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3 O MÍNIMO EXISTENCIAL E A ESSÊNCIA DO REPUBLICANISMO

3.7 Cidadania, República e o direito ao mínimo existencial

3.7.3 Cidadania, seleção natural e oportunidades

Ao se sustentar que o Estado de Direito e de Justiça Social é aquele em que se busca a redução das desigualdades, não se está, de forma alguma, a defender a existência de resultados iguais para todos, notadamente porque cada ser humano possui as suas capacidades, o que também afasta o discurso das oportunidades iguais.

Amartya Sen leciona que a liberdade envolve o processo que permite a liberdade de ação e decisões, e as oportunidades atuais que as pessoas possuem, decorrente das circunstâncias pessoais e sociais.202

197 SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989, p. 12. 198 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: Fundamentos de uma nova cultura do direito. 3. ed. São

Paulo: Alfa-Omega, 2001, passim.

199 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, passim. 200 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1972, passim.

201 HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999, p. 145. No

original: “[…] jeder den Status des Staatsbürgers als das erkennen und würdigen, was ihn mit den anderen

Mitgliedern des politischen Gemeinwesens verbindet, was ihn gleichzeitig von diesen adhangig und für siue mit verantwortlich”.”.

Otfried Höffe ensina que a justiça social não exige a igualdade de resultados, os quais podem ser desperdiçados por responsabilidade da própria pessoa. Além disso, não se devem negar as diferenças de desempenho individual. De acordo com a situação, cada um se faz merecedor das oportunidades compatíveis com seu talento.203

Com as reservas necessárias em relação à exclusiva meritocracia, o que se defende é que não há talento possível de aflorar sem que se observe o preenchimento de um conjunto de condições básicas alusivas ao atendimento de necessidades individuais, sem as quais a pessoa humana sequer ingressa no campo da cidadania e da dignidade. A este conjunto se quer denominar “mínimo existencial”.

Antes de concretizado o direito ao mínimo existencial, não se pode falar de justiça social, porque a noção de igualdade e desigualdade, ao menos à luz do postulado isonômico, deve pressupor indivíduos situados ao menos na faixa mínima de subsistência, mas que se encontram em situações fáticas discrepantes, a merecerem tratamento jurídico e político diferenciado.

O acesso aos direitos sociais pode estar submetido às providências atribuídas ao Estado pelas normas programáticas estabelecidas na Constituição, que, malgrado demandem urgente concretização, exigem programas de governo de execução diferida no tempo.

Como já se demonstrou, situação diversa envolve o mínimo existencial, já que a violência que colhe bens jurídicos da mais alta estatura constitucional, como, por exemplo, a vida, em situações que tocam a negação do direito ao mínimo existencial, exige escolhas mais trágicas do que aquelas que encerram os direitos sociais propriamente ditos.

203 HÖFFE, Otfried. Wirtschaftbürger, Staatsbürger, Weltbürger – Politesche Ethik im Zeitalter der

Globalisierung. München: C. H. Beck, 2004, p. 58. “Muito menos, exige a justiça social igualdade nos resultados, os quais podem ser desperdiçados por responsabilidade da própria pessoa. Ademais, não se pode negar as diferenças nos desempenhos individuais. A tentativa sempre renovada de se criar igualdade nos resultados, em lugar de buscar o estabelecimento de oportunidades justas, pode estar motivado pela inveja social ou eventualmente por má consciência; tentativa que dificilmente atrai a justiça. Da mesma forma, a justiça não exige que se ofereça a todos iguais condições no âmbito da educação, porquanto alguns seriam excessivamente e outros insuficientemente exigidos, o que representaria negar a justiça para ambos os grupos. De acordo com a situação, cada um merece as oportunidades adequadas ao seu talento, à sua determinação, à sua disposição, não importa se possua talento normal, superior, inferior ou especial - como o caso dos talentos musicais ou artísticos”. No original: “Noch weniger gebietet die soziale Gerechigkeit gleiche Ergebnisse. Diese kann man nämlich ais eigener Verantwortung verspielen. Ausserdem braucht man nicht Unterschiede des eigenen Einsatzes zu leugnen. Der immer wieder neu Versuch, ein Ergebnisgleichheit herzustelle statt eine Chancengerechtigkeit zu suchen, mag von sozialem Neid, gelegentlich auch schlechten Gewissen beflügelt sein; auf die Gerechtigkeit kann er sich schwerlich berufen. Entsprechend verlangt die Gerechtigkeit nicht, im Bildungsbereich jedem dasselbe zukommen zu lassen. Denn manche wären über-, andere unterfordert, so dass man beiden Gruppen Gerechtigkeit verweigerte. Nach der Alternative verdient jeder die seiner Begabung, seinem Leistungswillen und seiner Leistungsbereitsschaft angemessenen Chancen, mithin sowohl der gewöhnlich als auch der weniger Begabte und der Hochbegabte, nicht zuletzt der (etwa musikalisch oder künstlerisch Spezialbegabte.“.

