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Cidadania dos antigos e cidadania dos modernos – um breve olhar histórico

3 O MÍNIMO EXISTENCIAL E A ESSÊNCIA DO REPUBLICANISMO

3.7 Cidadania, República e o direito ao mínimo existencial

3.7.1 Cidadania dos antigos e cidadania dos modernos – um breve olhar histórico

Parece assistir razão a Elisa Reis quando argumenta que o exame do conceito de cidadania na perspectiva de uma “relação entre história e teoria orienta a descoberta de raízes históricas comuns às diversas perspectivas teórico-analíticas no tratamento da noção de cidadania”. 171

De fato, uma análise das raízes etimológicas do vocábulo, deitadas no latim

civitas, associada às referências abstratas alusivas à noção de igualdade nas religiões antigas e ao conteúdo político que liberdade e igualdade adquirem na polis grega, leva-nos a perceber a coincidência na eleição dos elementos que constituem a base do conceito de cidadania nas diversas evoluções teóricas empreendidas através da história.

Nada obstante, a historicidade que marca o conceito de cidadania, bem como os diversos matizes que se desdobram a partir do exame do tema, oferecem sérias dificuldades para que se estabeleça uma teoria que delineie postulados passíveis de conformar posições e situações gerais e aplicáveis ao estudo, uma vez que:

[...] cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço. É muito diferente ser cidadão na Alemanha, nos Estados Unidos ou no Brasil (para não falar dos países em que a palavra é tabu), não apenas pelas regras que definem quem é ou não titular da cidadania (por direito territorial ou de sangue), mas também pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos Estados-nacionais contemporâneos. Mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao longo dos últimos duzentos ou trezentos anos. Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto do cidadão para sua população (por exemplo, pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau de participação política dos diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos Estados ao que dela necessitam.172

Desde Hobbes, com quem se aprende que o homem vive em conflito entre o seu estado de natureza173 – entendido enquanto a liberdade individual e o poder de tomar suas próprias decisões, obedecendo unicamente seus juízos e razão – até Marshall, que divide a

171 REIS, Elisa. Cidadania: história, teoria e utopia in: PANDOLFI, Dulce Chaves et al. Cidadania, justiça e

violência. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999.

172 PINSKY, Jaime. Introdução. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Historia da Cidadania.

São Paulo: Contexto, 2008.

cidadania em três elementos: o civil, o social e o político174, percebe-se que a cidadania está seriamente vinculada à noção de liberdade.

Por isso mesmo, Ralf Dahrendorf, ao advertir que Marshall haveria preterido a importância do conceito de classe, ressalta:"é desde já evidente que a dependência servil de um homem diante de outro cria falta de liberdade; mas que sucede com a dependência do homem diante do alimento, do vestido, da habitação e da segurança física?".175

Com o movimento iluminista, que emerge durante o século XVIII (o século das luzes), surgem os direitos civis, sob o manto do direito à liberdade ambulatorial, de pensamento, pessoal, religiosa; enfim, direitos que rompem com o feudalismo medievo e liberta o indivíduo da intromissão do Estado, com vistas à sua participação na sociedade. Nessa ambiência, delineia-se o contorno inicial do conceito de cidadania.176

Will Kymlicka, para quem são grandes os obstáculos no caminho da construção de uma teoria da cidadania, defende a dicotomia: cidadania estreita e cidadania espessa. Adverte, ademais, para a impossibilidade de a cidadania cumprir sua vital função integrativa em uma sociedade que reconhece os direitos com fundamento nas diferenças entre os diversos grupos, o que importaria em cidadania diferenciada, que não mais permitiria o compartilhamento de experiências ou um status comum.177

Pretende-se ultrapassar as questões que envolvem os laços jurídico-políticos que determinam a nacionalidade, bem como os direitos e deveres daí decorrentes, para se examinar especificamente o conteúdo da cidadania que corresponde ao mínimo necessário para que o indivíduo possa iniciar o exercício da sua condição de cidadão.

