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SOBRE A CIDADE DE GENEBRA: ENTRE A CATEDRAL DE SAINT-PIERRE E

Em Genebra, no horizonte do debate sobre o teatro, havia um conflito político em relação ao qual a posição de Rousseau precisa ser alinhada. Louvada como uma República de homens livres, a situação política genebrina tinha nuances importantes que escapam à compreensão do filósofo no fim dos anos cinquenta, antes da redação das Cartas escritas da Montanha, período em que se dedicou ao estudo da história da cidade e de sua constituição.

Nomear-se como ‘cidadão’ em Genebra não era para qualquer pessoa. Era preciso preencher dois requisitos indispensáveis, o primeiro ser homem e o segundo ter nascido de pais genebrinos. Ser cidadão em Genebra significava, portanto, participar de uma minoria da população total, era compor um dos mil e quinhentos cidadãos entre cerca de dezoito mil habitantes50. Ser cidadão era,

enfim, ter direitos civis e políticos, acesso às profissões exercidas e elegibilidade às principais magistraturas.

concordavam com a ideia de inferno e punição eterna, na santidade de Jesus e em dogmas que confrontassem a razão). Os pastores genebrinos ficaram imensamente ofendidos por serem tratados como participantes de uma seita e chegaram mesmo a pedir retratação formal do governo francês. Os editores se viram alvo de censura a ponto de d’Alembert abandonar o projeto enciclopédico. Sobre os problemas enfrentados por Diderot e d’Alembert em 1758, ver o artigo de Jean Fabre (1961, p. 179) e o capítulo 21, Rising opposition; d’Alembert’s blunder in Volume VII, do livro de Arthur Wilson (1957, pp. 275-290).

101 O ponto para o qual gostaria de chamar atenção é o fato de que entre os genebrinos do século XVIII havia uma divisão social e política responsável por uma rivalidade insistente da qual Rousseau participou51. De maneira

esquemática, podemos dizer que entre os cidadãos havia uma tensão que separava, de um lado, os patrícios compostos por famílias de origem francesa e italiana, muitos da aristocracia que se refugiaram em Genebra buscando segurança em meio à perseguição sofrida pelos protestantes no século XVI. Eles eram os detentores do poder político, pois dominavam a administração estatal52.

Do outro lado dessa divisão político-social havia a ‘gente de baixo’, ou seja, burgueses, compostos por comerciantes e artesãos, grupo ligado fortemente à tradição local.

A separação entre esses dois grupos também se dava do ponto de vista geográfico. Como diz Raymond Trousson, em sua biografia sobre Rousseau, “O patriciado ocupa a cidade alta, em torno da catedral de Saint-Pierre; os burgueses, a cidade baixa, no bairro de Saint-Gervais”. (TROUSSON, 2011, p.

51 Nota histórica: sobre o contexto político genebrino no século XVIII e sua relação com o pensamento de

Rousseau, recomendo a leitura da primeira parte do livro de John Stephenson Spink, Jean-Jacques

Rousseau et Genève, de 1934. Ver também a Introdução à Carta a d’Alembert de Michel Launay, que faz

referência direta ao estudo de John S. Spink: “A cidade de Genebra estava dividida socialmente,

politicamente e mesmo geograficamente em duas: a ‘cidade alta’ e a ‘cidade baixa’. A primeira era o domínio da ‘gente do alto’, do ‘andar alto’, os membros do Pequeno Conselho ou ‘Conselho dos Vinte e Cinco’ e faziam parte do ‘Conselho dos Duzentos’ que não ousavam confessar, estando em uma República, suas intenções aristocráticas inventaram ou retomaram por sua conta a teoria da ‘aristo-democracia’ [...]

(LAUNAY, 1967, p. 24). Michel Launay ainda mostra como essa disputa política em Genebra, responsável por mais de um conflito armado, estava ligada a uma querela sobre o teatro. Bernard Gagnebin também enxerga dessa maneira quando afirma na sua Introdução à Carta a d’Alembert que “[...] ao mesmo tempo,

o cidadão [Rousseau] intervém, com conhecimento de causa, em uma luta bem real, que opõe em Genebra o partido popular e tradicionalista ao patriciado afrancesado e cosmopolita que governa a ‘pequeníssima República’: o ‘baixo’ e o ‘alto’, o artesanato e o poder [...] Ora, é em meio a esse patriciado, que desde o século XVII monopoliza, a despeito dos éditos, os órgãos do governo que se recrutam partidários de um teatro estável regularmente admitido na cidade.” (ROUSSEAU, 1995, t. V, p. XXXI).