Por isso mesmo é que a extensão demasiada do conteúdo dos direitos ao mínimo existencial termina por atingir a sua essência e aproximá-lo à noção de direito social, o que, portanto, afasta a proteção constitucional expressa, representada pela obediência ao princípio da dignidade humana.

Se o acaso dos nascimentos coloca os seres humanos em castas sociais distintas, muitas delas abaixo da linha de subsistência, é missão perene do Ente político proporcionar condições para modificar este estado de coisas e, por conseguinte, permitir que, depois de estabelecidas as condições de igualdade substancial (e aqui se inserem as políticas de ação afirmativa), as oportunidades sejam aproveitadas consoante o talento de cada um.

Jean-Marie Guéhenno registra que a ação política possui o objetivo concreto a ser perseguido, qual seja a correção das desigualdades sociais, para que se viabilize o aumento das possibilidades de acesso ao saber e de ascensão social. Aduz ainda que, mesmo hoje em dia: “nunca tivemos tanta consciência da distância imensa que nos separa de um mundo onde as pessoas sejam não só remuneradas segundo os seus méritos, mas sobretudo encontrem o lugar na sociedade onde possam ser inteligentemente utilizadas”.204

E conclui:

Tal ambição continua a justificar a recusa de um mundo que assegura o conforto de uma multidão de medíocres burgueses protegidos pelos acasos dos nascimentos e sufoca na pobreza ou na miséria os talentos de milhões de desconhecidos. Tanto melhor para os medíocres, contanto que reconheçam a sorte que têm, mas quanto desperdício para a sociedade como um todo. De uma maneira ao menos implícita, esta constatação continua a inspirar todos os discursos políticos: quem não quer a igualdade de oportunidades, quem não deseja que cada um seja remunerado segundo os seus méritos? O nascimento e a riqueza não devem ser os fundamentos de uma ordem social legitima; sobre esta questão, direita e esquerda não se opõem quanto ao princípios, discordando apenas sobre o método.

Contudo, à medida que avançamos no conhecimento dos mecanismos sociais e nos tornamos até capazes de identificar – e portanto de corrigir – o que decorre do ambiente social e o que decorre do talento pessoal, torna-se mais pertinente a questão da desigualdade nas comunidades humanas. 205

Guéhenno lança três questões de extremada relevância para a concepção da cidadania em sentido amplo:

204 GUÉHENNO, Jean-Marie. O futuro da liberdade – A democracia no mundo globalizado – A democracia no

mundo globalizado. Rio de Janeiro: Bertrand Brazil, 2003, p. 37

205 GUÉHENNO, Jean-Marie. O futuro da liberdade – A democracia no mundo globalizado – A democracia no

 Trata-se somente de melhorar as condições de seleção funcional que toda sociedade realiza, para que não seja falseada por contingências sociais de nascimento – mas que sejam aceitas as contingências genéticas?

 Aceitamos as desigualdades da natureza por não sabermos como corrigi-las ou por elas conterem uma verdade diante da qual nos inclinamos?  A loteria genética é mais legítima do que a loteria social? 206

As questões postas por Guéhenno situam-se em um âmbito de exame acerca do cidadão do mundo, mais precisamente dos “indivíduos diante da globalidade”. E se é certo que em relação à oferta de oportunidades não é possível aceitar a lógica do darwinismo social, maior razão deve assistir para não se empregar idêntico raciocínio para negar o acesso ao mínimo existencial.

