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Perdoemos a esse pobre Jean-Jacques quando só escreve para contradizer-se; quando, depois de ter apresentado uma comédia vaiada em Paris, injuria aqueles que fazem apresentar comédias (...) quando clama contra os romances e faz romances cujo herói é um tolo preceptor. (VOLTAIRE, O homem de

quarenta escudos, 2005, p. 481.)

Se algumas vezes minhas expressões têm um aspecto equívoco, procuro viver de maneira que

15Expressão usada por Bruno Bernardi no livro La fabrique des concepts: recherches sur l’invention

conceptuelle chez Rousseau, mas em um contexto diferente. O que importa mais essencialmente é que,

para Bruno Bernardi, assim com tentarei defender no âmbito de sua crítica ao teatro francês, não há em Rousseau uma prevalência do aspecto retórico, circunstancial, sobre o teórico filosófico (2006, p. 12): o que temos é uma complementaridade.

49 minha conduta lhes determine o sentido. (Carta à senhora de Verdelin, de novembro de 1760, citada por Jean Starobinski, 2011, p. 195).

A minha intenção com esse subcapítulo não é sobrepor de alguma maneira o âmbito biográfico ao teórico-filosófico ou abordar de maneira psicologizante as teses teóricas. Contudo, me parece que para marcar o tom envolvendo a crítica à entrada de um teatro em Genebra e o seu fascínio por essa arte, além de precisar os contornos da pertinência e fecundidade das referências teatrais analisadas anteriormente, nada é mais ilustrativo do que tentar aproximar, com cuidado, biografia e tese teórica. Dito de outro modo, acompanharemos Rousseau em uma noite no espetáculo.

A análise desse episódio, a partir da filiação entre experiência de vida e tese filosófica segue tão somente a sugestão fornecida pela correspondência citada em epígrafe. Poderia ainda recorrer, entre outros, ao trabalho de Bronislaw Baczko, quando afirma justamente que as interpretações sobre a gênese e sentido do pensamento rousseauniano não devem separar peremptoriamente a obra e a biografia (1974, p. 49). Pois bem, a história sobre qual gostaria de comentar, cujo relato não foi feito por Rousseau, se passa quando de uma viagem para a Inglaterra no inverno de 1762, na qual ele foi convidado para assistir uma apresentação estrelada pelo famoso ator e diretor David Garrick no teatro Drury Lane, em Londres16.

Sua presença causou alvoroço e a confusão foi tamanha que houve quem perdesse seu chapéu por causa dos empurrões. O próprio casal real, a majestade o rei George III e sua esposa, a rainha Charlotte, foram avisados da ilustre presença do filósofo genebrino e seus olhares teriam buscado antes o famoso homem de letras do que os atores no palco. A peça não conseguiu concorrer com outro espetáculo, o de Rousseau ele mesmo. A senhora Garrick, esposa de David Garrick, que o acompanhava no

16Robert Zaretsky e John Scott, em artigo intitulado Philosophy leads to sorrow: an evening at the theatre

with Jean-Jacques Rousseau and David Hume (2006), falam sobre essa anedota citando, por exemplo,

cartas de David Hume sobre o acontecimento. Raymond Trousson (2011) e Jean Guéhenno (1962), em suas respectivas biografias sobre Rousseau, também mencionam essa ida de Rousseau ao teatro em Londres para assistir à peça estrelada por Garrick.

50 camarote, teria dito ser preciso segurá-lo pela roupa, pois, em um dado momento, ele se aproximara perigosamente do parapeito e estaria prestes a cair por causa da tentativa, segundo se conta, de permitir que o público pudesse vê-lo.

Não é exatamente sobre essa cena perigosa, responsável por explicitar a ousadia do seu amor-próprio aquela em relação a qual nos deteremos. O ponto que mais interessa nessa anedota, aquilo que explicita a atmosfera na qual esta pesquisa se insere, foi o momento em que Rousseau, no fim da peça, teria agradecido o convite e elogiado a performance de David Garrick, dizendo: “Chorei durante sua tragédia, e sorri durante sua comédia, sem conhecer sua língua”. (CRADOCK, 1826, p. 213). Afirmação deveras curiosa, ainda mais quando sabemos que a tragédia representada naquela noite se chamava Zara, adaptação de Zaïre, escrita por Voltaire, um dos grandes desafetos de Rousseau.

