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O Ciborgue

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CAPÍTULO II – A SOCIEDADE CONECTADA

2.5 O Ciborgue

O filósofo Álvaro Vieira Pinto (2005, p.80), entende que sem a linguagem não haveria tecnologia, “porque faltaria a condição básica para estabelecer a necessidade da máquina”, afirmando que “este conceito só tem sentido em dimensões sociais”. Pinto (2005, p.80) esclarece que a criação de ferramentas “quer no emprego de uma rudimentar alavanca, no lançamento de uma pedra ou flecha pela funda ou pelo arco, quer na fabricação dos mais complicados computadores, só a sociedade oferece o fundamento real, a motivação para a descoberta dessas criações humanas”. Mesmo que um objeto e seu projeto sejam realizados por apenas uma pessoa “num dispositivo mecânico ou de outra espécie”, sua utilidade só será relevante se a sociedade se mostrar receptiva e, assim, poderá incorporar o “engenho no acervo das utilidades comuns”. Para Pinto (2005, p.80):

O papel decisivo da máquina, tanto nas eras mais remotas quanto agora consiste em modificar o sistema de relações de produção do homem mediante a ampliação da rede de ligações com a natureza, dando-lhe a possibilidade de praticar formas de ação sobre os corpos e as forças naturais, formas que significam o aumento da capacidade de domínio do mundo circundante. Essa alteração estabelece um melhor relacionamento qualitativo do sistema nervoso do homem com a natureza.

Neste contexto descrito por Pinto, a relação entre homem e máquina se faz importante, pois o ser humano caminha para tornar seus corpos híbridos, biológicos e máquinas, ou seja, em ciborgues. A bióloga e filósofa Donna J. Haraway (2009, p.36), conceitua ciborgue como “um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção”. Para a autora, a relação entre ser humano e máquina, que cria uma “realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo”. Haraway (2009, p.37) completa:

No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos- teóricos e fabricados- de máquina e organismo; somos, em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica.

Haraway (2009, p.41) entende que as tecnologias do século XX foram incapazes de realizar o sonho da humanidade de solucionar os seus problemas, ou ao menos passar a impressão de que isto aconteceria, pois havia uma separação clara entre ser e máquina. Já as tecnologias digitais mudam este cenário, onde Haraway (2009, p.42) defende:

Agora já não estamos mais assim tão seguros (que há distinção entre homem e máquina). As máquinas do final do século XX tornaram completamente ambíguas a diferença entre o natural e o artificial, entre mente e o corpo, entre aquilo que se autocria e aquilo que externamente criado, podendo-se dizer o mesmo de outras distinções que se costumam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas máquinas são perturbadoramente vivas e nós mesmos assustadoramente inertes.

Haraway (2009, p.91-92) conclui que “[...] os organismos biológicos tornaram-se sistemas bióticos - dispositivos de comunicação como qualquer outro. [...] Uma das consequências disso é que nosso sentimento de conexão com nossos instrumentos é reforçado.”

O pesquisador Mark Stephen Meadows (2011, p.127), explica que o temo ciborgue “foi usado pela primeira vez numa publicação da NASA assinada por Manfred Clynes e Nathan Kline em 1960, numa referência à mistura de sistemas ‘cibernéticos’ e ‘orgânicos’ para indústrias voltadas para o espaço sideral e a astronáutica”. Para o autor (2011, p.128), “a lenda moderna – o mito do Ciborgue é a ideia de que um humano ‘natural’ por ser fundido com tecnologias ‘artificiais’”, sendo que, “isso é impossível; a tecnologia nunca foi menos natural ou mais artificial do que os seres humanos”. Meadows (2011, p.129) defende que “o toque humano cria o artificial” e “nós é que somos o artificial, e começamos a utilizar ferramentas e tecnologia desde o primeiro dia em que nossos ancestrais de tornaram humanos”, e completa ao dizer que “essa ideia de ‘artificial’ faz parte do ser ‘humano’”.

Ainda para Meadows (2011, p.129), somos todos ciborgues, “já que parte de ser humano significa usar ferramentas”, prática que realizamos “pelos últimos 50 mil anos”. Meadows (2011, p.129) afirma que “temos a tendência de pensar” em ciborgues feitos em “fábricas high-tech”, como os super-heróis dos quadrinhos e cinema Homem de Ferro, no qual o autor diz “que não é moderno porque é um ciborgue”, mas “porque usa tecnologias digitais, porque seu traje é autônomo e porque tem tecnologia por baixo da pele”.

Para o físico Michio Kaku (2012, p.92), os robôs “não têm sido capazes de realizar duas tarefas-chave que os humanos realizam sem nenhum esforço: reconhecimento de padrões e bom-senso”. Nesta direção, o uso de implantes em seres humanos cobriria esta lacuna. Então, a evolução das tecnologias muda não só nosso habitar social, mas também nossas biologias e, portanto, a realidade social também começa a se alterar.

