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Entre o universal e o particular : a crítica de Rousseau ao teatro francês

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

RAFAEL DE ARAÚJO E VIANA LEITE

ENTRE O UNIVERSAL E O PARTICULAR: A CRÍTICA DE ROUSSEAU AO TEATRO FRANCÊS

CURITIBA 2018

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RAFAEL DE ARAÚJO E VIANA LEITE

ENTRE O UNIVERSAL E O PARTICULAR: A CRÍTICA DE ROUSSEAU AO TEATRO FRANCÊS

Tese apresentada ao curso de Pós-Graduação em Filosofia, Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Brandão.

CURITIBA 2018

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS/UFPR – BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS HUMANAS COM OS DADOS FORNECIDOS PELO AUTOR

Elda Lopes Lira – CRB 9/1295 Leite, Rafael de Araújo Viana

Entre o universal e o particular: a crítica de Rousseau ao teatro francês. / Rafael de Araújo Viana Leite. – Curitiba, 2018.

Tese (Doutorado em Filosofia) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Brandão

1. Rousseau, Jean-Jacques, 1712 – 1778. 2. Teatro – História e crítica. 3. Teatro francês. I. Titulo.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Professor Rodrigo Brandão, por todo apoio e ajuda ao longo de quase dez anos, desde a iniciação científica até o encerramento do meu doutorado.

Ao Professor Vinicius Berlendis Figueiredo, pelos comentários quando da minha qualificação e por toda a amizade ao longo dos últimos anos.

À Professora Maria Isabel Papaterra Limongi, que participou da minha defesa de monografia, qualificação de mestrado e de doutorado, pela leitura da minha pesquisa, comentários feitos e generosa ajuda ao longo da minha formação acadêmica.

Ao Professor François Calori, da Université de Rennes I, por ter me recebido muito bem na França, auxiliando na minha adaptação.

Aos professores Ericson Falabretti e Renato Moscateli, por terem gentilmente aceito participarem da banca de defesa.

Aos membros do Grupo de Estudos das Luzes, pelos debates, organizações de evento e conversas fraternais que acontecem desde o ano da minha entrada, em 2009.

Aos meus amigos: eles sabem quem são.

À Kamila C. Babiuki, por todo o apoio, pelas leituras atenciosas dos meus textos e principalmente pelas críticas pertinentes: sem você eu não teria conseguido. Ao meu pai, Ronaldo Viana Leite, pelo apoio e confiança.

Aos meus irmãos, Juliana, Ronaldo e Raquel, por tudo.

Agradeço ainda pela bolsa recebida da CAPES – Demanda social, sem esse auxílio financeiro não teria conseguido me dedicar a este trabalho.

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RESUMO

Pode-se dizer que o século XVIII francês foi um período de querelas, como a dos bufões, a querela sobre o luxo e a dos antigos e modernos. O teatro, tema desta tese, deu lugar a grandes debates sobre o seu valor moral. Procura-se mostrar a relação de Rousseau com o teatro, sua crítica à entrada de uma companhia teatral em Genebra e a relevância filosófica da Carta a d’Alembert, publicada em 1758. De fato, há uma longa tradição conforme a qual ele sempre foi muito criticado, por exemplo por Cícero, Sêneca e Ovídio. Em Genebra, por exemplo, terra natal de Rousseau, ele era proibido por lei. Desde a metade do século, Philosophes como Voltaire, d’Alembert e Diderot - por motivos distintos, é verdade - agitaram suas penas em defesa do benefício social do teatro. Rousseau, como veremos, discorda dessa visão ao mesmo tempo em que inova na crítica aos espetáculos, pois incorpora uma perspectiva antropológica, mas também histórica, psicológica e social na Carta a d’Alembert.

Palavras-chave: Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778. Teatro – História e crítica. Teatro francês.

