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Tomemos a França como exemplo por um momento. Ela era uma monarquia, formada por um grande território, cuja capital, Paris, seria frívola (1959, Livro IX, t. I p. 484). Estamos falando de uma cidade que era muito luxuosa, mas também desigual, na qual os súditos não teriam liberdade, além de viverem em sua maioria na miséria. Lá existiram paixões características, estimuladas pelas relações específicas criadas no interior da complexidade desse centro urbano: “O inglês tem os preconceitos do orgulho, e o francês, os da vaidade.” (ROUSSEAU, 2004, p. 668). Essa diferença, que Rousseau achava que a cada dia estava acabando dado o estreitamento das relações entre as nações, estava ligada ao governo, ao território, à religião e aos costumes. O teatro francês, desde sua estrutura exclusiva e lugares marcados, passando por sua performance baseada, de um lado, no protagonista visto por todos e, no outro polo, o público caracterizado pela passividade corresponde à estrutura política parisiense na qual o rei manda e ao súdito resta obedecer.

154 A oposição entre cidade grande e pequena, como vimos, é essencial e ajuda a compreender o motivo pelo qual Genebra não se beneficiaria com um teatro, instituição na qual o luxo é muito requisitado. Ajuda ainda a entender como o caso particular tem importância e se conjuga com os princípios políticos. Quando uma sociedade atinge grande riqueza, inicia um processo de disseminação do luxo conjuntamente às artes que intensifica o comércio, o estreitamento de laços com outras nações, mas também a desigualdade social e a miséria. Contra a tendência natural das pessoas, a cidade grande faria com que vivessem amontoadas e se alimentando mal. Nesse sentido é que devemos entender a afirmação contida no Livro I do Emílio quando se diz categoricamente que “as cidades são o abismo da espécie humana”. Para Rousseau, esse quadro levaria à inevitável perda da virtude e, consequentemente, da liberdade. É significativa a descrição da primeira vez que o cidadão genebrino visita Paris, entrando na cidade pelo bairro Saint Marceau, onde foi surpreendido por ruelas sujas e fedorentas; as casas eram feias, o ar insalubre, havia muita pobreza e mendicância (1959, t. I, p. 159). Em uma carta transcrita nas Confissões, endereçada a Diderot, Rousseau ataca a cidade ao mesmo tempo em que defende o campo, dizendo que é nele onde se aprende a amar e servir a humanidade e que na cidade só se aprende a desprezá-la (1959, L. IX, t. I, p. 459). Seja no Emílio, em cartas de Saint-Preux sobre Paris ou nas páginas das Confissões o tom é predominantemente crítico em relação às cidades grandes.

É na cidade pequena, em contrapartida, que a igualdade e a pobreza se unem à liberdade. Efetivamente, no Contrato social, conta-se uma história sobre Platão capaz de corroborar essa ideia. Ele teria se recusado a governar os cirenaicos e arcadianos porque “esses povos eram ricos e não suportariam a igualdade.” (ROUSSEAU, 1964, t. III, p. 385). Essa frase marca um curto-circuito entre riqueza e uma das condições fundamentais para que o pacto se preserve legítimo, a igualdade. Manter-se pequeno, quando isso for possível, é manter a autonomia, os laços entre os cidadãos, e isso culminará na felicidade. A norma política aponta claramente para a não dependência. Com efeito, no fragmento político intitulado Da felicidade pública, podemos ler justamente que a nação

155 mais feliz é aquela que menos depende das outras e a mais florescente seria aquela em relação a qual as outras não podem se afastar (1964, t. III, p. 512)100.

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O intervalo entre os parágrafos 11-16 da Carta a d’Alembert introduz as premissas da discussão, evidenciando definições e o direcionamento mais adequado para tratar do tema. A discussão central como afirma o parágrafo 11 e como já havia apontado o título integral da obra é saber o valor da introdução de um teatro parisiense em Genebra. Todos os termos sublinhados da sentença precisam ser respeitados, sob o risco de deturpamos o sentido da obra. Assim, ‘valor’ (moral do teatro), ‘introdução’ (de um divertimento francês até então estranho a uma sociedade como a genebrina), ‘teatro parisiense’ e ‘Genebra’ (com todas as suas características) devem influenciar a decisão de quem pretenda resolver a questão.

