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4 DO CONFLITO À MEDIAÇÃO PENAL

4.1 A ORIGEM DO CONFLITO E A LUTA PELO PODER

4.1.1 Diversas visões acerca do conflito

Os estudos acerca do conflito ganharam força nas últimas décadas, principalmente, em razão das problemáticas internacionais envolvendo a paz e a guerra. Mary Parker Follet, em 1888, com o trabalho “Society for Collegiate Instruction of Women” (Sociedade para a Instrução Universitária de Mulheres), escrito uma década antes de as mulheres desfrutarem dos benefícios da Universidade de Harvard, foi pioneira na discussão do tema, onde pela primeira vez, buscaram-se soluções alternativas para resolver situações de conflito. Suas ideias, desenvolvidas a partir de um estudo pioneiro em empresas, comunidades e escolas, auxiliou na construção dos princípios para a negociação integrativa.183

Atualmente, diversos âmbitos científicos estudam o tema, que se destaca na psicologia social, na antropologia, na teoria da comunicação, na sociologia, e nas teorias envolvendo cooperação, análise econômica do direito e administração da Justiça.

O conflito existe, desde que o mundo é mundo; é natural ao homem e aos grupos que integra. Nasce com a convivência comunitária e está intimamente relacionado com o desenvolvimento das sociedades humanas. Não é positivo nem negativo, mas afeta todas as pessoas em todos os âmbitos, relacionando-se com as comunidades e suas diversidades culturais184.

O problema não reside na sua identificação inata, mas nos mecanismos necessários para a resolução adequada dos conflitos. Nesse sentido, explica Roberto Bianchi185 que, quando há luta, cada uma das partes envolvida, pode perder o controle sobre si mesma, levando a um descontrole mútuo, o qual pode ensejar uma agressão, uma represália, outras formas de violência e exclusão e, em muitos casos, à supressão física, ao extermínio da outra parte.

Os conflitos, também, estão imersos às características culturais, não sendo possível separar a comunicação da cultura. Assim, a linguagem verbal precisa ser interpretada em conformidade com os parâmetros de comunicação escrita e oral (elementos de identificação

182 Vide Seção 5.

183 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia... op. cit., p. 49-50. 184 Idem, ibidem, p. 51

das diversidades culturais)186. A cultura afeta os conflitos de diversos modos, tanto na forma de enxergá-los, como na forma de conduzi-los e resolvê-los187, o que deve ser reanalisado ao longo do tempo, pois a cultura vai também mudando com as mudanças geográficas e as necessidades e interesses básicos do homem188. Conhecer tais variações é essencial a fim de eleger o procedimento adequado para a resolução do conflito.

Nesse aspecto, é importante observar que, para determinadas culturas, como a oriental, mormente na China, a bondade de uma pessoa pode ser medida, em parte, pela sua capacidade de evitar conflitos e de não ferir os sentimentos dos outros. Os coreanos, por sua vez, entendem o conflito não só como um problema de comunicação, mas também de falta de respeito189.

Nas sociedades ocidentais, o conflito é discutido de maneira mais aberta e honesta, apesar de carregar a mácula de ser compreendido como algo negativo, que decorre de uma luta, de um combate, de uma batalha, visão que dificulta o seu tratamento. Por isso, é necessário reconhecer os aspectos positivos presentes nas situações de conflito190.

Na concepção de Julien Freund191, o conflito pode se resolver por meio do discurso (violência indireta ou psicológica) ou por meio da força física (violência direta). Em qualquer hipótese, não há amizade entre as partes conflitantes, um sempre quer prevalecer sobre o outro, sendo, portanto, adversários, inimigos. Quando duas pessoas pretendem assumir a mesma posição e não compreendem que pode haver espaço para ambas, forma-se o conflito192.

Mas o conflito envolve, também, um processo dinâmico em que os movimentos de uma parte afetam os movimentos da outra de forma sucessiva, razão pela qual há um “ciclo de vida” para o conflito – ele nasce, dura por determinado tempo e tende a desaparecer sem qualquer intervenção. Às vezes, a sua duração é muito longa, como nos conflitos religiosos.193

186 BOSISOFF, Deborah; VICTOR, David A. Gestión de Conflitos. Um enfoque de las técnicas de la

comunicacíon. Madrid, Espanha: Ediciones Díaz de Santos, 1991, p. 144-145.

187 FOLGER, Joseph P.; TAYLOR, Alison. A comprehensive guide to resolving conflicts without litigation. San Francisco, Estados Unidos: Jossey-Bass Publishers, 1984.

188 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia....op. cit, p. 52-53.

189 FOLGER, Joseph P.; JONES, Tricia S. New directions in mediation. Comunicacion, research and perspectives. Thousand Oaks, Londres: Sage Publications, 1994, p. 197.