52 Nota histórica: sobre a estrutura política de Genebra, havia na cidade três Conselhos principais,

formados por subgrupos de cidadãos. O Conselho Geral, composto por todos que tinham direito à cidadania, o Conselho dos duzentos e, por fim, o Pequeno Conselho, composto por vinte e cinco pessoas. Era o Pequeno Conselho que decidia as questões importantes em relação à cidade e que, além disso, oferecia oito candidatos à magistratura, com funções judiciárias, para que o Conselho Geral decidisse em votação por quatro deles. Como os vinte e cinco participantes do Pequeno Conselho eram retirados entre os membros do Conselho dos duzentos, e estes, por sua vez, eram admitidos pelo Pequeno Conselho, uma estrutura como essa fazia de Genebra uma aristocracia, dominada por algumas famílias, mas com algumas características entendidas como democráticas. Como diz John S. Spink: “No início do século XVIII

podia-se reconhecer em Genebra três classes distintas: um patriciado, que se reservava todas as funções do Estado, uma classe de ‘cidadãos burgueses’, que detinham o direito de cidadania, mas que eram excluídos da magistratura, e uma classe de nativos e habitantes, trabalhadores braçais em sua maior parte, que não tinham nenhum direito político”. (SPINK, 1934, p. 9).

102 10). Quando faz menção à ‘gente do alto’, portanto, Rousseau faz referência aos patrícios. Vejamos mais claramente como esse panorama nos ajuda a entender a ligação entre política e teatro na Genebra do século XVIII. Os patrícios ou gente do alto eram mais afeitos à moda parisiense e aceitavam de bom grado a possibilidade da implantação de uma companhia de comédia francesa na cidade, enquanto os burgueses, gente de baixo, eram contrários a essa ideia, pois resistiam à influência dos seus vizinhos francófonos, apegados resolutamente à tradição calvinista. Voltemos ao relato das Confissões. Pois bem, se acreditarmos em Rousseau, isto é, se havia um acordo entre os enciclopedistas e a gente do alto isso parece revelar a provocação de Diderot, já que podemos supor razoavelmente que a primeira inclinação do seu amigo seria ficar do lado da gente de baixo, aliados da tradição local e, assim como Rousseau, cidadãos de origem burguesa53.

Há um segundo ponto capaz de revelar a provocação de Diderot. O verbete ‘Genebra’, publicado no dia dez de outubro de 1757 é, no mínimo, singular. Basta passarmos os olhos na seção de geografia e história da Enciclopédia para percebermos algo interessante. Significativamente o mais longo é também o único a se deter minuciosamente em um aspecto social como a ausência de uma companhia de comédia. Deixando de lado sua inclinação descritiva, o texto do verbete sugere que a cidade aceite em seu meio uma companhia de comédia, procedimento estranho que Rousseau mencionará em tom irônico54. Outro aspecto importante é o fato de que o verbete está

53 Hoje sabemos mais sobre a árvore genealógica da família de Rousseau do que ele jamais soube. Remeto

o leitor a alguns estudos sobre o assunto. A propósito da ancestralidade do filósofo genebrino, o estudo de Eugène Ritter intitulado La famille et la jeunesse de J.-J. Rousseau, de 1924, é imprescindível. De um ponto de vista mais panorâmico, sobre a cidade de Genebra no século XVIII e parte da ancestralidade de Jean-Jacques Rousseau, tanto do lado materno quanto paterno, conferir a biografia de Raymond Trousson, Jean-Jacques Rousseau: heurs et malheurs d’une conscience, mais especificamente o capítulo 1 chamado Genève (1993, pp. 9-24). Do mesmo autor, há outra biografia mais recente, cujo texto é próximo ainda que contenha variantes quando comparado à biografia de 1993. Editada pela Gallimard, a obra se intitula simplesmente Rousseau (2011, pp. 9-25).

54 Refiro-me ao segundo parágrafo do Prefácio da Carta a d’Alembert quando Rousseau, falando sobre a

sugestão de d’Alembert sobre a introdução de uma companhia de comédia na cidade de Genebra, demonstra estranhamento em relação a um verbete que não se limita unicamente à descrição da cidade, mas sugere a implantação de coisas lá inexistentes: “Lendo essa passagem isolada, mais de um leitor ficará

surpreso pelo zelo que a pôde ditar: lendo o verbete, percebe-se que a comédia, que é ausente em Genebra, mas que poderia não ser, é a oitava parte das coisas que nela existem.” (ROUSSEAU, 1967, p. 44). Na

segunda metade da Carta a d’Alembert, Rousseau chega a falar que a sugestão de d’Alembert, levando em conta o verbete, era despropositada: “Eis, senhor, as considerações que eu tinha para propor ao público

103 classificado como sendo de história e política, diferente dos verbetes dedicados a Estados nacionais como a Espanha e a Inglaterra, elencados na seção de geografia55. Tudo indica que era mesmo pensando em estabelecer um teatro em

Genebra que d’Alembert redigira o texto. Temos de admitir, contudo, que o tamanho do verbete talvez se ligue ao seu caráter apologético, e não simplesmente ao teatro. Em vários momentos, como foi visto, d’Alembert compara o progressismo genebrino com a defasagem social francesa.