Elenca-se no parágrafo 12 oito questões essenciais, cuja resposta é necessária caso se tente entender o valor de um teatro para certa cidade. semelhantes às levantadas por Pierre Nicole, elas servirão como direcionamento para o desenrolar do texto:

Quantas questões encontro naquela que você parece resolver! Se os espetáculos são bons ou maus neles mesmos? [questão

metafísica] Se eles podem se aliar com os costumes? [questão social] Se a autoridade republicana pode comportá-los? [questão política] Se é preciso que sejam tolerados em uma cidade

pequena? [questão social] Se as comediantes podem ser tão sábias quando as outras mulheres? [questão social] Se as boas leis são suficientes para reprimir os abusos? [questão social] Se essas leis podem ser bem observadas? [questão jurídico-social] Etc. (ROUSSEAU, 1967, p. 64).

O terreno no qual a discussão será conduzida está claramente indicado. Mais uma vez, nenhuma referência à religião. A questão, se pensarmos no verbete da Enciclopédia, parece ser deslocada para um âmbito distinto. Não se

100 A possibilidade de que a felicidade seja alcançada está estreitamente vinculada à presença da liberdade

que, por sua vez, para ser viável, depende de fatores como o tamanho de certa nação ou comunidade. Mais precisamente, a nação tanto não deve ser muito grande como é importante que seja a mais autônoma possível, tal qual afirma o fragmento político intitulado Da felicidade pública: “Além disso,

pode-se dizer que o estado geral da nação mais favorável à felicidade dos particulares é não ter necessidade do concurso de nenhum outro povo para viver feliz.” (ROUSSEAU, 1964, t. III, p. 513).

156 trata de impor uma refutação direta, mas de retornar aos pressupostos da questão sobre a entrada de um teatro em Genebra, como aponta Bento Prado Jr. (2008, p. 305). É sintomático que os comentários prontos a defender a assimilação de Rousseau à tradição religiosa não citem essa passagem. Seria preciso esquecer essas oito questões que, não obstante, balizam a argumentação do autor para não perceber o caráter essencialmente político da obra e, por consequência, o afastamento em relação à tradição religiosa.

Contra as razões de d’Alembert, Jean-Jacques Rousseau vai contrapor as razões dos genebrinos, procedimento que bem mostra o aspecto político, mas também literário no qual o texto se inscreve. Essa perspectiva ilumina ainda o caráter inaugural da obra no que diz respeito à querela do teatro: o debate sobre o valor moral dessa arte, para Rousseau, havia contado até então com a participação de representantes mundanos ou laicos em favor do teatro e, de outro lado, os partidários do pensamento tradicional religioso, contrários a essa prática. Sintomaticamente, esse tipo de disputa não o interessa, na verdade, dela ele se separa explicitamente no mesmo parágrafo 12:

Tudo é ainda problema quanto aos verdadeiros efeitos do teatro, porque as disputas que ele suscita separam unicamente as pessoas da igreja e os mundanos, cada qual o abordando apenas por meio de seus preconceitos. (ROUSSEAU, 1967, p. 64-65). A maneira correta de compreender a afirmação ‘tudo é problema’ é interpretá-la como a defesa de que a questão sobre o valor do teatro ainda estava em aberto, não resolvida, porque os dois partidos, um formado pelos religiosos e outro pelos mundanos (basicamente pensadores laicos), se valiam somente dos seus preconceitos para abordá-la. Cabe lembrar que uma constatação bem parecida é feita no Livro IX das Confissões quando se lê que cristãos e filósofos pareciam mais lobos se devorando do que pessoas tentando convencer em nome da verdade (1959, t. I, p. 435-436). Sobre a querela do teatro, outro caminho será oferecido para responder a questão sobre a capacidade moral da cena. Se é assim, de onde Rousseau fala, que tipo de perspectiva ele inauguraria? Dito de modo breve, temos uma perspectiva política, algo comumente apontado pela literatura secundária. Menciono a título de ilustração a Apresentação de Michel Launay (1967, p. 18), o artigo de John

157 Hope Mason (1992, p. 253), o livro de Ourida Mostefai, conforme o qual a perspectiva política apresentada na Carta a d’Alembert faz parte da originalidade da obra (2003, p. 06), o ensaio de Bento Prado Jr. (2008, p. 268), o artigo de Francine Markovitz (2011, p. 193) e aquele redigido por Max Blechman, segundo o qual a forma de espetáculo do tipo burguesa caracterizado pela cena francesa é um problema essencialmente político para Rousseau (2011, p. 207).

