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3 O MÍNIMO EXISTENCIAL E A ESSÊNCIA DO REPUBLICANISMO

3.5 A essência da separação das funções estatais no Estado republicano

3.5.1 Origem remota da tripartição das funções estatais

Ao tratar da evolução histórica da Tripartição das Funções Estatais, Silva Neto relembra que: “o pensamento político moderno e contemporâneo é grande devedor das formulações teóricas dos gregos. E a divisão das funções do Estado é tema que não escapa à regra”.102

Nuno Piçarra assinala que se localizam na Grécia e na Roma antigas algumas das idéias que vieram a encontrar a sua expressão institucional mais perfeita no moderno Estado constitucional, que podem ser designadas como ‘axiomas fundamentais da idéia ocidental de Estado’, contraposta ao ‘despotismo oriental’, quais sejam:

1º O poder político deve emanar de uma estrutura institucional objectiva e não imediatamente da vontade dos homens. Entre eles e o poder deve interpor-se a instituição;

102 SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p.

262. No particular, importa destacar a advertência do referido autor: “[...] é preciso ter atenção para o fato de que muitos denominam teoria da tripartição do ‘poder’, e mesmo a Constituição de 1988, ao inaugurar o Título IV, assinala a epígrafe “Da Organização dos Poderes”, fazendo referência nos Capítulos seguintes às expressões ‘Do Poder Legislativo’ (arts. 44 e segs.), ‘Do Poder Executivo’ (arts. 76 e segs.) e ‘Do Poder Judiciário’ (arts. 92 e segs.). [...] O poder, que se consubstancia em ‘imposição real e unilateral de uma vontade’ (Salvatti Neto), uma vez transformado em potestade exercitável pelo Estado, passa a constituir fenômeno político marcado por caracteres que depõem contra a possibilidade de cisão. São eles: a) a unidade; b) a indelegalabilidade; c) a

coatividade. O poder é uno e, por conseguinte, indivisível. O fenômeno do poder está relacionado ao Estado como um todo, e não às funções desempenhadas por órgãos a ele vinculados. A existência de funções legislativa, executiva e judiciária tem a sua razão ontológica presa à necessidade de o Estado mais rápida e eficazmente alcançar as suas finalidades. Mas o Poder do Estado, enquanto tal, permanece incindível. Outrossim, quando se afirma que o poder político é indelegável, defende-se a completa inviabilidade quanto a outro órgão ou pessoa vir a exercer as atribuições previstas na constituição senão aquele(a) para o(a) qual se dirija o encargo. E se não é possível delegação de autoridade estatal, não se permite, logicamente, seja fracionada. A regra, portanto, é da proibição de delegação de funções, se bem que excepcionalmente permita a Constituição de 1988 o exercício de atribuições por quem não fora, de forma originária, a tanto autorizado, como se dá com a edição de lei delegada (art 68, caput). E o último traço a cingir a fronte do poder político e impeditivo de sua divisão é a sua natureza coativa. O poder é coativo porque se impõe independentemente de manifestação de vontade dos destinatários dos seus comandos. Ora, se os indivíduos renunciaram ao exercício da liberdade absoluta, objurgando o ‘estado de natureza’ em que viviam e organizando-se em prol da consecução de finalidades comuns no ‘estado social’, nada mais justificável do que submeterem-se incondicionadamente aos ditames promanados da pessoa coletiva. E se o poder coage, de modo legítimo, para obrigar a conformação ás suas ordens, da conduta das pessoas, admitir a divisão seria o próprio desvanecimento do poder. Poder, então, não se divide. Divididas são as funções do Estado, a fim de torná-lo apto ao cumprimento das finalidades que descrevem sua razão de ser e de existir. Ainda assim, ao longo da exposição em torno ao Legislativo, Executivo e Judiciário, iremos denominá-los ‘poder’, sem que isso obviamente seja o reconhecimento do acerto do constituinte originário, mas mera alusão, por propósitos didáticos, aos termos que vêm sendo historicamente consagrados por todas as Constituições brasileiras”. (Ibidem, p. 361-362).

2º Essa estrutura institucional deve ser diferenciada, compósita e não monolítica ou uniforme, tanto do ponto de vista orgânico como do ponto de vista funcional;

3º Essa estrutura institucional deve ser juridicamente conformada e a sua actuação deve fazer-se de acordo com a lei;

4º Essa estrutura institucional deve ser tanto quanto possível estável. Para isso tem que ser ‘local de mistura’ das várias classes sociais, portadoras de ‘interesses conflitantes’. Estas devem ter acesso equilibrado aos órgãos ou magistraturas de que aquela se compõe, de modo a poderem participar globalmente no exercício do poder político.103 (grifou-se).

