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4 DO CONFLITO À MEDIAÇÃO PENAL

4.2 RAZÕES PARA A APLICAÇÃO DA PENA

Diante do conflito, tradicionalmente, é comum a identificação de um culpado, o responsável ou melhor direcionado à autoria do fato instituído como crime. A pena surge como castigo pela culpa na ocorrência social indesejada. Na verdade, é o instrumento mais enérgico para assegurar a convivência pacífica dos cidadãos em sociedade, tangenciando a sua liberdade, segurança e dignidade.

A discussão acerca dos fins da pena é tão antiga quanto a própria história do Direito Penal. Isso ocorre, certamente, porque, por trás da discussão em torno dos fins da pena, toda a teoria do Direito Penal pode ser rediscutida, particularmente, questões fulcrais acerca da legitimação, fundamentação e função da intervenção penal estatal.214

Para Selma Santana, as respostas dadas ao longo de muitos séculos ao problema dos fins das penas reduzem-se a duas teorias fundamentais. De um lado, verificam-se as teorias que consideram o mal ou a conduta criminosa cometida, como uma referência ao passado; de outro, as teorias que levam em consideração as finalidades e efeitos da pena, estando, por essa razão, voltadas para o futuro.215

214 SANTANA, 2010 a, op. cit., p. 221. 215 Idem, ibidem, p, 221-122.

Nesse sentido, explica a mesma autora, fala-se em teorias absolutas, ou da retribuição, que compreendem a pena como um fim em si mesmo, desprestigiando qualquer outra finalidade ou efeito que ela possa perseguir; e em teorias relativas, ou da prevenção, que entendem que a pena só pode ser aplicada se atender aos fins a que se destina. Para as teorias absolutas, a essência da pena criminal reside na expiação, retribuição, reparação ou compensação do mal do crime. Foi preciso, portanto discutir, “como deveria proceder-se a essa ‘equiparação’ entre o ‘mal cometido pelo agente’ e o mal da pena.” O mérito das teorias absolutas reside no fato de ter tais teorias erigido “o princípio da culpabilidade em princípio absoluto de toda a aplicação da pena e, desse modo, ter levantado um limite incondicional à aplicação de uma pena criminal que viole a iminente dignidade da pessoa.” 216

Fala-se ainda na ideia de retribuição relativa, uma flexibilização para verificar que a pena não é em si um fim absoluto. A pena retributiva tem de ser “capaz de satisfazer à exigência social de punição e de consolidar a vigência dos preceitos normativos.”217

Diante do fenômeno da globalização, visto que a criminalidade deixa de situar-se à margem da sociedade, espalhando-se por todo lado, a política criminal pode restar reduzida a uma política de segurança. Com a mistura de dois tipos de criminalidade, a organizada e a de massa, a luta contra a criminalidade grave tem justificado, erroneamente, um endurecimento cego e generalizado da punição. Tal perspectiva deturpa o conceito de justiça que deve se distanciar da noção arcaica e de cunho religioso de que o sofrimento e o castigo redimem todos os males e pecados sociais.218

216 SANTANA, 2010 a, op. cit., p. 222-223. 217 Idem, ibidem, p, 223-224.

218 Esta é uma concepção ainda muito adotada pelos autores adeptos da pena de morte. Platão (Livro IX) chegou a afirmar que se ficar demonstrado que o delinquente é incurável, a pena de morte para ele será o menor dos males. O homicídio voluntário na sua concepção deve ser penalizado com a morte (doutrina da reciprocidade). A pena de morte seria, assim, natural.218 Rechaçando essa concepção puramente naturalista, explica Bobbio218 que a pena de morte é um homicídio legal – expressão máxima do poder do Estado. Por isso, é preciso haver tolerância. A razão da tolerância reside no fato de que, nas comunidades laicas e pluralistas, o poder ideológico não está concentrado, mas disperso na sociedade. A pena de morte foi tradicionalmente a rainha das penas. Expressão de vingança, justiça, segurança (expressão de concepção orgânica da sociedade – o todo acima das partes). Neste sentido, a pena expõe uma função retributiva. Com o contratualismo e a concepção individualista do Estado, Beccaria afirma a pena não é retributiva, mas utilitária-intimidatória. A pena tem de ser útil e necessária. Assim, a pena de morte não pode ser justificada pelo estado de necessidade e pela legítima defesa. O Estado tem outras alternativas. O mandamento de não matar (exclusão da pena de morte) é um progresso moral, principalmente se for considerado o fato de que a opinião pública muda em conformidade com a maior ou menor tranquilidade social. Assim, existe uma relação resistência/obediência (ato prático) x contestação/aceitação (ato crítico), proporcionando uma necessidade de tolerância, que precisa ser: 1) argumentada - como cálculo político, levando a uma convivência pacífica e a não imposição de uma verdade; 2) justificada – como método de persuadir, que confia na razão e razoabilidade do outro; 3) sustentada – pelo respeito moral pelo outro (por isso a tolerância é eticamente devida); e 4) apreciada – como verdade concebida como não sendo una, mas múltipla. (BOBBIO, op. cit., p. XIV a XVII et p. 147).

