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3 ACESSO À JUSTIÇA NO PROCEDIMENTO RESTAURATIVO: UM DIREITO FUNDAMENTAL

3.6 VANTAGENS DO PROCEDIMENTO RESTAURATIVO PARA O ACESSO À JUSTIÇA

O justo, enquanto valor, pode ser estabelecido pelas partes consensualmente. Caso não seja possível o consenso, uma terceira pessoa as substitui, buscando a justiça, nos termos da lei, e conforme o caso concreto. A autocomposição se coaduna com uma das acepções de justiça que estimula as próprias partes à adequada produção do consenso. Assim, o polissêmico conceito de justiça ganha mais uma definição, passando a ser considerado, também, em função da satisfação das partes quanto ao resultado e ao procedimento que as conduziu a tanto.171

A Justiça Restaurativa é uma nova tendência sistêmica na qual as partes envolvidas em determinado crime, conjuntamente, decidem a melhor forma de lidar com os desdobramentos da ofensa e suas implicações futuras.172

169 CAPPELLETTI, GARTH, op. cit., p. 8.

170 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia... op. cit., p. 112-113.

171 AZEVEDO, André Gomma de. O Componente de Mediação Vítima-Ofensor na Justiça Restaurativa: uma Breve Apresentação de uma Inovação Epistemológica na Autocomposição Penal. In: SLAKMON, C.; R. de Vitto; R. Gomes Pinto (Org.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 105.

172 ASHFORD, Andrew. Responsabilities, Rights and Restorative Justice. British Journal of Criminology, n. 42, 2002, p. 578.

O acesso à Justiça não pode ser considerado, apenas, quanto às disputas cíveis, mas, também, na esfera penal. Assim, o sistema penal não deve se transformar em um mecanismo de marginalização de hipossuficientes.173

Coibir um homem é algo para o seu próprio bem e para o bem da coletividade. Mas é necessário analisar o comportamento desse homem. A solução do conflito "[...] deve esforçar- se para julgar esse comportamento de acordo com o mesmo ponto de vista segundo o qual o seu autor julga a si mesmo, isto é, do ponto de vista de suas intenções, motivos e capacidades.”174

Nos dias de hoje, tanto o delinquente, como a vítima do crime se ligam a uma concepção humanitária de prevenção e tratamento do crime. Se os interesses do agressor e da vítima não conflitam, existem todas as razões para compreender que os programas e instrumentos restaurativos devem ser estimulados. Tais instrumentos prefiguram-se como uma decorrência do direito de acesso à Justiça (absolutizada com maiúscula), com cobertura Constitucional175, o que se verifica, piamente, na realidade brasileira.

A técnica judiciária tradicional pode desgastar as relações e afastar as possibilidades de solução harmônica dos problemas. Ademais, os profissionais envolvidos nas contendas participam, também, desta luta de poder, convertendo-se em aliados ou não das partes, o que retira a objetividade esperada na resolução do conflito e dificulta o caminho para o desfecho pacífico.176

Considerando tais perspectivas, erige a necessidade de desenvolver instrumentos alternativos para a solução de conflitos, resposta da sociedade à deficitária estrutura estatal, mormente na esfera penal.

A compreensão das origens do conflito é essencial para a resolução de cada uma das lides penais. A mediação permite esse tratamento localizado, pois adentra nas diversas possibilidades de compreensão do crime, analisando-o de maneira mais ampla. O crime não é simples infração à lei, tem motivos e consequências que pertencem ao criminoso, dentro de um contexto social, e impõe uma resposta penal mais ampla.

Tal constatação faz perquirir acerca das hipóteses tipificadas na lei que poderiam ensejar um tratamento diferenciado. Certamente, a já mencionada transação penal aplicada nos Juizados Especiais Criminais, é uma resposta do Estado diante da dificuldade de

173 AGUADO, Paz M. de la Cuesta. Un Derecho Penal en la frontera del caos. Revista da FMU, n. 1, 1997. 174 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. Martins Fontes: São Paulo, 2002, p. 18.

