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Conteúdo essencial dos direitos fundamentais e o direito ao mínimo existencial

4 MÍNIMO EXISTENCIAL TEORIA DOS PRINCÍPIOS E DOS DIREITOS

4.3 Direitos Fundamentais, dignidade humana e mínimo existencial

4.3.6 Conteúdo essencial dos direitos fundamentais e o direito ao mínimo existencial

Como se verificou, situam-se no campo da utopia da realização plena dos direitos os argumentos que pretendam identificar os direitos sociais ao mínimo existencial, raciocínio que decorre do fato de que, na sociedade brasileira, o direito a condições mínimas de subsistência é severamente vinculado ao acesso dos cidadãos às prestações no âmbito da moradia, saúde e educação, cujo acesso reflete na própria liberdade do indivíduo.

Ocorre que, como já argüido, não raro, o direito ao mínimo existencial pode vir a ser violado no âmbito dos direitos de defesa, quando o Estado impõe ao indivíduo, de forma ilegítima, o dever de realizar algo ou a proibição de proceder de determinada maneira, em situação que deveria ser facultado ao cidadão agir como melhor lhe aprouvesse.

É preciso ter em conta a possibilidade de existência de agressão ao conteúdo essencial (núcleo essencial) de um direito de defesa, que, por sua vez, considerado o caso

concreto, pode ou não alcançar a órbita do mínimo existencial, o que impediria a identificação do mínimo existencial ao conteúdo essencial (núcleo essencial) do direito envolvido.

O exame empreendido sobre a teoria do status de Jellinek, com as considerações formuladas por Alexy, além de demonstrar a necessidade de releitura à luz da teoria das posições jurídicas fundamentais, serviu para constatar que o mínimo existencial não pode ser vinculado com exclusividade a qualquer das posições, já que em qualquer das relações indivíduo-Estado, indivíduo-Sociedade e indivíduo-indivíduo é possível identificar violação ao que se denomina de condições mínimas para a existência digna.

Ricardo Torres situa o mínimo existencial como uma regra – aplicada, portanto, por subsunção –, constituindo direitos definitivos e não sujeita a ponderação. Assim, o mínimo existencial não possuiria natureza de valor ou de princípio, mas sim de conteúdo essencial dos direitos fundamentais, imantado permanentemente pelos valores da liberdade, da justiça, da igualdade e da solidariedade.308

Por sua vez, o autor conceitua conteúdo essencial como “o núcleo intocável e irrestrigível dos direitos fundamentais (da liberdade ou sociais). Constitui limite para a atuação dos poderes do Estado”. E acrescenta: “O tema do conteúdo essencial se desenvolve sobretudo em torno das questões ligadas às restrições a direitos fundamentais”. 309

Cabe, pois, indagar: como se estabelece esse “limite para a atuação dos poderes do Estado?”. Como identificar o conteúdo essencial de determinado direito fundamental em determinado sistema jurídico?

A resposta a ambas as questões impõe necessária incursão nas teorias que versam sobre as restrições aos direitos fundamentais.

Alexy afirma que só é possível admitir que se restrinja um direito fundamental se, em um caso concreto, for necessário atribuir maior peso a um do que a outro, importando, assim, em restrição da órbita de proteção de determinado bem jurídico. Os direitos fundamentais representam restrições impostas à sua própria restrição e restringibilidade. 310

308 TORRES, Ricardo Lobo. O Direito ao Mínimo Existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 83-89. 309 Ibidem, p. 85.

310 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, 4. Aufl., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 267. No

original: “Eine Einschränkung der Grundrecht ust nur dann zulässig, wenn gegenläufigen Prinzipen im konkreten Fall gegenüber dem grundrechtlichen Prinzip ein h¨heres Gewicht zukommt. Mann kann deshalb sagen, dass die Grundrecht als solche Beschränkungen ihrer Einschränkung und Einschränkbarkeit sind.”.

