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DAS COISAS REPRESENTADAS NO TEATRO E DOS SENTIMENTOS

No intervalo entre os parágrafos 13 e 19 são feitas algumas observações importantes sobre os espetáculos cujo efeito geral, em um primeiro momento, é o de reforçar o caráter nacional, aumentar as inclinações naturais e dar uma nova energia às paixões (1967, p. 71). Pareceria, diz Rousseau, em uma espécie de conclusão que será posteriormente descartada, que se limitando a intensificar e não mudar os costumes o teatro seria bom para os bons e ruim para os malvados. Contudo, a afirmação é feita em tom condicional e será corrigida nos parágrafos 91, 108, 109 e 126. Até o parágrafo 32 o texto se deteve em questionar o que haveria de bom no teatro francês conforme os seus defensores para, em seguida, apresentar seu aspecto prejudicial, mostrando que o teatro francês mudaria as máximas encontradas em uma cidade pequena, além dos preconceitos e opinião pública (1967, p. 154). Vimos como o dramaturgo estaria em uma relação de pouca predominância no que diz respeito ao seu público. Dado isso, Rousseau se aprofunda no caráter não moralizante do teatro e para isso questiona o seu pretenso benefício moral. Para concluir a crítica ao efeito positivo dessa arte foi preciso fazer frente à tese da purgação das paixões, a katharsis, promovida segundo seus defensores pela tragédia e comédia.

O teatro teria como característica, como foi defendido por Aristóteles, purgar as paixões indesejadas. A noção de katharsis, termo grego de origem médica cuja significação é ‘purgação’ é amplamente contestada pela Carta a

190 d’Alembert. Retomando o abade de Dubos (1º Parte, seção 44), fica claro como Rousseau reconhece que a ideia das poéticas não seria fazer com que o espectador, diante da representação do ciúme ou inveja, sentisse exatamente a mesma coisa que o vilão para depois se livrar desse sentimento. A ideia é ser afetado pelo sentimento contrário ao dele ou repulsa pela paixão que o conduz. Assim, a representação de um amor furioso e tresloucado, da injustiça pérfida ou do desregramento causado pelo excesso de orgulho, cujo fim acaba sendo tenebroso a certo personagem, seria capaz de criar ou aumentar no espectador o horror por essas paixões. Sairíamos do teatro purgados ou ao menos em guarda contra sentimentos desse calibre, com o objetivo de evitar um desfecho pernicioso tal como foi visto na peça. Da mesma forma, o sucesso da virtude, ainda que tenha passado por sérias provações nos excitaria a dar consentimento a ela em nossa rotina diária. Essa seria a purgação das paixões promovida pelos espetáculos teatrais trágicos, tal qual interpretada no século XVIII, balizada a partir dos sentimentos de terror e piedade.

O problema é que, conforme Rousseau, excitar uma paixão é um processo que indiretamente excita várias outras, pois elas estariam conectadas, seriam todas irmãs (1967, p. 73), derivações do amor de si. Quando se dá nova energia às paixões existentes, a ligação de irmandade entre elas faria com que a excitação de uma promovesse o aparecimento de outra. O estabelecimento de uma instituição como o teatro francês não só aumentaria a inclinação natural dos genebrinos como daria ensejo ao aparecimento de outras tendências. O caso do amor parece ilustrar o que está em questão: temos diante de nós uma paixão capaz de se conectar a várias outras a depender do contexto. O amor em uma pessoa desconfiada como Bentinho, protagonista do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, culmina em ciúme. Conduzido por um perfil psicológico como o de Dom Juan, vira peça de um jogo de conquista, orgulho e ambição. Quando, de outro modo, o amor é rejeitado pode se transformar em ódio. A tomar as declarações de Dom Quixote, vemos o modo como o amor de um sonhador descamba em fantasia.