O fato de Rousseau, sendo genebrino e redator de verbetes enciclopédicos, não ter sido chamado para escrever aquele para o qual teria mais competência, a saber, o verbete consagrado à sua cidade natal, parece ser por si só uma declaração tácita da parte de Diderot56. Mas defender o estabelecimento

de uma companhia de comédia na cidade, como o verbete iria fazer, é claramente tomar uma posição política em um conflito já existente, algo em relação ao qual Rousseau – Diderot deveria suspeitar – não iria permanecer indiferente. Até mesmo o agente de polícia Joseph d’Hémery, responsável pela censura editorial nos anos 50, sabia que Rousseau, como é descrito em suas anotações, era alguém com talento para polêmicas literárias (1984, p. 26).

Michel Launay propõe uma interpretação psicológica do evento ao afirmar que o verbete pôde ser visto por Rousseau como um ato de hostilidade contra ele próprio e que, muito provavelmente, não ficou feliz por não ter sido chamado para redigir o verbete57. Talvez Jean-Jacques Rousseau, cidadão de Genebra,

não tenha sido chamado para compor o verbete sobre a capital calvinista porque Diderot e d’Alembert previam algo que pareceu surpreendente para mais de um

você achou pertinente agitar em um verbete em que ela era, na minha opinião, completamente estrangeira”. (ROUSSEAU. 1967, p. 230).

55 Sigo Ourida Mostefai, que fala sobre a diferença de tamanho entre o verbete ‘Genebra’ e aqueles que

contemplam Estados nacionais na Enciclopédia, além de mencionar a diferença de classificação dos verbetes (2003, p. 28 e p. 30). Jacques Berchtold, no artigo intitulado La Lettre à d’Alembert dans l’oeuvre

de Rousseau toca no mesmo ponto, apontando a diferença de tamanho do verbete ‘Genebra’ e dos

demais países contemplados pela Enciclopédia (2011, p. 34).

56 Para Jacques Berchtold, seria “inacreditável”, uma “grande surpresa” que Rousseau não tenha sido

chamado para escrever o artigo sobre Genebra (2011, p. 32 e p. 33).

57 Ver o livro Jean-Jacques Rousseau écrivain politique: “O verbete ‘Genebra’, fruto de uma outra política,

aquela que, tomando Voltaire como pivô, consolidava a solidariedade entre os enciclopedistas e a aristocracia genebrina, foi interpretada por Rousseau, ainda que ele tenha sido advertido por Diderot de todos os detalhes da operação, como um ato de hostilidade contra ele e contra o povo de Genebra. Ele não deve ter ficado feliz ao saber que Diderot, para a composição do verbete ‘Genebra’, não tinha pensado nele ou que ele havia deixado d’Alembert escrevê-lo e, ainda, havia aprovado a aliança estabelecida entre d’Alembert, Voltaire e a aristo-democracia genebrina”. (LAUNAY, 1971, p. 347).

104 comentador: que o autor do Discurso sobre as ciências e as artes não compactuaria com a perspectiva favorável à influência positiva de uma arte como o teatro francês nos costumes de um povo com as características dos genebrinos. Acompanho a perspectiva de Blaise Bachofen quando afirma ser “(...) evidente para Rousseau que a questão do estabelecimento de um teatro possui em si mesmo, imediatamente, questões políticas.” (BACHOFEN, 2011, p. 74)58.

Se for assim, encontramos o elemento provocador do comentário de Diderot ao mesmo tempo em que explicitamos um razoável motivo pelo qual Rousseau não teria sido chamado para redigir o verbete dedicado à sua cidade natal. Essa ausência marca tacitamente o fato de que o círculo filosófico parisiense temia a possibilidade de que o instrumental teórico exposto em textos como Discurso sobre as ciências e as artes e o Discurso sobre a desigualdade guiasse a posição de Rousseau em relação a um teatro do tipo francês em Genebra.