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ABSTRACT

One can say that the XVIII century was a period of debates, as the debate on the theater, the debate on luxury and the debate on the ancients and the moderns. The theater, our theme of research, was the center of a great quarrel on its moral value. The aim of this thesis is to show the relation between Rousseau and the theater, his critics on the introduction of a comedian company in the city of Geneva and also the philosophical relevancy of the Letter to d’Alembert, published in 1758. In fact, there is a great tradition accordingly, to which the theater was very criticized, for instance, by Cicero, Seneca and Ovid. In Geneva, place birth of Rousseau, it was forbidden by law. Since the half of the century, philosophers such as Voltaire, d’Alembert and Diderot, inspired by different reasons, tried to defend the social benefits of this art. Rousseau, as we shall see, disagrees with this perspective at the same time that he brings something new to the debate on the Letter to d’Alembert, where he puts altogether an anthropological, historical and psychological view. His critics, as I will try to demonstrate, is based on a pendular movement according to which is assembled an ideal and historical perspective. This is important because it helps us to untangle the accusation of contradiction inflicted to the Genevan philosopher that was, at the same time, a theatrical author.

Key-words: Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778. Theater – History and critics. French Theater.

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Sumário

AGRADECIMENTOS ... 3 RESUMO ... 4 ABSTRACT ... 5 APRESENTAÇÃO ... 9 PRIMEIRA PARTE ... 13 CAPÍTULO 1 ... 14

O PROCEDIMENTO FILOSÓFICO DE ROUSSEAU: APROXIMAÇÃO DO TEMA DO TEATRO ... 14

1.1 ENTRE A NORMA E O FATO: ORIGINALIDADE DA CARTA A D’ALEMBERT 26 CAPÍTULO 2 ... 29

ROUSSEAU E O TEATRO: ENTRE A NATUREZA E A HISTÓRIA? ... 29

2.1 A CENA DO MUNDO E A CENA DA VIDA: TEATRO, AUTOBIOGRAFIA E FILOSOFIA EM ROUSSEAU ... 31

2.2 A AUTOBIOGRAFIA COMO MISE EN SCÈNE ... 38

2.3 ROUSSEAU NO TEATRO DRURY LANE ...48

2.4 EM QUE ASSENTO SE ENCONTRA O FILÓSOFO? ... 54

2.5 PANORAMA INTERPRETATIVO DA CARTA A D’ALEMBERT ... 60

CAPÍTULO 3 ...63

SOBRE O MOVIMENTO PENDULAR: ANÁLISE DA NOÇÃO DE NATUREZA HUMANA E FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM ROUSSEAU ... 63

3.1 O SENTIDO DA HISTÓRIA E O CONFRONTO ENTRE DUAS FORMAS DE CULTURA: ANÁLISE DA DISTINÇÃO ENTRE O HOMEM DO HOMEM E O CIDADÃO 82 3.2 SOBRE AS DIFERENÇAS ENTRE OS POVOS ... 87

3.3 CONCLUSÃO DA PRIMEIRA PARTE ...90

SEGUNDA PARTE ...92

CAPÍTULO 1 ...93

UMA ÚLTIMA VISITA, UM NOVO VERBETE: SOBRE A GÊNESE DA CARTA A D’ALEMBERT ... 93

1.1 O VERBETE ‘GENEBRA’ OU UMA SUGESTÃO POLÊMICA ...94

1.2 SOBRE A CIDADE DE GENEBRA: ENTRE A CATEDRAL DE SAINT-PIERRE E O BAIRRO DE SAINT-GERVAIS ... 100

1.3 UMA REAÇÃO NEM TÃO INESPERADA ... 104

CAPÍTULO 2 ... 109

NEM ‘SUTILEZA METAFÍSICA’, NEM ‘TAGARELICE FILOSÓFICA’: SOBRE O PREFÁCIO DA CARTA A D’ALEMBERT ... 109

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2.1 UMA OBRA CONTRA, SOBRE OU A FAVOR DOS ESPETÁCULOS?