Essa capacidade de conexão é o que caracteriza a irmandade das paixões, e caso o teatro não corrija os costumes pode muito bem alterá-los (1967, p. 128), o que no caso de Genebra, tão elogiada até mesmo por

191 d’Alembert, seria ruim. Se lembrarmos o adolescente Emílio, especificamente no momento em que sua sexualidade já pode ser desenvolvida, se ele se deparar com estímulos para isso, Rousseau escreve como, para impedir que aconteça uma sexualização precoce, o tutor deve oferecer ao jovem “espetáculos que os moderem [desejos sexuais], e não espetáculos que os excitem; despistai sua imaginação nascente com objetos que, longe de pôr fogo em seus sentidos, reprimam sua atividade.” (ROUSSEAU, 2004, p. 317). O uso do termo ‘espetáculo’ não indica teatro, mas atividades capazes de impressionar. De qualquer modo que seja, chamo atenção para o movimento emocional promovido pela katharsis que, no caso do teatro, ao excitar ou mesmo expor paixões inexistentes no espectador, seria capaz de intensificar as existentes e promover o aparecimento de outras sem haver purgação. Para concluir esse movimento argumentativo, pode-se dizer que quando somos expostos a cenas passionais capazes de interessar acabamos ficando incapazes de resistir às paixões, e do ponto de vista moral “o estéril interesse que se tem pela virtude só serve para contentar o amor-próprio, sem nos constranger a praticá-la.” (ROUSSEAU, 1967, p. 128).

A recusa diante da tese da purgação das paixões vem da própria experiência da frequentação no teatro de Rousseau. Em uma perspectiva propriamente psicológica responsável por abordar a reação do público, ele diz que

é preciso, para sentir a má fé dessas respostas, apenas consultar o estado do seu coração no fim de uma tragédia. A emoção, a perturbação e o enternecimento que se sente em si mesmo e que se prolonga depois da peça, anunciam uma disposição bem próxima a superar e regrar nossas paixões? (ROUSSEAU, 1967, p. 72).

É a razão que poderia conter em alguma medida as paixões, mas ela não tem participação no teatro. Combater uma paixão com o uso de outra serviria apenas para nos deixar sensíveis a todas elas. O que é reprovado não é inspirar paixões criminosas, mas colocar a alma em uma disposição propícia a encarar sentimentos muito ternos que serão satisfeitos a despeito da virtude (1967, p. 119). Além disso, uma das consequências do princípio de agradabilidade que conduz o autor dramático é precisamente o de não ser possível usar paixões em

192 relação às quais ele desejaria que seu público se enquadrasse, mas aquelas já manifestadas e aprovadas pelos espectadores.

A premissa fundamental dos defensores do teatro era a de que ele seria uma escola de virtude e, ademais, faria odiar o vício, ponto comum entre poéticas e autores teatrais. Voltaire, no prefácio da tragédia intitulada Semíramis afirma, por exemplo, que “a verdadeira tragédia é a escola da virtude, e a única diferença entre o teatro refinado e os livros de moral é que a instrução se encontra na tragédia toda em ação (...)” (VOLTAIRE, 1749, online). Diderot dirá por sua vez, em mais de uma ocasião, que o objetivo de uma composição dramática é “inspirar aos homens o amor pela virtude e o horror pelo vício.” (DIDEROT, 2005b, p. 134)116. Se tomarmos em mãos o verbete Ator da Enciclopédia,

assinado pelo abade Edme-François Mallet e Diderot, fica claro como as peças teatrais, segundo seus defensores, trariam como pretensão aliar o divertimento (amusement) e a instrução moral. Os atores pretenderiam, segundo o verbete mencionado, excitar a virtude e inspirar o horror pelo vício ao expor seu ridículo. Corneille, grande dramaturgo francês do século XVII, em um importante texto teórico chamado Três discursos sobre a poesia dramática estipula como uma das utilidades do teatro a pintura ingênua dos vícios e virtudes, feita de modo que eles jamais se confundiriam. A virtude deve ser pintada, continua Corneille, de modo a ser sempre amada, ainda que infeliz, e o vício, por sua vez, deve ser sempre odiado, ainda que triunfante (1857, p.10).