Para a possível estupefação do leitor, eis que encontramos, em idade avançada, o autor da Carta a d’Alembert, obra na qual se posiciona rigidamente contra a entrada de um teatro em Genebra, chorando de emoção diante da representação não só de uma tragédia (ele não seria um inimigo dessa arte?), mas uma adaptação de uma obra de Voltaire (ele não seria inimigo de Voltaire?) e, além disso, representada em inglês, língua ignorada por ele (pura afetação?). Caso não seja verdadeira, essa anedota é bastante emblemática porque consegue evidenciar em conjunto as principais dificuldades e mal-entendidos em relação à posição tomada na Carta a d’Alembert.

Diferente do que muitas vezes é dito, tal como a análise do léxico teatral encontrado nos textos rousseaunianos anteriormente feita e a anedota agora narrada ajuda a comprovar, Rousseau estava longe de ser um inimigo do teatro, ainda que tenha recusado sua presença em Genebra. É possível elencar exemplos antigos e mais recentes dessa postura equivocada. Voltaire, por exemplo, usou da ironia e deturpação em relação à postura de Rousseau, perspectiva responsável por iniciar uma interpretação enviesada que tem ecos ainda contemporaneamente. Em uma carta endereçada precisamente a d’Alembert, datada de 2 de setembro

51 de 1758, transcrita na Correspondência Completa de Rousseau, Voltaire fala sobre a Carta a d’Alembert: “Há nele [Rousseau] uma dupla ingratidão. Ele ataca uma arte que ele mesmo exerceu e escreve contra você, que o encheu de elogios (ROUSSEAU, CC, 1967, p. 139). Alguns dias depois, Voltaire escreve para o seu amigo Thieriot, usando um tom mais áspero: “O que significa um livro de Jean-Jacques contra a comédia? Ele se tornou um pai da igreja? (ROUSSEAU, CC, 1967, p. 139). Jean Starobinski adjetiva Rousseau senão como inimigo, como um adversário do teatro (2011, p. 132). Jonas Barish, não muito tempo atrás, levou ao absurdo a ideia sugerida por Voltaire:

Ninguém passou de um tal sucesso extravagante para uma apostasia assim amarga como Rousseau. Ele, que depois do grande sucesso do Adivinho da aldeia e suas outras aventuras em prol de uma carreira teatral, se tornou um dos mais obstinados inimigos que o teatro jamais teve (BARISH, 1981, p. 259).

Veremos como, a partir da tese do movimento pendular, essa é uma interpretação que não se sustenta, caso nos atenhamos à letra e ao espírito do texto. Já foi observado, é verdade, como o teatro aparece enquanto um referente teórico para a reflexão de Rousseau e conforme é afirmado na Carta a d’Alembert ele teria estudado bastante o espírito geral do teatro (1967, p. 98, nota), mas também, ponto fundamental para conhecer esse universo, teria estudado igualmente os homens, como lemos no Livro III das Confissões (1959, t. I, p. 114). Ele recusa essa arte como profundo conhecedor, não a partir de uma posição absoluta e radical, mas enquanto algo que entraria em choque com o interesse do povo genebrino, baseado em um conjunto de princípios bem definidos, com a intenção de aliar o que o direito determina com o que é do interesse do povo.

Em relação a Voltaire, apesar da inimizade recíproca, Rousseau normalmente elogiava a sua habilidade literária e evitava discorrer com outras pessoas sobre suas contendas. Para citar três exemplos, em carta endereçada a Madame de Warens, datada de 13 de dezembro de 1737, vários anos, portanto, antes de nossa anedota, Rousseau chega a dizer que

52 de tão comovido perdeu a respiração diante da representação de uma peça de Voltaire, intitulada Alzire (CC, 1965, p. 48). Na Carta a d’Alembert, ele analisa Zaïre, a versão francesa da peça encenada no Drury Lane no inverno de 1762, conservando um tom elogioso em relação ao autor. Madame de Genlis, em suas memórias, conta que Rousseau teria dito sobre Voltaire que o autor de Mérope e Zaïre deveria possuir, por tê-las composto, uma alma muito sensível (1878, p. 99). Não devemos nos admirar, portanto, se ele gostou da representação.

Sobre o fato de não conhecer inglês e ainda assim ter ficado comovido, não vejo nisso, caso tomemos a anedota como verídica, afetação ou falsidade. Essa reação parece corroborar brilhantemente não só a grande sensibilidade do filósofo genebrino, mas também a fama de excelente ator de David Garrick. Podemos ainda nos perguntar: seria, de fato, preciso compreender a fala dos atores para vislumbrar o tipo de emoção proposto pelas cenas? A entonação das vozes, o gesto do corpo e o semblante do rosto poderiam dar mostras suficientes da paixão responsável por conduzir os atores.

