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ENTRE A NORMA E O FATO: ORIGINALIDADE DA CARTA A D’ALEMBERT

A novidade da crítica rousseauniana ao teatro francês, tal qual formulada na Carta a d’Alembert, não é apenas sua perspectiva eminentemente política, ponto já abordado em mais de um estudo, mas também e principalmente sua estrutura pendular. A crítica ao teatro se apresenta a partir de um movimento argumentativo entre duas perspectivas, a saber, a universal ou normativa, representada pela ideia um corpo político legítimo, e uma perspectiva que pode ser classificada como circunstancial por ser histórica, portanto, contingente.

Quando não se preserva esse procedimento filosófico, corre-se o risco iminente de interpretar de modo equivocado os argumentos levantados, e foi o que aconteceu ainda no século XVIII. Rousseau chegou a comentar essa confusão, de modo teatralizado, na obra intitulada Rousseau juiz de Jean- Jacques, diálogo interessante em que o autor é desmembrado em dois, um Rousseau verdadeiro e outro falso, construído pelos preconceitos dos seus adversários. Na passagem em questão, relata-se a longa confusão que desde o início de sua carreira insistiu em pintá-lo como excessivamente radical, ao misturar a ênfase do diagnóstico moral, que flerta com condições ideais, cuja característica é a de tomar a natureza ou o corpo político legítimo como modelo, com um desejo de reforma concreta, de aplicação do ideal ao particular, impulsionado pela pretensa vontade de retornar às condições originárias:

Obstinaram-se em acusá-lo [Rousseau] de querer destruir as ciências, as artes, os teatros, as academias e mergulhar o universo outra vez em sua primeira barbárie, e ele sempre insistiu, ao contrário, na conservação das instituições existentes, sustentando que sua destruição faria unicamente que se acabassem com os paliativos deixando os vícios, e substituir a corrupção pela pirataria. (ROUSSEAU, 1959, t. I, p. 935).

27 A importância dessa passagem não poderia ser por demais ressaltada. Que a eloquência por vezes enfática de Rousseau não nos precipite em classificações exageradas, pois não estamos diante de um adversário convicto das artes, cujo desejo fosse aniquilá-las todas juntamente com as salas de teatro, para assim, finalmente, lançar as pessoas no estado de natureza, reino de transparência. A ideia é completamente outra, preservar as instituições4.

Contudo, poderíamos nos perguntar, a título de ilustração, por qual motivo não destruir as artes se elas provocam a corrupção?

O diagnóstico em relação aos prejuízos morais do avanço das artes é, de fato, intransigente. O Discurso sobre as ciências e as artes mostrou como o desenvolvimento delas é causado pela corrupção da sociedade e consegue ainda intensificá-la. Já o Discurso sobre a desigualdade será construído com a intenção de desvelar o que haveria de universal na constituição humana, e como as sociedades puderam chegar no grau de diferenciação encontrado historicamente. A reflexão política, porém, de viés interventor, deve tomar esse processo como um fato dado e a estratégia, nesse âmbito, é usar o mal para desacelerar a corrupção por ele mesmo causada, e não regredir a um estado originário anterior ao estopim inicial de corrupção moral.

Essa espécie de reviravolta (teatral?) cuja movimentação é engatilhada pelo uso pendular de duas perspectivas distintas, mas complementares é brilhantemente explicitada pelo Manuscrito de Genebra. Lembremos da afirmação, essencial para esta investigação, e que será retomada por mim adiante em mais de um momento, segundo a qual é com a ajuda da arte aperfeiçoada que é possível reparar os males infringidos à natureza pela arte começada (1964, t. III, L. I, Cap. II, p. 288). Quanto ao teatro, acredito que se passe a mesma coisa: a escolha não é tanto entre natureza e cultura quanto

4 É essa a lição dada no Livro IV do Emílio: “Esperando maiores luzes, preservemos a ordem pública; em

todo país, preservemos as leis, não conturbemos em absoluto o culto que é prescrito, não levemos os cidadãos à desobediência, pois certamente não sabemos se é um bem para eles colocar fim em suas opiniões em nome de outras, e sabemos muito certamente que é um mal desobedecer as leis.” (ROUSSEAU,

2004, p. 443). Apoiado por um argumento como esse, Rousseau pôde negar logo de partida o benefício da entrada de um teatro do tipo francês em Genebra, cidade na qual esse tipo de divertimento era proibido por lei, como será detalhado no momento oportuno.

28 entre duas formas de cultura. Com efeito, se o diagnóstico moral é crítico em relação aos avanços das artes é porque se vale, como ponto de referência, da ideia de natureza humana que seria, para o autor, essencialmente simples, marcada pela ausência da maioria das paixões presentes em sociedade.

A natureza enquanto norma envolve substancialmente o uso de um ponto de referência antropológico com o objetivo de marcar a distância entre o estado natural e o estado social, pautado pela artificialização e pela ruptura entre o ser e o parecer. Em Rousseau, entretanto, a ação política está inserida no que pode ser chamado de reino de aparências, e é do interior dessa atmosfera que se deve tentar buscar, com a ajuda da arte aperfeiçoada, personificada e utilizada em boa medida pela figura do legislador, a unidade entre os cidadãos, na tentativa de refrear o processo de corrupção moral que coloca em conflito o interesse público e o interesse particular.