A cidadania é algo atingível para humanos e pressupõe a presença de condições mínimas de existência digna, sem as quais não se pode sequer falar em oferta de oportunidades, simplesmente pelo fato de que não se há como demonstrar talento, ao menos na competição diária pela sobrevivência, se não se está sequer em condições físicas e psíquicas adequadas para a batalha diária contra seu próprio “semelhante”.

Não se pode considerar cidadão no sentido material da palavra, aquele que o Estado deixa situado abaixo da linha humana, cuja vida parece não representar qualquer valor e cuja incolumidade física equipara-se a mera peça de adorno.

Esse é, pois, o resultado da denominada utopia da sociedade justa, em cujo âmbito a concorrência perfeita só reconhece desigualdades naturais, excluindo qualquer desigualdade social e política. “Acreditando haver descoberto o terreno comum faz de nós semelhantes, conferimos à desigualdade uma legitimidade que ele nunca teve, pois fixamos o edifício social às determinações da natureza” [...]. “O darwinismo social não pode ser o princípio de organização de uma sociedade democrática, nem a concorrência entre os homens e das idéias como o único princípio de organização do mundo globalizado”.207

Thomas Morus, como de resto os demais autores que desejaram criticar as sociedades de sua época, descreve em sua obra A Utopia um modelo perfeito de sociedade pacífica e tolerante, sonho que ele sabia inatingível, mas que consubstanciava reação contra a

206 Idem.

207 GUÉHENNO, Jean-Marie. O futuro da liberdade – A democracia no mundo globalizado – A democracia no

mundo globalizado. Rio de Janeiro: Bertrand Brazil, 2003, p. 39. Aduz ainda o autor que: “[...] a utopia da sociedade justa obriga aos homens a se curvarem a uma ordem que, ao considerar a desigualdade como o cerne da organização social, a destrói como comunidade humana. Acreditando haver descoberto o terreno comum faz de nós semelhantes, conferindo à desigualdade uma legitimidade que ele nunca teve, pois fixamos o edifício social ás determinações da natureza”. (idem).

corrupção, a injustiça e a subalternização das classes menos favorecidas que marcavam a sociedade de sua época.208

Esclarece Jose Ferrater Mora, que as “utopias” objetivam apresentar a sociedade completa, com todos os seus detalhes, insusceptível de progresso. Seus autores são conscientes da impossibilidade de realização, mas o que os move é o desejo de melhorar a sociedade de sua época. Ademais, sustenta Ferrater Mora, malgrado as críticas que classificam o espírito utópico como alheio às realidades humanas, certo é que, em algumas ocasiões, o pensamento utópico cria certas condições que se convertem em realidades sociais.209

Portanto, a utopia da sociedade justa é pensamento que desconsidera as desigualdades sociais e termina por visualizar na sociedade natural o sentido de liberdade.

A “imensa” minoria que mitiga as ações estatais traduz-se em milhões de brasileiros discriminados e lançados à própria sorte a uma seleção fundada no darwinismo

208 Mauro Brandão Lopes obtempera: “Diz Eric Voegelin que a UTOPIA é um ‘axiological dream world’, e que

More sabia claramente que o sonho era irrealizável. Realizável ou não, o Estado ideal de More é manifestamente uma reação contra os males econômicos e políticos de seu tempo e um apelo à volta a uma sociedade equilibrada e pacífica” LOPES, Mauro Brandão. Thomas Morus, Humanista e Mártir. In: MORUS, Thomas. A Utopia. São Paulo: Escala, p. 21.