Em linhas gerais, costuma-se afirmar que para ser cidadão não basta ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. É preciso participar dos destinos do Estado, bem como ser destinatário dos direitos sociais; vale dizer aqueles que garantem a

174 MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 63-65. 175 DAHRENDORF, Ralf. Sociedade e liberdade. Brasília, UnB, 1981.

176 MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 63-65.

177 KYMLICKA, Will. Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights. New York: Oxford

University Press, 1995, p. 174-175. No original: “In a society which recognizes group-differentiated rights, the members of certain group are incorporated into political community, not only as individuals, but also thorough the group and their rights depend, in part, on their group membership. […] Citizenship cannot perform its vital integrative function if it is group-differentiated – it ceases to be a device to cultivate a sense of community and a common sense of purpose. Nothing will bind the various groups in society together, and prevent the spread of mutual mistrust or conflict. If citizenship is differentiated, it no longer provides a shared experience or common status”.

participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, à saúde, dentre outros.178

A perspectiva com que se busca examinar a cidadania não se restringe ao seu sentido estrito comumente referido, qual seja aquela vinculado ao exercício do direito político ativo. Interessa, com mais intensidade, reflexões acerca da dimensão ampla da cidadania, que traz como consectário natural a vinculação do “Estado à obrigação de destinar aos indivíduos direitos e garantias fundamentais, mui especialmente aqueles relacionados a direitos sociais” 179

Trata-se de “garantir às pessoas o direito à liberdade, à igualdade substancial, à vida, à incolumidade física – direitos criados pelo constitucionalismo clássico –, mas, sobretudo, os atinentes à educação, à saúde, e ao trabalho – enfim todos os direitos de caráter prestacional – alem, é claro, como não poderia deixar de ser, dos direitos políticos”.180

Percebe-se, de logo, a existência de marco delimitador entre o que se compreende por cidadania no mundo contemporâneo e a cidadania como entendeu a antiguidade, notadamente no mundo greco-romano, em especial porque se identifica absoluta ruptura histórica, já que não se pode “falar em continuidade do mundo antigo, de repetição de experiência passada e nem mesmo de um desenvolvimento progressivo que unisse o mundo contemporâneo ao antigo. São mundos diferentes, com sociedades distintas, nas quais pertencimento, participação e direitos têm sentidos diversos”.181

178 PINSKY, Jaime. Introdução. In: In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Historia da

Cidadania. São Paulo: Contexto, 2008.

179 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p.

273.

180 Idem.

181 GUARINELLO, Noberto Luiz. Cidades-Estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, Jaime; PINSKY,

Carla Bassanezi (Org.). Historia da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2008. Esclarece o autor: “Comecemos pela diferença mais crucial entre presente e passado, a da própria forma da existência social. O mundo greco-romano não se estruturava como os Estados-nacionais contemporâneos, mas de modo bem distinto, como cidades- estados. Aqui, defrontamo-nos com um primeiro problema: é tão difícil oferecer uma definição de cidade-estado como o é, sabem-no os historiadores contemporâneos, definir Estado-nacional. As cidades-estado, que conhecemos pela tradição escrita, pela epigrafia ou pelas fontes arqueológicas, eram muito diferentes entre si: nas dimensões territoriais, riquezas, em suas histórias particulares e nas diferentes soluções obtidas, ao longo dos séculos, para os conflitos de interesse entre seus componentes. A maioria delas nunca ultrapassou a dimensão de pequena unidade territorial, abrigando alguns milhares de habitantes – não mais que cinco mil, quase todos envolvidos com o meio rural. Outras, de porte médio, chegaram a congregar vinte mil pessoas. Algumas poucas, portos comerciais ou centros de grandes impérios, atingiram a dimensão de verdadeiras metrópoles, com mais de cem mil habitantes – e, por vezes, como na Roma imperial, chegaram à escala de um milhão de habitantes. Além disso, sob o termo cidade-estado abarcamos povos distintos, culturas diferentes, com seus próprios costumes, hábitos cotidianos, leis, instituições, ritmos históricos e estruturas sociais – gregos, romanos, etruscos, fenícios, ‘itálicos’, celtas, berberes -, cujo destino foi, ao longo do tempo, marcado por imensa variedade de projetos e soluções. Não é fácil (talvez seja impossível) dar conta de tantas histórias, tão diferenciadas, ao longo de quase dois milênios. Diversidade, fragmentação, modificações incessantes ao longo dos séculos: como definir uma cidade-estado? Em busca de uma compreensão abrangente, qualquer definição tem de ser, pela força das