Menos alinhado a uma perspectiva como essa, não só política mas também social e que, como estamos vendo, é conduzida pelo pêndulo entre o ideal e o caso particular, tanto Diderot quanto Voltaire podem ser assimilados à tradição religiosa, pois ambos os lados dessa disputa, apesar da diferença de perspectiva, abordam o teatro de modo algo essencialista, aproximam-se da cena teatral de maneira global, sem circunscrevê-la no terreno móvel da história. Os defensores do teatro, acreditando tratar dos homens de modo universal podem ser acusados de falar tão somente dos franceses. Abordariam o teatro através dos seus preconceitos, abafariam as diferenças entre os povos como se o divertimento francês pudesse afetar positivamente qualquer sociedade. Ao fim e ao cabo, a crítica de Rousseau é uma crítica também ao etnocentrismo.

Perdendo de vista a importância do caso particular, os defensores e detratores do teatro buscam disseminá-lo ou aniquilá-lo ilimitadamente, como se fosse uma chave-mestra ou veneno universal capaz de se introduzir e modificar sempre do mesmo modo as pessoas. Por trás desse movimento argumentativo, residiria uma espécie universalização indevida. Os religiosos, condenando ilimitadamente a prática teatral, perdem de vista o que podemos chamar, na esteira de Bento Prado Jr., de inventário das diferenças entre os povos, de modo que em nenhum momento se perguntam sobre a possibilidade de que existiria alguma sociedade para a qual o teatro pudesse ser benéfico ou, ao menos, um paliativo. Pois é disso que se trata a conjugação, em Rousseau, entre o que prescreve a justiça e o que é da alçada do interesse.

Para compreender as implicações da sugestão de d’Alembert, Rousseau convida seu leitor a se aprofundar nos princípios da arte dramática, ponto conectado à primeira questão estipulada no parágrafo 12: ‘se os espetáculos são bons neles mesmos’, e aqui vemos como a obra dialoga e polemiza com as poéticas clássicas. Ora, é do interior de suas premissas e orientado pelas regras

158 nelas dispostas que Rousseau nega o benefício da entrada de um teatro francês em uma cidade como a genebrina. Não estamos em um terreno unicamente contingente porque estabelecer a definição e os princípios pelos quais a poesia dramática seria conduzida leva a questão para o âmbito normativo, o de princípios basilares. Esse movimento argumentativo da obra está no registro do diagnóstico, e aqui a preocupação vai na direção de explicitar os princípios do teatro, não exatamente estabelecendo regras para que seja executado competentemente, mas buscando o aspecto fundamental a que se ligam todos os espetáculos. Será, como já adiantei, do interior das regras oferecidas pelas poéticas do século XVII e XVIII, usando o jargão dos defensores do teatro, o modo pelo qual Rousseau vai desenvolver sua crítica à pretensão moralizante da cena teatral.

O parágrafo 13 é, nesse ponto, essencial, pois nele é definido o que será entendido como espetáculo: “O primeiro olhar em direção a essas instituições mostra preferencialmente que um espetáculo é um divertimento”. (ROUSSEAU, 1967, p. 65). Marc Buffat, em sua Apresentação da Carta a d’Alembert (2003), divide os partidos da querela a partir da noção de prazer\divertimento. Dizer que o teatro é moral seria, conforme o comentador, fazer dele o elogio, mas defini-lo como prazer seria, diferentemente, condená-lo. Sobre Rousseau, é afirmado que “aderindo à condenação moral da igreja sem retomar os fundamentos teológicos ele emprega-se a mostrar que o teatro é prazer.’’ (ROUSSEAU, 2003, p. 25). Não me parece que seja a partir da noção de prazer a melhor forma de dividir os lados do debate sobre o valor moral do teatro. Afirmar sobre ele que se trata de divertimento (amusement) não é condená-lo, é antes o ponto comum entre os defensores e os detratores da cena teatral. As poéticas mais conhecidas do período admitem, talvez seja mesmo o pressuposto básico delas, que o prazer\diversão é fundamental para excitar o interesse do público e assim comovê-lo, de modo que o teatro possa alcançar uma finalidade moral. Jean- Baptiste Dubos, na primeira seção da segunda parte de suas Réflexions critiques sur la poésie et sur la peinture, obra conhecida por Rousseau, diz por exemplo que “ (...) o sublime da poesia e da pintura é tocar e agradar (...)”. (DUBOS, 1740, p. 01).

