. Depois que você tiver construído um simulador, por exemplo, um “mundo virtual” baseado em regras, você pode usá-lo para nele contar histórias (ou para outro propósito); mas histórias, por seu lado, podem conter simulação somente num sentido metafórico, tal como no filme “Feitiço do Tempo” (Groundhog Day) ou o romance ‘Otherland’ de Tad Williams (ibid: 52).

Então, indaga Aarseth, por que não olhar para narrativas que nos fazem “jogar jogos” como, por exemplo, nas histórias de detetive?

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4- Aarseth cita James Newman: NEWMAN, James (2001). Reconfiguring the Videogame Player. Games Cultures Conference, Bristol, June 30.

Quando tentamos descobrir um assassino numa história do inspetor Poirot, por exemplo, estamos adicionando um jogo em coincidência com a história, explica Aarseth. O jogo de adivinhação não é necessário e o narrador não se importa se você joga ou não. Se por acaso você descobrir o assassino precocemente, nada de diferente acontecerá na história. Pior, podemos inclusive parar de ler prematuramente uma vez que o final tornou-se óbvio e tedioso. Estes romances são jogos apenas no sentido metafórico porque não somos jogadores reais (Aarseth 2004: 52-53).

Nas ficções em hipertexto, continua ele, somos exploradores, mas sem regras reconhecíveis, não há um jogo real (ibid). Com relação à literatura digital, Aarseth tem uma postura clara, ele afirma que a literatura digital ainda continua literatura, mesmo as novelas em hipermídia (hypernovels) como Afternoon (Michael Joyce) ou outro similar. Não há hibridismo, como alguns narratologistas defendem (ibid: 53). Ele mostra ainda que o gênero literário e o gênero dos games têm distintas finalidades e potenciais artísticos diferentes, e é analiticamente útil manter a terminologia conceitual que distingue os dois. Os paradigmas tradicionais da hermenêutica dos textos, da narrativa e da semiótica não estão bem ajustados no problema da hermenêutica da simulação (ibid: 54).

Aarseth levanta a questão dos jogos de múltiplos usuários, como o Lineage, que na Coréia do Sul conta com dois milhões de jogadores ativos, e questiona que tipo de sócio- estética pode surgir de experiências como esta. Estes jogos, segundo ele, “não são apenas o

futuro dos jogos, são experimentos sociais que irão afetar e moldar o futuro da comunicação humana. Tais jogos provavelmente usarão historias também, não como o arcabouço do design, mas como retórica, como estratégia de comunicação entre jogadores, assim como fazemos em nossas vidas, ordinariamente” (ibid).

Cabe aqui um parêntesis: o jogo Lineage é jogado por múltiplos usuários através da Internet. Alguns artigos na imprensa dão conta de que a TV perdeu a preferência dos jovens para a Internet. Como os produtores de gênero da TV pretendem encarar esse fato?

Pesquisa da Harris Interactive e da Teenage Research Unlimited aponta que jovens americanos entre 13 e 24 anos passam mais tempo navegando na Internet do que assistindo à televisão. Em média, gastam 16,7 horas semanais na rede (sem contar leitura de e-mails) contra 13,6 horas diante da telinha. O rádio ficou em terceiro, com 12 horas semanais. As conversas telefônicas consomem 7,7 horas, enquanto a leitura de livros e revistas ficou na última posição, com apenas 6 horas. Um fenômeno comum apontado pelos entrevistados é o hábito de fazer algumas dessas coisas simultaneamente, como surfar na web com a TV ligada. Há algum tempo já se esperava que a Internet superasse a televisão na preferência dos jovens. Contudo, como aponta o USA Today [24/7/03], esse estudo é o primeiro que mostra a rede com uma sólida liderança (Observatório da Imprensa – 29/07/2003).

Se a TVi quiser reconquistar a preferência dos jovens não seria o caso de ela ter recursos e espetáculos interativos tão ou mais atraentes que a Internet? Para competir com a Internet, a TVi deveria disponibilizar recursos de comunicação interpessoal. Uma pesquisa desenvolvida sobre como os jovens têm jogado MMORPG5 apontou que:

As razões mais comuns reportadas [pelos usuários de MMORPG] para uso desse meio de comunicação são: planejar e organizar divertimento (play) fora do jogo, facilitar sessões de jogos e entretenimento (se comunicando com outros jogadores enquanto jogam o jogo), e obter conselhos de outras pessoas fora do jogo enquanto jogam. O uso da Internet para compartilhamento de informação via web sites de fãs é outro aspecto único e importante dos jogos baseados em PCs, aparentemente uma parte essencial do jogar o jogo para muitos jogadores (Jörnmark et al, 2005: 10).