Enquanto em outros ramos do direito verifica-se uma deslegalização e desconstitucionalização; no âmbito do ordenamento penal interno ocorre uma situação exatamente oposta. É cada vez mais extenso o rol de tipos penais, o que vem acompanhado de enfraquecimento do princípio da legalidade, com a utilização de conceitos imprecisos, e de ampliação do rigor das penas, “como se essas medidas tivessem força para coibir da delinquência os excluídos do sistema globalizado”219.

Mesmo a implementação das penas alternativas, que trouxeram uma esperança à efetivação social do sistema penal vigente, vem demonstrando o aumento das prisões após a sua implantação. Tal perspectiva decorre da deturpada visão de que a pena deve ser aplicada como retribuição ao mal cometido220.

Ainda que não exista uma proposta legislativa ampla de alteração do sistema penal, a partir da reflexão em torno da função da pena no Estado Constitucional, é possível propor um modelo alternativo de solução de conflitos que possa ser integrado aos procedimentos penais vigentes221, proporcionando soluções com maior efetividade e abrangência social.

Conforme delineia Francisco Amado Ferreira, sem esquecer as variações nas margens de tolerância social a determinados comportamentos, “a implementação de uma cultura de Justiça Restaurativa pode contribuir para que, cada vez mais, se considere a inutilidade da penalização de certos tipos de condutas tipificadas”, como crimes tradicionais contra o patrimônio, a integridade física, a honra e a privacidade. 222

Todavia, não se deve esconder os riscos de uma descriminalização, considerando as já existentes cifras negras, não se podendo desvalorizar as condutas na seara penal. Por isso “a opção aleita terá de operar, fundamentalmente, ao nível das mentalidades, pugnando por uma progressiva aceitação e preferência comunitária por mecanismos não punitivos de justiça.” A partir dessa compreensão, a Justiça Restaurativa não substitui o Direito Penal, mas o complementa.223

Contrária à perspectiva desse trabalho, há o argumento de que, no sistema penal brasileiro, há uma grande impunidade, que os sujeitos ativos dos crimes, em pouco tempo, cumprindo um sexto da pena nos crimes não hediondos e dois quintos da pena nos crimes hediondos, já possuem o direito de progredir de regime, o que causa uma sensação social de impunidade generalizada.

219 BOBBIO, op. cit., p. 7 220 SICA, op. cit., p. 9. 221 Idem, ibidem, p. 5-6. 222 FERREIRA, op. cit, p. 107. 223 Idem, ibidem, p. 107.

Argumenta-se, ainda, que a morosidade da justiça auxilia na prescrição de muitos crimes e que os sistemas penitenciários viabilizam o acesso à educação e ao convício social gradativo.

Propor uma solução penal mais branda, diante desse contexto, pode parecer desproporcional. Todavia, a ideia fundante do trabalho resvala justamente na necessidade de uma nova visão acerca do crime e do criminoso. Em vez da solução penal que aplica a pena, resposta necessária em casos mais graves e da qual não se discorda, propõe-se o tratamento do conflito, sempre que for viável esta possibilidade.

Pode-se pensar que o conflito é um problema dos indivíduos, que a solução jurídica deve distanciar-se dessa perspectiva. Entende-se, de maneira diferente, numa visão prospectiva, que o tratamento dos problemas penais deve, na máxima medida possível, impedir a ocorrência de novas contendas de natureza penal.

Certamente, tal proposição envolve uma complexidade que não se tem condições de desvelar no estágio atual do desenvolvimento de programas dessa natureza no Brasil. Assim, o tratamento da matéria dependerá do tipo de crime, do contexto e das circunstâncias em que os delitos ocorrem.