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3 ACESSO À JUSTIÇA NO PROCEDIMENTO RESTAURATIVO: UM DIREITO FUNDAMENTAL

3.3 DEVIDO PROCESSO LEGAL E IMPLEMENTAÇÃO DA DIGNIDADE NA JUSTIÇA PENAL

3.3.2 Implicações penais para um melhor acesso

Não existe certeza de que por meio de uma sentença se resolve o conflito. O conflito, quando segue latente, mormente quando é possível que as partes possam continuar se relacionando de alguma maneira, poderá desencadear novos litígios.143 É o que ocorre, por exemplo, nos casos penais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher quando, muitas vezes, perdurando as possibilidades de relacionamento entre ofensor e vítima, levam a óbito.144

138 Cf. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Teoria processual da constituição. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 2000.

139 DANTAS, Ivo. Constituição e processo. Introdução ao direito processual constitucional. v. 1. Curitiba: Juruá, 2003, p. 120.

140 GUERRA FILHO, op. cit., p. 24.

141 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris , 1991, p. 14.

142 SOARES, op. cit., p. 152-154.

143 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso... op. cit, 2003, p. 104.

144 Pesquisas realizadas no Brasil demonstram que os feminicídios geralmente acontecem na esfera doméstica. Em cerca de 68,8% dos atendimentos a mulheres vítimas de violência, a agressão aconteceu na residência da vítima. Em pouco menos da metade dos casos, o perpetrador é o parceiro – ou ex-parceiro – da mulher. 42,5% do total de agressões contra a mulher enquadram-se nessa situação. Considerando a faixa dos 20 aos 49 anos, o número ultrapassa os 65%. Dentre 80 países pesquisados (a partir do sistema de estatísticas da OMS, o Brasil, com a taxa de 4,4 homicídios para cada 100 mil mulheres, ocupa a 7ª colocação entre os países com elevados níveis de feminicídio. Cf. Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: Os novos padrões da violência

Ganham importância mecanismos alternativos de resolução de conflitos que se afastam do clássico tratamento dispensado ao ofensor, na perspectiva de proporcionar a redução da violência, a qual, depois da ocorrência do crime, pode aumentar, no caso de não (r)estabelecimento do diálogo entre os envolvidos na contenda.

Tanto o autor do fato delituoso quanto a vítima se relacionam de forma direta ou indireta com o Estado, mas, no âmbito penal, as possibilidades de diálogo entre as partes são reduzidas, em virtude do tratamento que o sistema tradicional de resolução dispensa ao crime, dado que concentra a sua atuação na aplicação da penal.

Os mecanismos convencionais de tratamento dos ilícitos penais solucionam as causas, permitindo, inclusive, certa compreensão do ilícito praticado. Mas os resultados obtidos com a aplicação do sistema tradicional são insatisfatórios, na medida em que tal sistema, em regra, despreza a discussão das razões não processuais e não jurídicas da origem do conflito.

Enquanto, no âmbito civil, fala-se comumente em restabelecimento do equilíbrio jurídico, reversão em perdas em danos etc; no âmbito penal, o Estado, na maioria dos casos, utiliza-se do seu poder punitivo para aplicar a pena, com uma postura direcionada para o fato passado, o crime, e para o criminoso. Existem poucas possibilidades de negociação penal previstas na legislação pátria. A mais convencional está expressa na Lei 9.099/95, que possibilita a transação penal nas contravenções e nas hipóteses envolvendo os crimes de menor potencial ofensivo.

Não se poder afirmar a inexistência de tratamento do conflito dentro do modelo clássico de resolução adotado no Brasil. Mas, as técnicas convencionais não estão voltadas para esse fim, e, sim, para a aplicação da lei ao fato tipificado como crime. Não existe, por exemplo, uma preocupação central com o restabelecimento das vítimas, nem com a discussão mais profunda dos conflitos. Com isso, pensa-se em uma solução penal que possa não só aplicar a lei, mas, também, tratar das relações que circundam o fato delituoso.

Depois da sentença penal condenatória, constituído o título executivo judicial, é viável, no ordenamento brasileiro, o ressarcimento dos danos causados às vítimas, nos âmbitos material e moral. Esta pretensão é manejada por meio da ação civil ex delito e tem por objetivo responsabilizar o autor do crime ou o responsável penal, nos termos da lei, pelos danos causados à vítima.

Apesar de não ser objeto do nosso estudo, essa hipótese de reparação é valida, mas prima, quase sempre, pela recomposição patrimonial, reduzindo as possibilidades de diálogo

homicida no Brasil. Caderno Complementar 1 - Homicídio de Mulheres no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2011, p. 17.

entre o ofensor e o ofendido, o que pode ser viabilizado com a técnica alternativa da mediação penal.

Observa-se, neste ponto, o que Selma Santana intitulou de “O redescobrimento da vítima.”145 Antes do surgimento do Direito Penal, a vítima se encontrava situada no centro dos interesses dos sistemas primitivos de justiça, fundado essencialmente na vingança privada.

Com a tomada do poder para a solução de conflitos pelo Estado, a vítima caiu no esquecimento. A noção de bem jurídico trouxe uma objetivação da figura da vítima, “deixando ela de ser sujeito sobre o qual recairia a ação delitiva que sofreria a conduta delituosa, e passando a ser o sujeito portador de um valor.”146

A ideologia da prevenção especial, voltada à ressocialização do delinquente, fez consolidar um Direito Penal dirigido ao autor do crime. Como reação a esse esquecimento, a vitimodogmática visa analisar até que ponto pode tomar-se em consideração o comportamento da vítima, durante o fato delitivo, para determinar o grau de responsabilidade em que há de incorrer o autor do evento.147

Pelo “princípio da auto responsabilidade da vítima”, caso a mesma, por iniciativa própria, renuncie ao uso das medidas de proteção de que dispõe, e, portanto, abandone o bem jurídico, o autor do delito deverá ser eximido de sua responsabilidade penal.148

O sistema de resolução de conflitos vigente declara “guerra ao crime”. Tal comportamento reaviva o sentimento de vingança extirpado outrora pelo próprio Estado, quando tomou para si o poder de solucionar os conflitos. A partir de tal perspectiva não se contribui para a erradicação do crime. Colabora-se para a união dos membros da sociedade na tentativa de responder à maldade causada. Crime e pena passam a ser fatores de coesão social.149

145 SANTANA, 2010a, op. cit, p. 17-19. 146 Idem, ibidem, p. 17-19.

147 Idem, ibidem, p. 17-19. 148 Idem, ibidem, p. 17-19. 149 SICA, op. cit., p. 41.