A noção de separação das funções estatais (já que, como adverte André Ramos Tavares, “pode-se dizer que só por antonomásia é que se poderia denominá-la separação de poderes”104) está diretamente ligada com o conceito de “constituição mista” – cuja teoria se insere no ultimo dos axiomas referidos –, que tem sua origem em Aristóteles, por se enquadrar no tema das formas de governo, ou seja, nos “modos de exercício do poder supremo no Estado”.105

“Constituição mista” – considerada a melhor por Aristóteles, porque envolvia ricos e pobres – era aquela em que os vários grupos ou classes sociais participavam do poder político, contrapondo-se à “constituição pura”, na qual o exercício do governo estava nas mãos de uma única parte constitutiva da sociedade.106

A filosofia do meio termo, ideal de toda a ética Aristotélica, que atribui valor positivo a tudo que constitua o justo meio entre dois extremos: “porque o ‘meio termo é bom em tudo’, também a melhor sociedade é que for composta pelo maior número possível de membros iguais ou semelhantes, isto é, por uma classe média mais numerosa, que do que a classe dos ricos ou a dos pobres, quer do que ambas em conjunto”.107

Insere-se ai o conceito aristotélico de constituição média ou governo médio, que abarca, ainda que sob perspectivas distintas, a mesma realidade envolvida pela constituição mista. Esta, objetiva o “equilíbrio estático” e atente às desigualdades e diversidades sociais para evitar que uma classe adquira preponderância sobre a outra, revelando-se, assim, um “sistema político-social pluralmente estruturado”; já a primeira, encara o equilíbrio entre as

103 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o

estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra Editora, 1989, p. 31-32.

104 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1185. 105 PIÇARRA, Nuno. op. cit. p. 32.

106 Ibidem, p. 33. 107 Ibidem, p. 35.

classes como um processo de atenuação das diferenças entre elas, revelando-se um programa político de aproximação ou de assimilação econômico-social das classes.108

No modelo aristotélico de constituição mista encontra-se a idéia que se associa à doutrina da separação dos poderes, na fase adiantada de sua evolução, qual seja “a do equilíbrio ou balanceamento das classes sociais através da sua participação no exercício do poder político, viável mediante o acesso à orgânica constitucional.”.109

Refere Aristóteles, de igual sorte, que “existe em todo governo as três partes nas quais o legislador consciente deve fazer valer o interesse a conveniência particulares. Quando elas são bem formadas, o governo é necessariamente bom, e as diversidades existentes entre tais partes formam os diversos governos”. Distinguiu, portanto, a assembléia-geral, o corpo de magistrados e o corpo judiciário.110

Na República de Cícero, malgrado os danos sofridos no trânsito para o mundo moderno111, bem como de traduções que muitas vezes desnaturam a essência do texto original, resta evidente a teorização da constituição mista, fundada nas mesmas bases sob as quais construiu Aristóteles o seu pensamento.

Veja-se a seguinte passagem de República, em que, depois de se discutir acerca das virtudes e das mazelas de cada constituição pura (forma de governo), Scipio (Cipião) responde a indagação de Laelius (Lélio) acerca da constituição mista:

É por isso que, embora a monarquia seja, na minha opinião, a mais desejável das três formas primárias, encontra-se superada pela fusão das três formas simples naquilo que possuem de melhor. Um estado deve possuir um elemento de supremacia régia; algo mais deve ser atribuído e distribuído à autoridade dos aristocratas; e certos assuntos devem ser reservados para o julgamento e os desejos das massas. Uma constituição deste tipo possui, em primeiro lugar, um elemento de igualdade generalizada sem o qual o homem

108 Idem. 109 Ibidem, p. 36.

110 ARISTÓTELES. Política. Livro VII, Capítulo IX. São Paulo: Martin Claret, 2004.

111 Na introdução de “The Republic ans The laws” Jonathan Powell e Niall Rudd adverte que: “As duas obras de

Cícero traduzidas neste volume têm sofrido diversos danos em seu trânsito para o mundo moderno, e por isso tem sido geralmente ficado no domínio dos especialistas, em grande parte inacessível ao público ou até mesmo ao estudantes clássicos. No entanto, agora eles oferecem considerável recompensa ao leitor moderno, e especialmente para estudantes de história do pensamento político. Apesar das lacunas e problemas no texto, ainda é possível apreciar um pouco das suas qualidades literárias, e as idéias discutidas no seu âmbito mantêm- se, em muitos aspectos, com a mesma relevância que tiveram no seu contexto histórico original”. No original: “The two works of Cícero translated in this volume have suffered much damage in transit to the modern world, and n this account have usually been regarded as the preserve of specialists, largely inaccessible to the public or even to classic students. Yet they offer considerable rewards to the modern reader, and especially to student of history of political thought. Despite the gaps and problems in the text, it is still possible to appreciate something of their literary qualities, and the ideas discussed in them are in many ways as relevant to the modern world as they were to their original historical context”. (In: CICERO. The Republic and the Laws. Translated by Niall Rudd. Oxford: Oxford University Press).