159 O paradoxo que Dubos defende existir em relação à nossa experiência estética, vale a pena dizer, está intimamente ligado ao prazer que sentimos diante de representações teatrais. Mais do que isso, para saber se uma obra é boa ou má precisaríamos nos fazer a seguinte questão: “a obra agrada ou não?” (DUBOS, 1740 p. 324)101. Jean-Baptiste Dubos está longe de aparecer como

uma exceção, ao menos a mesma coisa já havia sido dita por Boileau. No Canto III da Art poétique ele aconselha o poeta dizendo que se quiser ser bem criticado “o segredo é preferencialmente agradar e tocar\invente recursos que possam prender”. (BOILEAU, 1674, Canto III, versos 20-25). Fontenelle, por sua vez, fará a mesma constatação em 1678 quando escreve suas Réflexions sur la poétique. No primeiro parágrafo do texto, de fato, ele associa a poética à “arte de agradar”. Racine, no Prefácio de sua tragédia chamada Berenice admite infringir as regras que estipulam o modo como uma tragédia deve ser conduzida desde que o seu objetivo fundamental seja alcançado: “A principal regra é de agradar e comover.” (RACINE, 2009, p. 105).

Ao prazer alia-se, em acordo com essas poéticas, a instrução moral, algo que Rousseau questionaria, mas quando ele define espetáculo como um divertimento parece estar no interior de uma atmosfera teórica comum a essas poéticas. Contra Marc Buffat, pode-se defender que admitir prazer no caso do teatro não é tanto condená-lo, mas servir-se da premissa básica dos defensores dessa arte. A estratégia é, portanto, de apropriação, até mesmo porque será usando os parâmetros estabelecidos pelos pensadores das regras do teatro e a partir de suas regras que o filósofo genebrino vai chegar a uma conclusão diferente, ou seja, mostrar como o teatro não é benéfico para Genebra.

O parágrafo 13 tem caráter normativo, nele o prazer\divertimento é estabelecido como central para o teatro. Essa noção não é atacada diretamente, enquanto tal, porém, pensando em termos políticos, tal qual o legislador a abordaria, é por sua carga de utilidade cívica, por sua capacidade de reforçar o

101 Em vários momentos Dubos retoma a ideia de que é comovendo que se agrada o público e esse é o

objetivo final da poesia dramática. Parafraseando Quintiliano, na seção XXII, da segunda parte, por exemplo, Dubos diz: “Não é raciocinando que se julga obras feitas para comover [toucher] e agradar [plaire].” (DUBOS, 1740, p. 332); em seguida, ele diz que “o objetivo da poesia e da pintura é de comover [toucher] e agradar [plaire] (...)’’ (DUBOS, 1740, p. 338); na seção XXIII, pode-se ler que: “em uma palavra,

160 liame social que esse amusement será considerado legítimo. Se o divertimento alienar as pessoas de seus deveres cívicos, caso separe os membros da comunidade por rivalidade ou conflito de interesses particulares, ele será considerado ilegítimo. O resultado parcial a que chegamos é pertinente: divertimento não é, para Rousseau, essencialmente ruim, mas para ser permitido em uma sociedade saudável, de um ponto de vista ideal, é preciso cumprir uma condição importante. Admite-se a necessidade de prazer desde que seja politicamente benéfico: “(...) e se é verdade que os homens precisam de divertimentos, você concordará ao menos que eles são permitidos apenas quando são necessários, e que toda diversão inútil é um mal (...)” (ROUSSEAU, 1967, p. 65).

Esse tipo de rigor parece excessivo contemporaneamente. Não costumamos medir nossos momentos recreativos a partir de sua importância cívica, contudo, é a partir desse cálculo, em nível normativo, que o divertimento será aceito como legítimo. Rousseau não é contra o prazer, a estratégia argumentativa é contrapô-lo enquanto fruto da frequentação do teatro a um parâmetro condicionado pela capacidade de intensificar o liame social, a partir do qual pode-se avaliar o valor desse divertimento. Com efeito, em uma obra como a Nova Heloísa vemos como em Clarens, comunidade pequena e austera, o agradável e o útil se associam constantemente. Lá, diz a Carta XI da Quarta Parte, “só se trabalha para gozar”. (ROUSSEAU, 1964, t. II, p. 470). Caso tomemos o parágrafo 93 da Carta a d’Alembert, notamos como é estabelecida uma concessão que, em Rousseau, normalmente é empregada em tom polêmico: ele parece aceitar uma posição para depois levá-la ao absurdo. Assim, aceita-se temporariamente que o teatro é moralmente indiferente. Nesse caso, será a natureza das ocupações por ele interrompidas o aspecto responsável por decretar se ele é bom ou prejudicial (1967, p. 129). Um Estado bem constituído será conduzido de modo que cada um dos membros cumpra seus deveres e se conecte intimamente aos seus concidadãos e sua cidade. Porém, quando o Estado se corrompe e é criado um ambiente de ociosidade responsável por incentivar as artes e divertimentos sem relação direta com as funções públicas as coisas se passam diferentemente. Eis que entramos no âmbito circunstancial, de modo que, em uma sociedade corrompida, cujos habitantes são subjugados

