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4 DO CONFLITO À MEDIAÇÃO PENAL

4.4 POSSÍVEIS RESPOSTAS AOS CRÍTICOS DO SISTEMA ALTERNATIVO

4.4.1 Breve diálogo com Owen Fiss

Owen Fiss é um dos principais críticos do sistema alternativo de resolução de conflitos. Na década de 80, quando debatia com Derek Bok, na conferência intitulada “Against Settlement” (Contra o Acordo), afirmou que a função do Poder Judiciário vai além da simples resolução dos conflitos, pois possui ampla dimensão social. As possibilidades de acordo seriam uma alternativa imposta pela sociedade de massas e não poderia ser alentada nem elogiada.302

De maneira diametralmente oposta, Derek pensava na possibilidade de preparação dos futuros advogados, tendo em vista as possibilidades de implementação das técnicas de reconciliação e acordo. Na sua concepção, aqueles profissionais que não fossem capazes de absorver as novas técnicas estariam à margem de um dos movimentos sociais mais criativos da contemporaneidade303.

Gladys Stella Álvarez304 tenta responder às críticas desenvolvidas por Fiss.

A primeira dificuldade às técnicas alternativas, apontada por Fiss, é a discrepância de poderes entre as partes envolvidas no conflito. Para o autor, diante das diferentes condições econômicas e da consequente impossibilidade de esperar a solução na via judicial, a técnica alternativa se tornaria uma válvula de escape não necessariamente justa.

Sem negar essa realidade, Gladys305 afirma que uma das principais funções do mediador é, justamente, balancear essa diferença de poder entre as partes. Quando não é

302 FREEMAN, Michael. Alternative dispute resolucion. New York: New York University Press, 1995, p. 1073-1090.

303 SINGER, Linda R. Conflict in business, families and the legal system. In: Settling disputes. Boulder, Colorado: Westviem Press Inc., 1990, p. 180-181.

possível esse equilíbrio a via judicial não fica comprometida. De todo modo, é também uma ficção imaginar que o sistema tradicional de resolução de conflitos garantirá o equilíbrio entre os poderes das partes. A “igualdade perante a lei” certamente será melhor utilizada por aquele que conseguir pagar um melhor advogado.

Na seara penal, essa disparidade de poder é ainda mais evidente, considerando que a maior parcela de acusados pela prática de crimes no Poder Judiciário, no Brasil, conforme dados já evidenciados306, é a população de baixa renda, a qual conta, invariavelmente, com a defesa realizada pela Defensoria Pública que, apesar de estar se desenvolvendo, cada dia mais, ainda possui uma estrutura deficitária, poucos defensores para muitos processos e condições materiais insuficientes.

Nesse ponto, não se pode deixar de destacar que: a implementação de programas voltados à construção de um aparato alternativo de resolução de conflitos integrado ao Poder Judiciário não implica na desnecessidade de melhoria do sistema tradicional. De todo modo, compreende-se que a possibilidade de equalização de poderes proporcionada por meio das técnicas de mediação implica em um efetivo acesso à Justiça307.

Outro impedimento elucidado por Fiss é a ausência de um legítimo consentimento, principalmente, quando estão envolvidas pessoas jurídicas e organizações. A vontade de uma pessoa jurídica é uma ficção.308 Ademais, no contexto norte-americano, o acordo só tem valor de contrato, dependendo de outras etapas para valer como decisão.

Respondendo a esse problema, entende Gladys que tais questões são facilmente resolvidas por meio de novas previsões normativas. Aponta, exemplificando, a criação, na Argentina, da Lei nº. 24.573 de 4/10/1995, a qual dispõe em seu artigo 12 que os resultados da mediação devem ser informados ao Ministério da Justiça e que, havendo descumprimento do acordo, é possível a utilização dos procedimentos de execução de sentença regulados nos

305 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia... op. cit.,, p. 108. 306 Vide Seção 2.

307 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia... op. cit., p. 108.

308 No que se refere à vontade atribuída à pessoa jurídica, não se poderia deixar de mencionar os esforços doutrinários na construção de teorias que permitam aplicar de maneira efetiva a responsabilização penal da pessoa jurídica. Nesse sentido, destaca-se o modelo teórico de David Baigún, conhecido como “Teoria da Ação Institucional”, que explica a conduta de uma pessoa jurídica como sendo uma “ação institucional”. A partir de uma perspectiva funcionalista, é possível adequar a teoria do delito à responsabilização dos entes coletivos. Para a identificação de uma ação institucional são necessários três elementos: 1) regulação normativa; 2) plano organizacional e 3) interesse econômico. Dialoga com essa perpectiva, a compreensão desenvolvida por Dirk Baecker, para quem o controle é um ato institucional é o controle de um ato de comunicação. Se a comunicação da entidade coletiva possui êxito ela pode e deve ser controlada. Nesse sentido, não haveria sentido para a não responsabilização penal da pessoa jurídica. Cf. BAECKER, Dirk. Por quê uma teoria de sistemas? In: Teoría de

sistemas y derecho penal. Coord. Carlos Gómes-Jara Díez. Lima: ARA, 2007; BAIGÚN, D. La responsabilidad penal de las personas jurídicas (Ensayo de um nuevo modelo teórico). Buenos Aires:

códigos respectivos. Destaca, por fim, que a grande vantagem do procedimento alternativo está na aplicação da técnica, pois compreende que é mais importante a forma como se aprende do que o que efetivamente se aprende.309

4.4.2 Breve diálogo com Ricardo Alberto Guibourg

Guibourg310 entende que a resolução alternativa de conflitos aplica-se, apenas, ao direito civil, não se aplica ao direito do trabalho ou ao penal, ramos em que se contrasta, quase sempre, com o princípio da indisponibilidade. Para o Autor, apenas a interferência do Estado permitiria um embate legítimo de poderes nessas esferas.