Para os adeptos da teoria externa (Aussentheorie), o conceito de restrição de um direito enseja a existência de duas coisas, o direito e sua restrição, entre as quais há uma relação especial, qual seja a de limitação ou de restrição. Assim, há o direito em si (Recht an

sich) e o direito restringido (eingeschränkte Recht).

Malgrado propugne o domínio quase que exclusivo de direitos restringidos em determinado ordenamento jurídico, a teoria externa admite a concepção de direitos sem restrições, pelo que aponta para a inexistência de relação necessária entre o conceito de direito e o conceito de restrição. Tal relação é estabelecida tão somente a partir da necessidade de compatibilização entre os interesses individuais e os bens coletivos.311

Outra perspectiva orienta a teoria interna (Innentheorie), que nega a existência de direito e restrição como duas coisas apartadas, mas defende que somente existe o direito com um determinado conteúdo. Assim, o conceito de restrição é substituído pelo conceito de limite e as dúvidas acerca do limite do direito não se referem ao alcance possível de sua restrição, mas a que conteúdo ele possui. Portanto, ao se falar em “limites” (Grenzen) no lugar de “restrições” (Schranken) se está a falar de “restrições imanentes” (Immanenten Schranken). 312

Adverte Alexy que a controvérsia entre a teoria interna e a teoria externa não se limita, absolutamente, ao plano terminológico ou conceitual. Aquele que defenda a teoria individualista da sociedade e do Estado alinha-se com a teoria externa. Por sua vez, quem nutre a perspectiva da integração dos indivíduos em comunidade inclina-se para a teoria interna.

Nessa diretiva, o investigador deve partir da compreensão do que deve ser o conteúdo essencial dos direitos fundamentais em determinado sistema jurídico, considerando eventuais delimitações já previstas na Constituição, mas atento ao fato de que “o exame das restrições aos direitos individuais pressupõe a identificação do âmbito de proteção do direito fundamental ou o seu núcleo. Esse processo não pode ser fixado em regras gerais, exigindo, para cada direito fundamental, determinado procedimento”.313

É certo que a correlação entre mínimo existencial e conteúdo essencial dos direitos fundamentais sempre reclama exame mais detido, notadamente pelo fato de que, no

311 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, 4. Aufl., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 250. 312 Idem.

313 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. 3. ed. São Paulo:

âmbito de muitos dos direitos fundamentais, é possível destacar conteúdo essencial que não se transmuda em mínimo existencial.

A história nos mostra que o ato de entregar a sociedade à sua própria sorte parece ser etapa necessária à evolução humana. E assim os povos devem sobreviver ao abandono e passar pelo individualismo, para enfim perceber que somente se concebe o ser humano se inserido no contexto social.

O elemento natural, caráter definidor de significativas diferenças entre dos seres humanos, antes de ser desprezado, há que ser levando em conta para que se possa evoluir no sentido da construção de uma sociedade mais próxima do utópico ideal de justiça e igualdade material.

Como já observado, a liberdade é uma construção política e, portanto, uma sociedade não pode ser livre sendo ela puramente natural, já que “o formalismo igualitário das regras coexiste mal com a exaltação das diferenças naturais”.314:

Na verdade, a compreensão do homem acerca dos direitos que lhe são inerentes ainda desloca-se lentamente em direção à almejada plenitude. A ausência de consciência em relação à proteção constitucional de determinados bens jurídicos revela o campo de tensão que ainda paira por sobre os direitos fundamentais, sua justificação e realização.

Vale relembrar as reflexões empreendidas por Dirley Cunha, destacadas linhas atrás, acerca da necessidade de fundamentalização dos direitos humanos.

Também a esse respeito, importa por em relevo o que assevera Silva Neto 315:

Por mais que pareça devidamente consolidado o sistema de proteção aos direitos fundamentais das pessoas, por mais que se afirme que o grande problema dos direitos humanos, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas sim o de protegê-los (BOBBIO, 1992), os dados da experiência têm insistentemente demonstrado que há, sim, conjunto de direitos fundamentais ainda em estado de justificação.