161 por atividades perniciosas, o teatro torna-se uma distração estratégica. Essa é a lógica de usar o problema como parte da solução em uma saída do tipo antiofídica. Não se pode simplesmente sobrepor o melhor, em termos ideais, no caso particular. Essa conjugação é o que permite ainda a compreensão de como podem coexistir coerentemente em Rousseau a produção literária e crítica às artes:

Minha opinião é, então, a de que, e já o disse em mais de uma ocasião, se deixem subsistir e mesmo estimulem com zelo as Academias, os Colégios, as Universidades, as Bibliotecas, os Espetáculos, e todos os outros divertimentos que possam distrair a maldade dos homens, e impedi-los de ocupar sua ociosidade com coisas mais perigosas. (ROUSSEAU, 1964, t. II, p. 972).

Se não compreendermos o movimento pendular entre universal e particular, essa posição parecerá flagrantemente contraditória. A citação está em confronto com as especificidades de uma sociedade, com a corrupção moral enquanto fato incontornável e, nesse caso, a intervenção não deve tentar expurgar o mal, saída contraproducente, mas justamente utilizá-lo para tentar refrear a corrupção, espécie de terapia antiofídica. Antes de desenvolver o aspecto circunstancial da questão, interessa explorar mais detalhadamente os princípios da arte teatral.

Em uma carta importante, mas não utilizada pelos comentários que se dedicaram à questão do teatro em Rousseau, datando de 1754, lemos sobre estabelecimento de dois princípios que norteariam a beleza teatral. Nessa carta, usa-se sintomaticamente uma epígrafe extraída da Arte poética, de Horácio. Ademais, tanto Boileau quanto o Abade Dubos são citados, o que mostra conhecimento das poéticas escritas datando do final do século XVII e início do XVIII. Molière, assim como acontecerá na Carta a d’Alembert, é tratado de maneira elogiosa, chamado de “grande homem”. (ROUSSEAU, 1974, p. 29). Sobre os dois princípios da beleza teatral:

Ainda que os princípios da beleza teatral não tenham sido estipulados nem pelos modernos, nem mesmo por Aristóteles com o grau de clareza da qual são suscetíveis, eles são fáceis de serem estabelecidos. Esses princípios,

162 me parece, se reduzem a dois, a saber, a imitação e o interesse que se aplicam igualmente à música... Que a imitação não deva se exercer a não ser sobre temas úteis é um bom preceito de moral, porém, não uma regra de poética: pois há muito belas peças cujos temas não têm nenhuma utilidade. (ROUSSEAU, 1974, p. 29)

Rousseau parece avançar princípios até então não devidamente explorados, contudo, não parece ser esse o caso. Boileau e Dubos já haviam colocado o interesse como objetivo fundamental a ser alcançado pelo dramaturgo ou pintor, dado que só seria possível comover\tocar alguém capaz de se interessar pela história contada ou que consiga se relacionar com o protagonista cujo percurso testemunha. A ideia de imitação, por sua vez, foi estipulada tanto por Platão quanto por Aristóteles como central para o teatro102.

Avançando princípios originais ou não, importa notar como também em 1754 Rousseau já mostrava desconfiança em relação ao princípio moralizante do teatro quando recusa, por exemplo, o engajamento necessário entre o belo e o útil.

Sobre o princípio de imitação, essencial para entender o funcionamento do teatro e da sociedade, vale mencionar que em uma obra como o Emílio a capacidade mimética encontrada nas pessoas é considerada de suma importância. Não só ela é empregada na socialização como se relaciona a uma natureza bem ordenada, porém, em sociedade costuma degenerar em vício. O fato de que a mimeses é caracterizada por pertencer a um ser bem ordenado