Rebatendo a ideia mencionada, Gladys S. Álvarez311 obtempera que a voluntariedade é um elemento que pode ser verificado em qualquer ramo do direito. Seria possível, para evitar qualquer desvio a direitos considerados indisponíveis, uma revisão e homologação judicial do acordo firmado, em um segundo momento.

O argentino Ricardo A. Guibourg312 chega a afirmar que seria uma utopia ou um “paraíso anárquico” se os acordos pudessem ser travados sem qualquer manifestação heterônoma.

Apesar das contribuições do autor, a Argentina revela grande sucesso na implantação de programas alternativos de resolução de conflitos, mormente nos casos envolvendo menores infratores. Os projetos implementados, diferente da acepção de Guibourg, não pressupõem qualquer paradigma anarquista, abolicionista ou de despenalização, mas visam à reparação do dano do ponto de vista individual e da comunidade envolvida, o que vem sendo incorporado em diversos países da América e da Europa.313

Atreladas à ideia da indisponibilidade surgem outras críticas que precisam ser analisadas.

Sustenta-se que a implementação da Justiça Restaurativa no âmbito penal é um desvio do devido processo, argumento rebatido na terceira seção desse trabalho, ao dispor das

309 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia... op. cit., p. 109-110.

310 ÁLVAREZ , Gladys S.; GUIBOURG, Ricardo A.. Filosofía de la solución de controvérsias. UBA - Derecho

al dia, año X, edición nº 178, 30 jun 2011. Disponível em: <http://www.derecho.uba.ar/

derechoaldia/tapa/filosofia-de-la-solucion-de-controversias/+3919>. Acesso em 17 jul. de 2014. 311 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia... op. cit., p. 110-111.

312 GUIBOURG, Ricardo A. Negociación, conflicto y justicia. Disponível em: <http://www.eldial.com/>. Acesso em 17 jul. de 2014.

313 Cf. KEMELMAJER DE CARLUCCI, AÍDA. Justicia Restaurativa: posible respuesta para el delito cometido por personas menores de edad. 1 ed. Santa Fe: Rubinzal/Culzoni, 2004.

vantagens do procedimento restaurativo para o processo, mormente no que se refere à celeridade e efetividade das decisões.

Afirma-se, ainda, que, quando se afasta a indisponibilidade, há um retorno à vingança privada. Muito ao contrário, a efetivação de técnicas alternativas recupera valores culturais perdidos e fortalece a cooperação social, aumentando as possibilidades de resolução pacífica do conflito, podendo proporcionar um melhor tratamento às vítimas e ofensores, inclusive com a participação em programas sociais de assistência314.

Sustenta-se, ademais, que a perda da indisponibilidade pode proporcionar a privatização do Direito Penal. De forma diametralmente oposta, conforme se propõe nesse estudo, quando se aplica a Justiça Restaurativa integrada aos serviços judiciais, há maior fortalecimento do Poder Judiciário e controle das atividades desenvolvidas pelos mediadores. Do mesmo modo, a participação da população nos processos de resolução de conflitos auxilia na concretização da cidadania, fazendo efetivar princípios e regras constitucionais. Não há que se falar em privatização, pois os acordos firmados na proposta apresentada devem ser sempre homologados pela autoridade judicial. E, em nenhum momento, deixa de valer o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Não se pode ainda sustentar que a Justiça Restaurativa vai abrandar a situação dos infratores, pois as críticas em relação á impunidade e morosidade são direcionadas ao sistema vigente. A Justiça Restaurativa pretende ultrapassar essas barreiras.

Apesar de o direito penal proteger os valores considerados essenciais por uma comunidade, sendo o Estado o representante dessa comunidade, a proposta desenvolvida está fincada nos mecanismos utilizados para punir, buscando-se uma maior aproximação do conflito e dos dramas concretos daqueles que nele estão envolvidos315. Nesse sentido, o cerne da aplicação da Justiça Restaurativa não está na disponibilidade ou não do bem que está sendo discutido, mas nos mecanismos adequados para o tratamento do problema penal.

Por conseguinte, tratar-se-á a seguir da Justiça Restaurativa e da proposta de mediação penal não paralela, com os contornos que se entendem necessários à aplicabilidade dessa técnica alternativa de resolução de conflitos na realidade brasileira.

314 MORRIS, Allison; YOUNG, Warren. Reforming Criminal Justice: The Potential of Restorative Justice. In: STRANG, H.; BRAITHWAITE J. (Org.). Restorative Justice: Philosophy and Practice. Estados Unidos/ Dartmouth: Ashgate, 2001, p. 11-31.

315 SANTOS, Claudia Cruz. A Justiça Restaurativa. Um modelo de reação ao crime diferente da Justiça Penal. Por quê, para quê e como? Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 465.

5 DO PROCEDIMENTO RESTAURATIVO À MEDIAÇÃO PENAL NÃO