Este cenário descrito pelos autores vem de encontra na relação que o ser hoje tem com seus dispositivos móveis. Alexios Brailas e Charalambos Tsekeris (2014, p.2) analisam que os adolescentes e seus smartphones constituem em ciborgues modernos. Os pesquisadores sustentam a afirmação de que a integração entre tecnologia e seres humanos, no caso dos adolescentes, é de que “à medida que nossa cultura se transforma pela evolução da vida digital, o comportamento dos adolescentes é moldado pela evolução de sua extensão ciborgue” (2014, p.2, tradução nossa24). Chris H, Gray, Steven Mentor e Lisssette Olivares (2013, p.309-310) creem no surgimento de ciborgues mundanos:

As empresas são explicitamente sistemas ciborgues (Piazza 2008); A computação ubíqua, a convergência e a explosão das mídias sociais têm permeado a sociedade pós-industrial, produzindo exóticas (engenharia genética hereditária, órgãos artificiais, biocomputadores) e mundana (vacinas, direção de carros, obsessão por iPhone) ciborgues [...]. Agora nós temos milhares e milhões de ciborgues mundanos onde antes a ideia de ciborgues eram poucos, futurista e extraordinária (2013, p.309-310, tradução nossa25).

Gray, Mentor e Olivares acreditam que a sociedade já se tornou híbrida entre humano e máquina. Os autores analisam:

Vivemos em um complexo mundo cibernético de arquiteturas de código e sistema cada vez mais intimas com nossas máquinas centradas no usuário. Os ciborgues mundanos do século XXI parecem à vontade com a ideia de que uma fotografia não só pode ser tirada e compartilhada, mas pode ser executada através de filtros para alcançar todas as nuances concebíveis de efeitos. Há mais de algumas pessoas que passam um dia cheio de 24 horas por ano escolhendo o filtro para suas fotos no Hipstamatic ou Instagram. Implantação está chegando, claro, mas os telefones já estão sob nossas peles (2013, p.310, tradução nossa26).

Gray, Mentor e Olivares atribuem a ciborguização da sociedade a diversos fatores: Esta proliferação de ciborgues reais, tipografias de ciborgues e diferentes expressões artísticas sobre ciborgues reiteram quão completamente a nossa sociedade ciborgue (especialmente a nossa auto-ciborguização) é o resultado de uma vasta gama de práticas tecno-sociais que são mais determinados em

24 No original: As our culture is transformed by the evolution of digital life, the adolescents’ behaviour is shaped by the evolution of their cyborg-extension.

25 Do original: Businesses are explicitly cyborg systems (Piazza 2008); ubiquitous computing, convergence, and the explosion of social media have permeated post-industrial society, pro- ducing both exotic (inheritable genetic engineering, artifcial organs, biocomputers) and mundane (vaccinated, car driving, iPhone obsessed) cyborgs [...]. Now we have thousands and millions of mundane cyborgs where before the idea was cyborgs were few, futuristic and extraordinary.

26 Do original: We live in a complex cybernetic world of code and system architectures increasingly inti-mate with our user-centered machines. 21st century mundane cyborgs seem at ease with the idea that a photograph can not only be taken and shared, but it can be run through flters to achieve every conceivable nuance of efect. There are more than a few people who spend a full 24-hour-day a year choosing the flter for their Hipstamatic or Instagram photos. Implantation is coming, sure, but the phones are already under our skins.

muitos níveis, porque no nível mais fundamental são expressões do humano (2013, p.313, tradução nossa27).

Nesta direção, Gray Mentor e Lissette atribuem o ciborgue a uma criação também humana, como parte da evolução, onde a tecnologia é a continuação da evolução humana. Os autores concluem:

Esta é a nossa natureza. Nossa cultura é nossa natureza. A antiga distinção cultura-natureza é falsa e perigosa. Nós somos os fabricantes humanos. E fazemos cultura, fazemos máquinas, fazemos ciborgues. Inventamos a seleção artificial e usamo-la em nós mesmos. A menos que sejamos bons cidadãos ciborgues e reivindiquemos nosso direito à evolução participativa, não teremos nenhuma palavra a dizer em nosso futuro. Nossa evolução continua nunca-a-menos, sempre-a-mais (Gray 2005; 2012a) (2013, p.318, tradução nossa28).

Então, o ser humano cada vez mais híbrido, biológico e máquina, que muda seu habitar e a sua realidade social, compartilha seus dados pessoais, pois o uso das tecnologias digitais o impulsiona a tal e torna o ato de registrar suas experiências nas plataformas digitais uma atitude natural. Porém, estes dados estão sendo utilizados pelas empresas de informação para transformar o usuário em produto, como os algoritmos filtro-bolha (PARISER, 2012, p.14).

27 Do original: This proliferation of actual cyborgs, typographies of cyborgs, and diferent artistic expres-sions about cyborgs reiterates how completely our cyborg society (especially our self-cyborgization) is the result of a wide range of techno-social practices that are over determined on many levels, because at the most fundamental level they are expressions of the human.

28 Do original: This is our nature. Our culture is our nature. The old culture-nature distinc-tion is false and dangerous. We are humans the makers. And we make cul-ture, we make machines, we make ourselves cyborgs. We invented artif-cial selection and use it on ourselves. Unless we become good cyborg citi-zens, and claim our right to participatory evolution, we will have no say in our future. Our evolution al-continues never-the-less, ways-the-more (Gray 2005; 2012a).

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