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3 ACESSO À JUSTIÇA NO PROCEDIMENTO RESTAURATIVO: UM DIREITO FUNDAMENTAL

3.2 CIDADANIA PARA A JUSTIÇA RESTAURATIVA

Para Aristóteles, cidadão é qualquer pessoa que goze de direitos e respeite deveres definidos pelas leis e pelos costumes da Cidade, conceito que traz em si a necessidade de uma integração social.

Numa concepção mais atual, para ser cidadão é preciso estar em gozo de direitos civis e políticos de um Estado, possuindo também deveres para com o mesmo114.

O sentido dos termos cidadão e cidadania vêm sofrendo, com o tempo, uma série de modificações, incorporando, hoje, noções mais amplas, até porque a justiça participativa pressupõe a conscientização dos cidadãos acerca da necessidade e da importância da sua participação nos procedimentos de elaboração e aplicação de normas e na execução de políticas públicas. 115

Explica Bobbio que a concepção organicista de que o todo é melhor do que a parte proposta por Aristóteles leva à compreensão de um modelo jusnaturalista, de uma visão individualista acerca da igualdade. Houve uma inversão de perspectiva no início da era moderna. As guerras de religião trouxeram a noção de que os direitos naturais cabem ao homem, não dependem do Soberano. Chegou-se à concepção de que deve haver uma evolução: dos direitos dos cidadãos de cada Estado deve-se chegar aos direitos dos cidadãos do mundo. O prenúncio disso foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem que trata de direitos entre os Estados, trazendo, portanto, um Direito cosmopolita, como propusera Kant.116

A noção de justiça almejada na sociedade contemporânea não pode distanciar-se das críticas e contribuições de Habermas para a efetivação da cidadania plena no Estado Democrático de Direito.

Na obra, “Direito e democracia: entre faticidade e validade”, Habermas afirma que no Estado Democrático de Direito há uma conexão entre o direito e a política, fazendo com que suas normas garantam, a cada pessoa, direitos iguais117. A construção do conceito de justiça,

114 HERKENHOFF, J. B. Direito e cidadania. São Paulo: Uniletras, 2004, p. 14.

115 Robert Alexy explica que ampliação da margem de ação dos cidadãos pode acontecer por meio do reconhecimento de competências, pela criação de normas de proteção (sobretudo aquelas do direito penal) e pela concessão de direitos a prestações positivas em sentido estrito. “Na medida em que o direito ativamente cria liberdades, ele cria também sempre – direta ou indiretamente – não-liberdades [...] normas de direito penal que asseguram liberdades excluem a liberdade jurídica de se fazer aquilo que elas proibem”. (ALEXY, op. cit., p. 247).

116 BOBBIO, op. cit., p. 1-6.

117 HABERMAS, Jürgen. Factidad y validez. Tradução de Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta, 1998, p. 645.

no Estado Democrático de Direito, para o estudioso, não pode ser desenvolvida sem a noção de que todas as pessoas possam participar discursivamente, expor os seus interesses e aspirações – sendo este exercício necessário à efetivação de um Estado Democrático118. Assim, a cidadania deve ser compreendida para além da perspectiva individual. A busca pela plenitude e efetividade, neste caso, volta-se à cidadania coletiva, mormente no que se refere à necessidade de pacificação social.

O conceito de democracia é inseparável do conceito de direitos do homem. Na democracia, todos os indivíduos possuem uma parte da soberania. O autor propõe que se fale em soberania dos cidadãos e não do povo, uma vez que povo é um conceito ambíguo do qual se serviu todas as ditaduras modernas. As decisões não se dão em favor do povo, mas de determinados indivíduos, muitos ou poucos. Não é o povo que vota, mas determinadas pessoas em situações pré-estabelecidas. A sociedade não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos. Se não fosse assim, o princípio da maioria não teria sentido. A noção de individualismo é essencial à proteção dos direitos. Essa noção, porém, foi ampliada, no direito público europeu, para o que Kant chama de “cosmopolita” – “uma violação a direitos ocorrida em um ponto da terra deve ser sentida em todos os outros.”119 Compreendia Kant que a Revolução Francesa era um sinal de que o “gênero humano está em constante progresso para o melhor.” 120

Diante do problema do acesso à Justiça, salvo uns poucos mais bem instruídos, a grande maioria das pessoas desacredita dos serviços da Justiça, daí a necessidade de se levar adiante uma proposta de democratização do sistema de resolução de conflitos, com a participação dos cidadãos como sujeitos de direito e em âmbito público, o que deve ser estendido inclusive aos técnicos e serventuários da Justiça. Estes últimos precisam, ainda, assumir os interesses dos jurisdicionados como próprios, proporcionando eficiência aos procedimentos de resolução. 121

Nesse sentido, todos os profissionais dedicados a atividades de interesse público devem estar cientes de que os cidadãos que têm suas vidas reguladas por políticas de governo têm o direito de participar da sua formulação122.

118 A importância da teoria do discurso na construção do Estado Democrático de Direito é ressaltada por Barbara Fretag, estudiosa do pensamento de Habermas, quando afirma a importância e necessidade de construção de uma sociedade sobre base discursiva, que permita a todos a possibilidade de expor suas opiniões, formando-se assim uma sociedade mais justa. Cf. FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.

119 BOBBIO, op. cit., p. 95-97. 120 BOBBIO, op. cit., p. 95-97.

121 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso... op. cit., p. 36.

No sistema penal vigente não se fala em cidadania sem que se permita aos envolvidos no conflito – ofensor, vítima e coletividade – a possibilidade de participação na solução do problema. Interferir nos rumos de um possível acordo é essencial para a pacificação social, sobretudo quando se reconhece que tanto ofensor quanto vítima são cidadãos e só se compreenderão enquanto tais se estiverem imbuídos do sentimento de pertencimento à coletividade. Esse é um pressuposto básico para a implementação da Justiça Restaurativa.

Tratando as pessoas como iguais, haverá a ampliação do ideal de cidadania, uma vez que todas as pessoas são vistas e abordadas como cidadãs, desenvolvendo o sentimento comum de pertencimento à sociedade, o que pode impedir a repetição de ofensas, eliminar a exclusão social e possibilitar o respeito aos direitos humanos.

Do ponto de vista estrutural ou da organização do Estado, o exercício da cidadania não implica apenas na possibilidade de os cidadãos exercerem os seus direitos, mas que os conflitos sejam solucionados de maneira adequada e oportunamente. Nesta senda, amplia-se o exercício da cidadania com a implementação de uma maior e mais heterogênea rede de possibilidades para a resolução dos conflitos, supondo-se, ainda, que a própria estrutura jurisdicional do Estado, de forma descentralizada, pode viabilizar procedimentos mais efetivos de resolução.123

3.3 DEVIDO PROCESSO LEGAL E IMPLEMENTAÇÃO DA DIGNIDADE NA JUSTIÇA