175 FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: natureza, finalidades e instrumentos. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 119.

manutenção de um sistema rígido de punição, considerando a reduzida potencialidade lesiva de determinados crimes. Por isso, o primeiro parâmetro pensado para estabelecer um limite de atuação para um sistema alternativo é a gravidade em abstrato dos delitos.

Não é por outra razão que, em todos os países da América Latina estudados, conforme analisaremos adiante, as técnicas alternativas de resolução de conflitos foram inicialmente testadas nos crimes de menor potencial. Assim, atualmente, esta é uma hipótese real para a análise de tais técnica.

Como a análise do crime, na perspectiva desenvolvida nesse trabalho, é ampla, permitindo a compreensão do conflito, interna e externamente, do ponto de vista conceitual não se pode estabelecer um limite para as técnicas alternativas tendo por parâmetro a gravidade em abstrato do delito.

Deve-se preocupar com as possibilidades reais de se estabelecer um diálogo entre as partes envolvidas no conflito. Ou seja, analisar os efeitos psicológicos que os diversos tipos de crimes causam nas pessoas é algo importante para propor soluções penais alternativas. Todavia, essa não é a pretensão desse trabalho.

Nesse momento, a compreensão exposta apenas serve para destacar que as possibilidades de alcance da mediação penal não podem ter como parâmetro de aplicação o

quantum de pena abstratamente previsto nas normas penais.

Nos termos desenvolvidos, é preciso que as hipóteses criminais de aplicação de uma política criminal, que utilize a mediação penal, sejam estabelecidas a partir dos tipos de bens jurídicos tutelados pela norma. Os bens que, uma vez violados, permitem uma conversa facilitada entre as partes, podendo estas ser representadas ou não pelos seus respectivos procuradores, devem ser restabelecidos por meio das técnicas de mediação.

Nesse sentido, genericamente, podem ser objeto de mediação penal os crimes: contra o patrimônio, contra a propriedade imaterial, contra a organização do trabalho, contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos, contra a família, contra a incolumidade pública, contra a paz pública e a fé pública, contra a administração, ambientais, contra a ordem tributária, de lavagem de dinheiro, contra as finanças públicas, contra as licitações, previstos na lei de improbidade administrativa, contra os portadores de deficiência, de preconceito, raça e cor, entre outros.

São poucas as hipóteses reais de disponibilidade no âmbito penal. O Ministério Público, titular da ação penal pública, que envolve a grande maioria dos crimes, excetuadas as hipóteses de transação já mencionadas, não pode deixar de perseguir o crime, quando presentes os indícios de autoria e materialidade delitivas. Esta não é a discussão central desse

trabalho. A proposta desenvolvida direciona-se ao tratamento diferenciado do crime e do criminoso e não à verificação imediata da aplicabilidade da mediação a cada tipo penal existente no ordenamento brasileiro.

Entende-se que a mediação é um instrumento que possibilita um melhor acesso à Justiça e, por isso, serão elaboradas proposições e críticas para viabilizar a implantação de um programa de mediação penal mais amplo e adequado à realidade brasileira, o qual denominamos de mediação penal não paralela.

Certamente, na medida em que forem sendo obtidas respostas concretas e desenvolvidas maiores pesquisas empíricas em torno da sua aplicação, será possível verificar os tipos penais que melhor se adéquam à proposta, afinal, as técnicas alternativas de resolução de conflitos no âmbito penal ainda são pouco desenvolvidas no Brasil.

Através dos programas de Justiça Restaurativa, a mediação penal pode proporcionar um maior entendimento entre as partes e a consequente e desejada pacificação social. É verdade que o entendimento entre as partes é algo que afeta as relações individuais, todavia, muitas vezes, a oportunidade do diálogo e compreensão das razões do outro, pode reduzir o risco de reincidência criminal, fortalecendo a função prospectiva de aplicação do direito penal, por meio do cumprimento da pena ou do acordo firmado.