209 José Ferrater Mora delineia dois sentidos para vocábulo “Utopia” (literal e específico). Aqui interessa o

segundo. Em sentido literal, “'utópico' significa lo que no está en ninguna parte'. Pero como lo que no está en ninguna parte no se halla tampoco alojado en ningún tiempo, la utopía es equivalente a la ucronía (VÉASE) (en un sentido más general que el dado por Ch. Renouvier a este último término).”. Em sentido específico “se llama utopía a un ideal que se supone a la vez deseable e irrealizable. Este ideal suele referirse a uma sociedad humana que se coloca em un futuro indeterminado y a la cual se dota mentalmente de toda suerte de perfecciones. Como tal sociedad funciona, por así decirlo, en el vacío, esto es, carece de resistencias reales, todos los problemas quedan en Ella solucionados automáticamente. Hay rmichos ejemplos de tales utopías sociales; entre los más destacados figuran la sociedad descrita en la República de Platón, en la Utopia, de Santo Tomás Moro (a quien se debe la palabra) en La ciudad del sol, de Campanella, en la Nueva Atlántida, de F. Bacon, en el Erewhorn, de S. Butler, en la Icaria, de Cabet, en las Noticias de ninguna parte, de William Morris, en Una Utopía moderna, de H. G. Wells. Estas utopías son muy distintas entre sí. Todas tienen, sin embargo, algo de común: el presentar una sociedad completa, com todos sus detalles, y casi siempre cerrada, en el sentido de que ( a causa de su supuesta perfección) no es ya susceptible de progreso. No hay que creer, con todo, que los autores citados suponen la posibilidad de realización de sus respectivas utopías. La mayor parte de ellos saben que son en principio irrealizables. Pero lês mueve el deseo de criticar la sociedad de su época y el deseo de mejorarla. El motivo principal de las utopías es, pues, la voluntad de reforma. En este sentido puede decirse que las utopías son revolucionarias, aunque hay que tener en cuenta que la revolución que pretenden introducir en la sociedad está destinada casi siempre a que se constituya una comunidad humana donde no sea ya posible ninguna revolución. Se ha criticado con frecuencia el llamado espíritu utópico, al cual se ha calificado de ciego para las realidades humanas. En efecto, el pensamiento utópico se basa en gran parte en el olvido de ciertos aspectos de la realidad humana que son reacios a entrar, por principio, en el marco de ninguna utopía. Sin embargo, hay que tener presente que la utopía no es totalmente inoperante. En algunas ocasiones el pensamiento utópico crea ciertas condiciones que se convierten en realidades sociales. En su acción concreta, pues, el pensamiento utópico no es siempre utópico. Ello se debe a lo que hemos destacado en el artículo sobre la noción de teoría (v.) como característico de las teorías sobre las realidades humanas; estas teorías pueden modificar semejantes realidades y, por lo tanto, no se encuentran siempre completamente al margen de la realidad concreta de la sociedad.” (FERRATER MORA, José. Diccionário de Filosofia. Bueno Aires: Montecasino, 1967, p. 862).

social, que projeta para fora dos lindes da dignidade indivíduos dominados e sufocados pelo egoísmo de uma sociedade que avança sem desenvolver-se.

A busca pela inclusão por meio da igualdade de oportunidade deve considerar, como obtempera Sidney Madruga, os “aspectos econômicos-sociais que incidem sobre essas pessoas, submetidas historicamente a forte exclusão e oprimidas ante outra parcela de poder numa escala de organização social, na qual são objeto de discriminação e preconceito”.210

De fato, a sociedade não pode ser livre sendo ela natural, já que a liberdade é mesmo uma construção política que se realiza por meio da viabilização de oportunidades justas àqueles que já ultrapassaram a barreira do acesso ao mínimo existencial, mormente porque não se pode fazer do êxito social o valor supremo em um mundo governado por lógicas funcionais, sob pena de se explicar o fracasso, não pela falta de sorte, nem pela injustiça, mas pela desigualdade de talentos.211

Uma sociedade que convive com a lógica da inacessibilidade de condições mínimas de subsistência não pode ser considerada livre, sendo, por isso mesmo, insusceptível de construir oportunidades justas, porque, a toda evidência, retira da desigualdade qualquer aspecto contingente, suprimindo assim, a própria possibilidade de liberdade humana.212

210 SILVA, Sidney Pessoa Madruga da. Discriminação positiva e ações afirmativas na realidade brasileira.

Brasília: Brasília Jurídica, 2005, p. 82.

211 GUÉHENNO, Jean-Marie. O futuro da liberdade – A democracia no mundo globalizado – A democracia no

mundo globalizado. Rio de Janeiro: Bertrand Brazil, 2003, p. 40.

4 MÍNIMO EXISTENCIAL. TEORIA DOS PRINCÍPIOS E DOS DIREITOS