O resultado provisório desse esquema teórico é ilustrativo para direcionar as análises desta pesquisa. Quando falamos do teatro e da festa cívica, polos opostos do movimento pendular, não estamos entre a natureza e a cultura, mas entre duas formas de arte, a começada e a aperfeiçoada. Nesse sentido, veremos como a festa cívica é a norma ou o espetáculo ideal de um corpo político legítimo, ou seja, um tipo de arte aperfeiçoada capaz de ajudar no estreitamento do liame social e o teatro, por sua vez, pode ser acusado de intensificar um desnaturamento prejudicial, do tipo egoísta, ponto que será esclarecido mais à frente.

Antes de entrar em detalhes sobre a Carta a d’Alembert, parece estratégico realizar um movimento de aproximação ao tema do ponto de vista ainda abrangente da relação entre Rousseau e o teatro, objetivo geral desta investigação.

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CAPÍTULO 2

ROUSSEAU E O TEATRO: ENTRE A NATUREZA E A

HISTÓRIA?

All the world’s a stage,

And all the men and women merely players; They have their exits and their entrances, And one man in his time plays many parts. (SHAKESPEARE, 2014, Ato II, Cena VII)5.

Como já apontou Michel Launay, no livro Le vocabulaire politique de Jean-Jacques Rousseau, parte importante do trabalho de escritor diz respeito à arte de escolher as palavras, combiná-las, defini-las, criticar ou transformar seu sentido (1977, p. 10). Ao mesmo tempo, e isso diz respeito ao trabalho do comentador e do leitor em geral, é preciso entender o significado incutido pelo autor em termos essenciais do seu jargão. Postura cujo mérito é evitar estabelecer uma leitura de mão única, anacrônica ou equívoca exatamente porque perde de vista o sentido dos termos e ainda a intenção dos textos. Neste capítulo procuro mostrar como o tema do teatro é um elemento intrinsicamente conectado ao método e também à doutrina filosófica de Jean-Jacques Rousseau. Esse percurso examinará o modo pelo qual a noção de teatralidade funciona como um importante referente teórico capaz de servir como fonte de construção de um vocabulário filosófico, além de pontuar de que forma, na questão do teatro em confronto com a festa, não se trata bem do conflito entre o que rege a natureza e o que foi culturalmente imposto, mas entre duas formas de arte enquanto construtos culturais.

5 “O mundo todo é um palco, e todos os homens e mulheres são meramente atores; eles têm suas saídas

30 Quando faço menção ao emprego da teatralidade, interessa notar como não se trata tão somente de um recurso estilístico, mas principalmente de um referente teórico responsável por conduzir e explicitar a reflexão política e moral do filósofo genebrino. Veremos também a maneira pela qual sua obra autobiográfica expõe elementos essenciais de sua personalidade a partir de uma atmosfera ligada ao universo teatral. Em poucas palavras, a construção da narrativa dos textos autobiográficos se vale de elementos teatrais para a elaboração do que pode ser chamado de ‘personagem Rousseau’. Essa estratégia se liga ao fato de que a crítica à entrada de um teatro francês em Genebra será corretamente compreendida caso estivermos cientes do papel dessa arte enquanto referente teórico.

A investigação responsável por dar sentido aos meus esforços será concentrada na crítica ao teatro francês realizada por Rousseau, e a obra fundamental com a ajuda da qual faremos isso é a Carta a d’Alembert. Existe, entretanto, uma ligação intrínseca, muitas vezes negligenciada, entre o autor e a poesia dramática (entenda-se teatro em sentido amplo), cujo panorama considero essencial não só para continuar a desvelar em suas premissas e implicações o tema desta pesquisa, mas para explicitar aspectos importantes da produção filosófica rousseauniana. O interesse estende-se tanto ao âmbito teórico-filosófico, em relação ao qual me deterei ao longo dos capítulos seguintes, mas também, como veremos agora de modo sumário, o biográfico e estilístico. Esse trajeto é válido, mesmo necessário, pois o ato de escrita e a vida ou, se quisermos, a teoria e o comportamento estariam conectados: “Aqui, como em todo o resto, meu temperamento influenciou muito minhas máximas, ou melhor, meus hábitos.” (ROUSSEAU, 1959, t. I, p. 1033)6.

O método responsável por conduzir este capítulo é fundamentalmente a análise textual, isto é, mostrar a coerência, consequências e os pressupostos de uma perspectiva filosófica ligada ao

6 Concordo com Jean Starobinski quando diz no Prólogo do livro Jean-Jacques Rousseau: transparência e

obstáculo que “com ou sem razão, Rousseau não consentiu em separar seu pensamento de sua individualidade, suas teorias e seu destino pessoal. É preciso considerá-lo tal como se apresenta, nessa fusão e nessa confusão da existência e das ideias.” (STAROBINSKI, 2011, p. 9).

31 teatro a partir da investigação dos textos. No caso de Rousseau, o leitor precisa se confrontar com o fato de que há algo de fortemente ligado ao universo teatral em suas obras teóricas e no modo como ele se descreve nos escritos autobiográficos. A leitura desses textos não diz respeito a algo como uma digressão fortuita porque essa análise, mesmo que seja realizada de modo panorâmico, ajudará a mensurar a função e a importância do aparato conceitual estreitamente conectado ao teatro empregado pelo autor. Apresentar aspectos de sua obra vinculados à poesia dramática tem como função montar, em seu conjunto, um quadro de referência conceitual para entender a relação de Rousseau com o teatro, buscando explicitar a inteligibilidade de sua crítica à entrada de uma companhia teatral em Genebra quando vinculada à sua própria produção literária, tendo como horizonte, insisto, o procedimento filosófico pendular apresentado anteriormente.

2.1 A CENA DO MUNDO E A CENA DA VIDA: TEATRO, AUTOBIOGRAFIA