Apesar da amplitude que a cidadania alcançou no seu trajeto pela compreensão das civilizações, sobretudo no âmbito do Estado de direito e de justiça social, Pedro Funari adverte acerca dos diversos elos que unem a cidadania moderna aos antigos romanos, tanto pelos termos utilizados quanto pela própria noção de cidadão.182

Explana o autor que, em latim, a palavra ciuis gerou ciuitas, ‘cidadania’, ‘cidade’, ‘Estado’, signos que, para os romanos, constituíam um único conceito e que somente podem ser concebidos se houver, antes, cidadãos. Ciuis é o ser humano livre e, por isso, ciuitas carrega a noção de liberdade em seu centro.183

Funari refere-se a Cícero, que, no século I a.C., já afirmava que ‘recebemos dos nossos pais a vida, o patrimônio, a liberdade e a cidadania’. Esclarece que, para Cícero, a descrição daquilo que os nossos pais nos deixam é cronológica, mas também acumulativa. É dizer: recebe-se a vida ao nascer; em seguida, a herança, na forma de educação quando criança, o que permite alcançar a liberdade individual e a coletiva na vida adulta.184

Há que se destacar que a cidadania grega – marcada por círculo restrito – guarda severas diferenças em relação aos romanos, já que em Roma votavam pobres e mesmo libertos.185 Se para os gregos havia primeiro a cidade, polis, e só depois o cidadão, polites,

para os romanos era o conjunto de cidadãos que formava a coletividade. Se para os gregos havia cidade e Estado, politeia, para os romanos a cidadania, ciuitas, englobava cidade e Estado. 186

A cidadania no Estado democrático de direito e de justiça social187 não admite restrições arbitrárias à opinião dos indivíduos188, tampouco à participação dos cidadãos na

circunstâncias, parcial e genérica, consciente das perdas que acarreta para o entendimento de cada caso particular.

182 FUNARI, Pedro Paulo. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.).

Historia da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2008.

183 Idem. 184 Idem. 185 Idem. 186 Idem.

187 Miguel Reale leciona que “o adjetivo ‘Democrático’ pode também indicar o propósito de passar-se de um

Estado de Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social, isto é, instaurado concretamente com base nos valores fundantes da comunidade. ‘Estado Democrático de Direito’, nessa linha de pensamento, equivaleria, em última análise a “Estado de Direito e de Justiça Social”. A meu ver, esse é o espírito da Constituição de 1988”. Aponta, de igual sorte, como dois dos elementos diferenciadores do nosso Estado Democrático de Direito a “cidadania e a dignidade da pessoa humana”. (REALE, Miguel. O Estado

Democrático de Direito e o conflito das ideologias. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 2-3.).

188 Funari esclarece que “A própria palavra opinião é de origem latina (opinio). Embora no mundo antigo não

houvesse comunicação de massa e, menos ainda, pesquisa de opinião pública, foi naquele ambiente que surgiu o conceito de ‘opinião’. Cícero referia-se a popularis opinio, e opinio era termo usado para traduzir o grego doxa, por oposição a episteme (ciência), como, mais prosaicamente, para designar ‘impressão’, verdadeira ou falsa. ‘Impressão’ corresponde bem à raiz de dokeo (‘parecer, pensar, imaginar’) e, ainda, que não saibamos a origem

esfera pública pluralista, fato que impõe ao Estado o dever de proporcionar condições para que esta opinião/participação se efetive.