Se não for assim, como compreender a pífia tutela conferida aos direitos humanos em sistemas jurídicos que, por exemplo, extirpam o clitóris de meninas recém-nascidas em nome de tradições e crenças religiosas?

Se não for assim, como admitir a recusa sistemática quanto à proteção ao trabalho da prostituta?

314 GUÉHENNO, Jean-Marie. O futuro da liberdade – A democracia no mundo globalizado – A democracia no

mundo globalizado. Rio de Janeiro: Bertrand Brazil, 2003, p. 36.

315 SILVA NETO, Manoel Jorge. A Proteção Constitucional ao Trabalho da Prostituta. Revista do Ministério

Verifica-se, pois, que as questões levantadas por Silva Neto – representativas de sérias violações ao núcleo mínimo da dignidade – põem em evidência a incipiente proteção que recebem determinados bens jurídicos, notadamente quanto sua violação decorre de fatores que encerram importante caráter religioso e sócio-cultural, o que torna ainda mais espinhoso o caminho para a solução das controvérsias.

Examinada à luz da teoria democrática, essa problemática desperta sentimentos os mais diversos, que ensejam uma série de indagações, todavia, a sua complexidade presente na espécie forçosamente projetaria as reflexões para fora dos limites epistemológicos deste trabalho, o que, portanto impede que se faça análise mais aprofundada.

Resta sublinhar a noção de que os elementos aptos a definir a preservação do mínimo existencial não são passíveis de exame em abstrato. Ainda que se possa lançar conceitos ou parâmetros, é da realidade concreta, submetida a exame à luz da teoria dos direitos fundamentais, da teoria dos princípios e da teoria da democracia, que se deve extrair as balizas, sejam no âmbito das liberdades públicas seja no âmbito dos direitos a prestações.

A construção das regras que devem integrar o conceito substancial do mínimo existencial é tarefa diuturna dos atores jurídicos – Magistratura, Ministério Público, Advocacia e Defensoria Pública – que, a partir dos casos concretos que lhes são submetidos pelas diversas esferas da sociedade democrática ou por indivíduos isoladamente considerados, devem buscar conformar a ordem jurídica, de modo que as demais instâncias de Poder – Legislativo e Executivo – sejam compelidas a observar as disposições constitucionais e a adotar providências que impeçam as recorrentes violações à dignidade dos indivíduos.

Vidal Serrano, malgrado, como já se destacou, faça coincidir mínimo vital e

mínimo existencial, contribui, de forma incisiva, para diferenciar o “mínimo vital” (que para ele é mínimo existencial) do conceito de núcleo essencial dos direitos, ainda que pretenda vincular o mínimo existencial ao campo dos direitos sociais, literris:

O chamado conteúdo mínimo aponta que cada direito tem um núcleo mínimo irremissível, associado à sua própria razão de ser. Evoca, assim, uma abstração que enuncia a essência do direito cogitado, que não pode ser objeto de supressão ante qualquer panorama histórico ou ante quaisquer eventuais limites. Já o chamado mínimo vital opera com vetores quantitativos, ou seja, aponta quais as necessidades mínimas que um ser humano, só por sê-lo e exatamente para preservá-lo em sua dignidade, deve observar.316

316 NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988. São Paulo: Verbatim, 2009, p.

É preciso refletir, pois, que a identificação do mínimo existencial ao núcleo essencial dos direitos fundamentais encontra sérias dificuldades, já que não se pode afastar a possibilidade de se fixar, em determinado Estado, consideradas as condições estruturais do Ente político, núcleo essencial acima daquilo que se pode definir como mínimo necessário à existência os indivíduos.

Nessa perspectiva, o mínimo existencial seria, na verdade, um limite a ser imposto à eventual redução do escopo protetivo delineado pelo núcleo essencial de determinado direito.