190 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso ....op. cit., p. 54.

191 FREUND, J. La guerra nelle società moderne. Cosenza: Marco Editore. 2007. p. 7. 192 VEZZULA, op. cit., p. 21.

O conflito, assim como o estrangeiro, pode ser acolhido com hostilidade ou com hospitalidade. A tentativa de solução por meio da hostilidade é algo natural do homem, porém, não modificado pela essência do humano194.

Na concepção de Muller195, a aceitação do conflito permite o reconhecimento de si e do outro, o que proporciona o equilíbrio entre direitos dentro de uma mesma comunidade ou perante comunidades distintas.

Antes de ser um traço marcante das relações interpessoais, o conflito é, na verdade, uma necessidade para a manutenção e união do grupo, revela a interação entre os membros da sociedade, sendo algo natural e compreensível196.

Numa perspectiva positiva, o conflito implica em uma crise, mas, ao mesmo tempo, em uma oportunidade para mudar e decidir. Além disso, pode também implicar em uma boa chance para o autoconhecimento, ajudando na compreensão das diferenças entre as pessoas e na construção de uma identidade pessoal e grupal, definindo limites internos e externos. Nesse sentido, às vezes o conflito pode ser agradável e emocionante. Trata-se, portanto, de uma experiência negativa e positiva197.

Ainda assim, existem limites socialmente aceitos para o conflito. Caso o mesmo enseje uma postura vingativa e violenta por parte do particular, é necessária a utilização de instrumentos de solução que viabilizem o reequilíbrio da convivência em sociedade198.

As decisões judiciais tradicionais produzem, habitualmente, soluções de “soma zero” – as garantias e benefícios que uma parte obtém coincidem com as perdas e prejuízos que sofrem a outra parte (ex.: + 3 de A - 3 de B = 0). É frequente observar, ainda, que, ao longo do processo convencional o conflito tende a aumentar em escalas. O comportamento de uma das partes acaba por reforçar a hostilidade da outra; ou seja, à disputa originária agregam-se

194 “O conflito está na natureza dos homens, mas quando esta ainda não está transformada pela marca do humano. [...] o homem não deve estabelecer uma relação de hostilidade, onde cada um é inimigo do outro, mas deve querer estabelecer com ele uma relação de hospitalidade, onde cada um é hóspede do outro. É significativo que os termos hostilidade e hospitalidade pertençam à mesma família etimológica: originalmente, as palavras latinas hostes e hospes designam ambas o estrangeiro. Este, com efeito, pode ser excluído como um inimigo ou acolhido como um hóspede” (MULLER, Jean-Marie. Não-violência na educação. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2006, p. 19).

195 Idem, ibidem, p. 18.

196 MORAIS, José Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e Arbitragem: alternativas à

jurisdição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 53.

197 ÁLVAREZ, Gladys Stella. La mediación e el accesso a justicia...op. cit., p. 54-56.

198 DEUTSCH, Morton. A Resolução do Conflito: processos construtivos e destrutivos. Tradução de Arthur Coimbra de Oliveira. In: AZEVEDO, André Goma de (Org.). Estudos em Arbitragem, Mediação e

outras. As partes se tornam adversárias e importa a cada uma delas não se deixar vencer pelas táticas utilizadas pela outra. 199

As normas processuais tradicionais, geralmente, impõem ao juiz que, em regra, decida conforme as provas apresentadas e interpretadas segundo os ditames legais200.

Contra a reação violenta é preciso estabelecer mecanismos de solução de conflitos que viabilizem a paz social, sem necessariamente utilizar o poder estatal, mas valorizando a noção de pertencimento social e de solução por meio do diálogo. Logo, identificar alternativas para a solução de conflitos na sociedade é viabilizar o tratamento do problema sem violência. A não utilização da violência denota maturidade e paciência, o remédio contra uma ação precipitada, imatura, veloz201.

A paz é um ditame kantiano da razão para superar a social insociabilidade humana. Para que haja paz é preciso, na perspectiva dos governados, a promoção dos direitos humanos, além de uma governança democrática (passagem do reino da violência para a não violência).202

Existe, portanto, uma corresponsabilidade entre a sociedade e o Estado no sentido de proporcionar um espaço de pacificação social dinâmico e consciente, conduzindo à necessidade de humanização do sistema penal brasileiro, o que pode ser verificado por meio da mediação203.

Tal corresponsabilidade implica no dever de implementação de políticas públicas, incluindo infraestrutura e pessoal especializado, para a reorganização do Poder Judiciário, ofertando ao cidadão a possibilidade de resolver o seu conflito por meio de técnicas alternativas, antes da implementação do processo judicial tradicional.