A TVi poderá (ou poderia) ser tão atraente quanto a rede mundial dos computadores para jogos com múltiplos usuários uma vez que a penetração da TV é (ainda) maior que a da Internet. No entanto, a TVi restringe bastante a agência do usuário quando possibilita ao tele- interator que ele apenas selecione itens na tela. Limitações do dispositivo de interação na TVi podem comprometer sua aceitação, e com isso a TVi poderá perder de vez a hegemonia para a Internet. O usuário da Internet pode digitar dados, comunicar-se online, enviar fotos, ver aqueles com quem interage e mostrar-se através de janelas de vídeo. É com esse veículo versátil e atrativo que a TVi deverá concorrer.

A indústria e o marketing da TVi vende a noção de que agora o usuário poderá “travar um diálogo” com a emissora, mas não é bem isso que acontece. Quando o usuário pode apenas escolher algo significa que o discurso vem para ele montado e que, dentre as opções oferecidas o usuário poderá opinar, configurar, apontar ou algo parecido. O que os jovens nos jogos de múltiplos usuários mostram é que querem usar o jogo para além da experiência de jogar, querem se comunicar, com resultados inclusive para suas vidas reais, como marcar festas e encontros. Murray mostra que esse procedimento é uma tendência que já vem sendo apontada desde os MUDs da década de 1980 (Murray 2003a: 102 citando Sherry Turkle: Life

on Screen). Assim, pelo que apontam as pesquisas, é importante para o usuário se expressar, trocar informação, manter contato social através do meio eletrônico que estiver usando. Para isso os jogadores fazem uso dos recursos da conectividade, de captura de imagens e vídeo para “se inserir” no ambiente, que poderíamos chamar de recursos de inserção pessoal; e ainda de, no mínimo, um teclado para viabilizar a troca de mensagens.

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5 – Estudo desenvolvido por AXELSSON, A-S & REGAN,T. (no prelo). “Playing online” in Vorderer, P., and Bryant, J. (eds.) Playing Computer Games - Motives, Responses, and Consequences. Mahwah, NJ: L. Erlbaum Associates, in press.

Portanto, as restrições de interação na TVi, já discutidas e repetidas, tornam o jogo com múltiplos usuários na TVi uma experiência diferenciada do jogo em consoles de videogame ou nos PCs conectados à Internet. Experiência diferenciada pode não ser pior, dependerá da criatividade dos criadores de jogos interativos para a TVi. Por isso é provável que outros tipos de experiências sócio-estéticas surjam na TVi, utilizando outras linguagens, outras dinâmicas e extraindo o máximo de sua “limitada” capacidade de agência.

De volta à questão do gênero, como disse Aarseth, adaptações de narrativas podem até se encaixar e se tornar conteúdo em jogos e narrativas interativas na TVi. Contudo, nem sempre um jogo pode se tornar uma narrativa interativa porque as regras do jogo não podem ser transcritas para a narrativa. Um exemplo é o jogo de xadrez: “você pode jogar xadrez com

pedras no chão, ou com peças que lembrem os personagens da ‘família Simpson’ em vez de reis e rainhas” (Aarseth 2004: 48). Adaptações do xadrez usando personagens, cenário, ambientação, tudo mais que conte uma história de dois povos se enfrentando em uma batalha poderia ser transcrito para o ambiente do jogo. No entanto, as regras são aquilo que define o jogo xadrez. Assim, numa transcrição de Xadrez para a TVi, o jogo poderia ser jogado entre dois tele-interatores, entre o interator e o STB, mas não poderia se tornar um jogo de múltiplos usuários, com todos jogando contra todos. Não seria xadrez. Alguém poderia criar um espetáculo interativo em que milhões de participantes pudessem agir de forma efetiva, e tal audiovisual interativo poderia utilizar o tema do xadrez, mas efetivamente não seria um jogo de xadrez.

Como mostra Aarseth, compreender e atentar às questões das adaptações em dois gêneros tão diferentes quanto são as narrativas e os jogos pode poupar esforço e tempo dos designers e dinheiro dos produtores de atrações interativas para a TVi.