livre não pode permanecer muito tempo. Em segundo lugar, tal constituição é dotada de estabilidade, pois, embora essas três formas originais possam facilmente se degenerar em suas versões corruptas (produzindo um déspota em vez de um rei, uma oligarquia em lugar da aristocracia e de uma multidão desorganizada (demagogia) em substituição à democracia), e embora essas formas simples frequentemente se transmudam umas nas outras, essas coisas raramente acontecem em uma estrutura política que representa uma combinação e uma mistura judiciosa das três formas - a menos que os políticos sejam profundamente corruptos.112

Piçarra refere à versão polibiana113 da teoria da constituição mista e destaca que em Roma, a orgânica constitucional era composta de órgãos que participavam do poder político, fundamentados em distintos princípios de legitimidade. Os dois cônsules eram legitimados pelo princípio monárquico; o senado, pelo princípio aristocrático e o comícios tribunícios pelo princípio democrático, cada qual refletindo o substrato constitucional de uma classe, vale dizer: os cônsules, os patrícios e os plebeus. 114

Esclarece Piçarra que:

É nesta associação de uma classe ou potência político-social autônoma a cada um dos três órgãos constitucionais que a versão polibiana da constituição mista revela a sua diferença especifica relativamente à versão aristotélica, em que apenas se trata de atribuir a todos as classes iguais direitos político-constiucionais. Mas o telos da constituição mista é em ambas as versões idêntico: o equilíbrio entre as classes.

Para Políbio o balanceamento obtém-se, justamente, <<separando>> os diferentes interesses de classe a nível orgânico-institucional, ou seja, fazendo corresponder a cada um <<poder constitucional>> autônomo. Deste modo

112 CICERO. Republic. Book One, 69. In: Cícero The Republic and The Laws. Translated by Niall Rudd. Oxford:

Oxford University Press. No original: “That is why, though Monarchy is, in my view, much the most desirable os the three primary forms, monarchy is itself surpassed by even and judicious blend of the three simple forms at their best. A state should posses an element of regal supremacy; something else should be assigned and allotted to the authority of aristocrats; and certain affairs should be reserved for the judgment and desires of the masses. Such a constitution has, in the first place, a widespread element of equality which free men cannot long do without. Secondly, it has stability; for although those three original forms easily degenerate into their corrupt versions (producing a despot instead a king, an oligarchy instead of aristocracy and a disorganized rabble instead of a democracy), and although those simple forms often change into others, such things rarely happen in a political structure which represents a combination and a judicious mixture - unless, that is, the politicians are deeply corrupt. For there is no reason for change in a country where everyone is firmly established in his own place, and which has beneath it corresponding version into which in may suddenly sink and decline.”.

113 Políbio foi um historiador grego, que viveu entre 200 a.c e 118 a.c. Sua mais importante obra é Histórias, em

que narra as grandes conquistas romanas no mediterrâneo, escrita antes e durante as guerras púnicas (conflitos que opuseram a Republica Romana à República de Cartago, o primeiro em 264 – 241 a.c, o segundo 218 – 202 a.c e o terceiro 15- - 146 a.C.). (ARRUDA, José Jobson de A. História Antiga e Medieval. 11. ed. São Paulo: Ática, 1989, p. 218-224). Para examinar a biografia de Políbio veja Grécia Antiga (Disponível em: <http://greciantiga.org/arquivo.asp?num=0557> . Acesso em 12. jul. 2010.). Já Cícero – Marcus Tullius Cícero – foi político, filósofo e historiador romano que viveu entre 106-43 a.C. Suas reflexões foram desenvolvidas antes das reformas dos irmãos Gracos (Tibério Graco e Caio Graco, tribunos da plebe cabendo ao primeiro a reforma agrária e ao segundo a reforma do Estado).

114 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para o

<<(...) a força de um poder, neutralizando a dos outros faz com que os diversos poderes se equilibrem, nenhum se exceda e o sistema político permaneça longamente em perfeito equilíbrio, à guisa de um navio que vence a força de uma corrente contrária (...). Todos, portanto, permanecem nos limites constitucionais prescritos, à partida, temem a fiscalização dos outros>>. (grifou-se). 115

Dessas reflexões é que se deflui a estreita conexão entre a constituição mista concebida em Aristóteles, Políbio e Cícero e o equilíbrio dos poderes: “órgãos constitucionais diferenciadamente legitimados e representantes de interesses sociais distintos, reflectindo a estrutura plural da sociedade hão-de provocar um efeito reciprocamente limitativo, no sentido da moderação do poder político”.116

Essas teorizações não encontraram em sua época campo fértil para ensejar significativas modificações. Na Idade Média, a tradição da constituição mista “tinha sido utilizada para defender a limitação do poder real pelos direitos das ordens ou estamentos, aos quais era assegurado o desempenho de funções de natureza política junto ao rei, a quem cabia exprimir a por vezes muito tênue unidade política”.117