No Ensaio sobre a origem das línguas, logo no primeiro Capítulo, Rousseau diz que a linguagem do gesto, diferente da voz, é mais simples e dependeria de menos convenções. Com efeito, tomando vários exemplos tirados dos antigos, ele defende que a linguagem dos gestos seria mais expressiva e diria mais em menos tempo: “(...) a linguagem mais enérgica é aquela em que o sinal já tiver dito tudo antes de a palavra ter sido proferida.” (ROUSSEAU, 2008, p. 99). Apesar de mostrar em seguida que para inflamar as paixões o discurso articulado pela voz é mais eficaz se comparado ao gesto, para um conhecedor do teatro perceber as sutilezas da pantomima e dali extrair um discurso capaz de comover seria fácil, ainda mais em se tratando da adaptação de uma peça por ele conhecida.

Diderot, grande defensor da reforma do teatro clássico francês e incentivador do uso do aparato gestual no palco, em uma obra como a Carta sobre os surdos e mudos, afirma que se exercitava nos teatros parisienses, para surpresa dos espectadores próximos a ele, tapando seus ouvidos, tentando não escutar o discurso dos personagens de peças já conhecidas

53 por ele, justamente para melhor apreender a qualidade da narrativa proposta pela sua pantomima (1751, p. 59-66). Rousseau teve a vantagem de poder escutar o tom das vozes dos personagens, algo capaz de expressar intensamente alguma emoção.

A anedota da noite de espetáculo no Drury Lane tem grande utilidade. Por meio dela, podemos levantar um problema fundamental e tirar algumas conclusões provisórias que se não encerram a investigação desta tese confirmam a direção que ela deve tomar. Vimos que Rousseau era em maior medida amante do teatro do que desafeto de Voltaire, além de ser um grande conhecedor dos subterfúgios utilizados por essa arte. A anedota aponta ainda para alguém sensível e talvez contraditório, capaz de se comover com uma peça depois de ter tão duramente atacado a ideia segundo a qual o teatro seria uma ferramenta moral capaz de beneficiar os genebrinos. Nos defrontamos, mais uma vez, com um paradoxo: como entender a recusa radical de um teatro para Genebra e as exceções harmonizadoras, a saber, sua própria produção dramática, o assentimento da necessidade de um teatro em Paris e o elogio ao teatro antigo ateniense? Para responder a essa questão e ao mesmo tempo desenvolver a tese do movimento pendular, analisarei a noção de história na economia do texto da Carta a d’Alembert e o modo como o caso particular se conjuga com os princípios do esquema teórico.

A questão da coerência de sua crítica ao teatro francês foi problemática mesmo para ele, pois Rousseau reconhece o aparente paradoxo para o qual chamo atenção em uma obra como as Confissões, quando comenta sobre seu romance A nova Heloísa, um dos mais famosos do século XVIII. Nessa passagem, ele se questiona sobre a harmonia entre sua crítica às artes e sua própria produção literária:

Meu maior embaraço era o acanhamento de me desmentir a mim mesmo, tão clara e altamente. Depois dos princípios severos que eu acabava de estabelecer [na Carta a

d’Alembert] com tanto rumor, depois das máximas austeras

que eu tão fortemente pregara, depois de tantas invectivas contra os livros efeminados que cheiravam a amor e volúpia, era possível imaginar nada mais inesperado, mais chocante, que verem-me, de súbito, inscrever-me por minhas mãos

54 entre os escritores desses livros que eu censurara tão

duramente? (ROUSSEAU, 1959, t. I, L. IX, p. 434).

A percepção de certo paradoxo envolvido na redação de um romance como a Nova Heloísa depois de ter escrito a Carta a d’Alembert é clara, e a passagem comenta sobre o quão chocante sua posição poderia parecer. Rousseau, porém, continua dizendo que “(...) o amor do bem, que nunca me saiu do coração, transformou-as em coisas úteis, que a moral pôde aproveitar” (ROUSSEAU, 1959, t. I, p. 435). Essa justificativa me parece menos evidenciar as acrobacias de um discurso que tenta mascarar suas contradições do que a essência do que eu chamo de procedimento antiofídico, ou seja, fazer do veneno o remédio ou o paliativo para o problema causado por ele mesmo. Voltarei a tratar disso mais detalhadamente.