APONTAMENTOS SOBRE O TÍTULO DA CARTA A D’ALEMBERT ... 122

2.2 RELIGIÃO OU POLÍTICA? PRIMEIRA PARTE DA CARTA A D’ALEMBERT ... 128

2.3 SEMELHANÇAS DE SUPERFÍCIE, DIFERENÇAS DE BASE: ROUSSEAU E A TRADIÇÃO RELIGIOSA ... 132

CAPÍTULO 3 ... 141

QUESTÃO DE FUNDAMENTO OU PRINCÍPIOS DA ARTE TEATRAL ... 141

3.1 O IDEAL POLÍTICO: ROMA, ESPARTA E GENEBRA ... 145

3.2 O CASO DA FRANÇA ... 153

3.3 PARÁGRAFO 13 OU A LIÇÃO DE ROBINSON CRUSOÉ: EM DEFESA DA MEDIOCRIDADE ... 164

3.4 O PARÁGRAFO 14 DA CARTA A D’ALEMBERT: SOBRE O EMPREGO DA HISTÓRIA ... 170

3.5 DAS COISAS REPRESENTADAS NO TEATRO E DOS SENTIMENTOS SUSCITADOS... 189

3.6 PSICOLOGIA DO ESPECTADOR ... 194

CAPÍTULO 4 ... 208

A FESTA ENQUANTO FUSÃO DOS DOMÍNIOS ESTÉTICO, POLÍTICO E MORAL ... 208

4.1 JOGOS E EXERCÍCIOS PÚBLICOS: ESPETÁCULO DE CONCORRÊNCIA E EMULAÇÃO ... 215

4.2 A FESTA CAMPESTRE ... 218

4.3 FESTA PRIVADA ... 225

4.4 FESTA CÍVICA OU REPUBLICANA ... 229

4.5 FESTA COMO UMA OPERAÇÃO DE GENERALIZAÇÃO ... 232

4.6 CONCLUSÃO ... 240

ANEXO 1 ... 246

TRADUÇÃO ... 246

DISCURSO SOBRE A QUESTÃO: QUAL É A VIRTUDE MAIS NECESSÁRIA AO HERÓI E QUAIS FORAM OS HERÓIS QUE NÃO POSSUÍRAM ESSA VIRTUDE? 246 ANEXO 2 ... 265

TRADUÇÃO ... 265

DA HONRA E DA VIRTUDE... 265

ANEXO 3 ... 275

TRADUÇÃO ... 275

IDEIA DO MÉTODO NA COMPOSIÇÃO DE UM LIVRO ... 275

ANEXO 4 ... 283

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NARCISO, OU O AMANTE DE SI MESMO ... 283 REFERÊNCIAS ... 330

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APRESENTAÇÃO

Busca-se nesta tese aprofundar a compreensão da relação entre Jean- Jacques Rousseau e o teatro. O horizonte teórico no qual esta pesquisa se insere está conectado tanto a uma análise do vocabulário empregado pelo autor estreitamente ligado ao universo teatral, quanto à investigação de sua crítica apresentada na Carta a d’Alembert, publicada em 1758. Parte do meu objetivo é mostrar como essa obra não é apenas um texto de circunstância, mas possui relevância filosófica e pode ser incorporada ao corpus rousseauniano. Além disso, defenderei como a crítica ao teatro francês não se compromete com a defesa de um espetáculo que poderia ser descrito como natural em contraposição a uma espécie de arte social e por isso corrompida. A crítica às artes não impede, ao fim e ao cabo, que seja ainda pela arte, na forma da festa cívica, que o corpo político, ele também fruto da arte, possa ser preservado por meio do fortalecimento do liame social. Não estamos propriamente diante da escolha entre a natureza ou a cultura, como na verdade entre dois tipos de cultura.

Esta pesquisa se divide em duas partes principais: a primeira lida com a noção de teatralidade na obra do filósofo genebrino e apresenta as premissas filosóficas da recusa à entrada de uma companhia de teatro na cidade de Genebra. A segunda, por sua vez, promove uma aproximação, contextualização e análise dos argumentos levantados na Carta a d’Alembert.

No capítulo 1 da primeira Parte evidencio a chave de leitura com a qual analisarei a Carta a d’Alembert. Dito de modo breve, deter-me-ei em uma característica elementar do procedimento filosófico de Rousseau, aspecto responsável por conduzir não só as suas reflexões propriamente ligadas aos princípios do direito político, como também a maneira conforme a qual o tema do teatro é abordado. Refiro-me a um procedimento filosófico colocado em movimento a partir de uma estrutura pendular pela qual se passa do ideal (normativo) para o caso particular (histórico). Essa análise serve como argumento capaz de corroborar a originalidade da posição do autor na querela do teatro.

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10 No capítulo 2, exploro o modo pelo qual a noção de teatro é empregada por Rousseau para compor seu arsenal retórico representado por metáforas e adjetivações ligadas à dramaticidade, e também para ambientar a descrição de sua vida e personalidade nas obras autobiográficas. Veremos ainda como o teatro é um referente teórico para a reflexão filosófica quando, por exemplo, Rousseau percebe na sociedade e na vida política um mecanismo de funcionamento estreitamente ligado à arte teatral, algo capaz de sinalizar o amplo campo semântico no qual a noção de teatralidade pode ser inserida.