O projeto de aliar, em um movimento de cumplicidade, o interesse causado pela movimentação passional de algum personagem e uma lição de ordem moral racionalmente elaborada encontra um problema de grande envergadura, segundo Rousseau. O constrangimento dos autores em sempre

116 Diderot, no texto Entretiens sur le Fils naturel já havia afirmado no segundo Entretien: “Todos os povos

têm os seus sabás, e nós também teremos os nossos. Nesses dias solenes, será representada uma bela tragédia, que ensine os homens a temerem as paixões; e uma boa comédia, que os instrua acerca dos seus deveres e que lhes inspire o gosto por eles.” (DIDEROT, 2005b, p. 94). No Discurso sobre a poesia dramática, capítulo II, pode-se ler: “Ó que benefício não redundaria aos homens, se todas as artes de imitação tivessem um objetivo comum, colaborando um dia com as leis pra nos fazer amar a virtude e odiar o vício!” (DIDEROT, 2005, p. 172). O cavaleiro de Jacourt, quem assina o verbete Tragédia para a Enciclopédia diz exatamente isso: “Os poetas dramáticos dignos de escrever para o teatro sempre viram a obrigação de inspirar o ódio ao vício e o amor pela virtude como a primeira obrigação de sua arte.”

193 agradar seu público criaria um impasse, pois eles seriam constrangidos a dizer coisas que já seriam assentidas e, além disso, atacar paixões já detestadas117.

Em segundo lugar, argumentando em nome da desnecessidade de um artifício como o teatro em defesa da virtude, Rousseau pergunta retoricamente caso seria preciso, de fato, o palco teatral para fazer com que as pessoas se inclinassem em direção ao que é virtuoso: esse não seria um princípio importante de nossa condição moral? (1967, p. 75). No primeiro Discurso, de 1750, a virtude é classificada como ciência sublime das almas simples que, para ser conhecida, não levanta dificuldades e não exige artifícios porque os seus princípios estariam gravados em todos os corações. Nesses termos, para ouvir seus mandamentos, bastaria ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões (1964, t. III, p. 50). O teatro não teria, enfim, a prerrogativa de ensinar sobre os benefícios da virtude e quando ele assim procedesse conseguiria tão somente causar tédio nos espectadores.

Imaginemos que uma pessoa depois de ir ao teatro imite comportamentos virtuosos testemunhados por ela. Isso faria com que estivesse moralmente aperfeiçoada ou seria, como é dito no Emílio, uma virtude de imitação desprovida de moralidade porque o agente apenas seguiu o que outros fizeram? (2004, p. 114). Pior do que isso, pois o macaco, segundo a mesma obra, ao menos imitaria coisas que ele admira, quando os arlequins do teatro imitariam o belo para degradá-lo, para torná-lo ridículo (2004, p. 115). O que estamos acompanhando é a recusa que o teatro, mas também a literatura, pudessem ter uma função social privilegiada de ensinar a moral para as pessoas. Como poderiam mudar sentimentos ou costumes se não podem senão imitá-los em uma postura condescendente? Molière serve como exemplo emblemático: se ele atacou os ridículos das maneiras dos ricos, para Rousseau, ele nunca chocou o público (1967, p. 69). O resultado foi o de que, como é afirmado na Nova Heloísa, os burgueses começaram a imitar – em uma espécie de macaquice moral – os modos dos ricos que eram criticados em cena, pois “o povo, sempre macaqueando e imitando os ricos, vai menos ao teatro para rir de

117 “Imaginei a comédia tão perfeita quanto quiserdes. Onde se encontra aquele que, indo lá vê-la pela

primeira vez, não vá já convencido do que será provado e já prevenido a favor daqueles que se faz amar?”

194 suas sandices do que para estudá-las, e tornar-se mais ensandecidos do que eles ao imitá-los” (ROUSSEAU, 1964, t. II, 2º Parte, Carta XVII, p. 253). Existe ainda um outro argumento contra a pretensão moral do teatro que merece uma análise mais detalhada e que podemos classificar como psicologia do espectador.