O terceiro e quarto capítulos promovem a análise das premissas teóricas de Rousseau em relação à crítica ao teatro. Meu objetivo nesses dois capítulos é expor, de modo não exaustivo, a noção de natureza humana, filosofia da história e de antropologia, sem as quais a crítica ao teatro francês perde parte importante do seu fundamento. Encerrada a Primeira Parte com a exposição de elementos essenciais desta investigação, seja do ponto de vista metodológico, seja interpretativo, inicia-se a Segunda Parte, responsável por analisar de modo mais específico a crítica ao teatro francês, tendo como chave de leitura a tese do movimento pendular.

O capítulo 1 da Segunda Parte investiga a gênese da Carta a d’Alembert, inserindo a obra em seu contexto adequado, ou seja, político, e o segundo, por sua vez, analisa pormenorizadamente o Prefácio da obra para corroborar o tipo de intervenção característica da crítica de Rousseau à sugestão de d’Alembert para que Genebra aceitasse uma companhia de teatro do tipo francês dentro dos seus muros. O capítulo 3 percorre e explicita os argumentos mais importantes da obra para compreender o procedimento filosófico que nela é executado.

O último capítulo é dedicado à análise da noção de jogos públicos, festa campestre, particular e cívica em Rousseau. A intenção é a de propor uma nova interpretação a partir da qual é possível esclarecer o modo como a noção de festa cívica é empregada enquanto ideal político no que diz respeito às formas de espetáculo adequadas para uma República. A importância política da festa é crucial, pois cria um ambiente propício para a consolidação e visibilidade do que há de comum nos diversos interesses dos componentes da comunidade. Nesse último capítulo, defenderei que a festa promove a generalização das vontades particulares, de ordem privada, em direção ao bem comum, cujo resultado é

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11 justamente uma possibilidade de manifestação da vontade geral do corpo político na forma do fortalecimento do liame social, ou seja, aquilo que de comum há entre os membros de uma comunidade.

Espera-se mostrar como a noção de teatralidade e de espetáculos perpassa a quase completude da obra de Rousseau, desde a construção dos textos autobiográficos até a própria ideia de corpo político que, como argumentarei, pode ser entendido como um espetáculo dirigido pelo maior artista de todos, o legislador. A crítica às artes não contradiz a produção dramática de Rousseau, pois faz parte de um movimento pendular responsável, como será visto, por conjugar o que é da alçada do ideal com o que é do âmbito histórico. Minha tese é a de que mesmo se o desenvolvimento das artes suscita problemas de ordem moral e política quando estimula a ambição individual e o egoísmo, será, não obstante, a própria arte, em sua versão politicamente aperfeiçoada, o instrumento utilizado para que a sociedade possa expressar uma unidade coerente a partir dos seus múltiplos componentes ou mesmo refrear um processo de corrupção em relação ao qual não se pode retrogradar.

*

Todas as citações de obras em língua estrangeira foram traduzidas por mim. Das obras de Rousseau, utilizei, salvo poucas exceções, como o Emílio e o Ensaio sobre a origem das línguas, a edição da Pléiade em cinco tomos. As referências se configuram pelo nome do autor, ano de publicação da obra, tomo em que ela se localiza, página e, quando essa informação não estiver suficientemente clara, o Capítulo ou Livro no qual a passagem se encontra. Assim, no caso do Contrato social, a referência será, a título de exemplo: (ROUSSEAU, 1964, t. III, L. I, Cap. II, p. x).

As notas de rodapé, algumas de tamanho considerável, possuem a função de remeter o leitor à passagem completa de algum trecho analisado ou apontar trabalhos pertinentes para aprofundamento de alguma questão tratada apenas secundariamente por mim. Elas podem, ainda, fornecer apontamentos de ordem histórica ou biográfica para munir o leitor cujo interesse é o de conhecer mais detalhadamente dados importantes, mas que não são essenciais para esta pesquisa ou a tornariam excessivamente informativa.

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12 Por fim, na esperança de que esta tese de doutorado possa contribuir para o debate teórico sobre o tema do teatro em Rousseau, mas também alcançar uma participação de ordem mais prática, acrescentei como anexo traduções de Rousseau feitas por mim. Elas foram previamente publicadas ou já foram aceitas para publicação em revistas de filosofia após avaliação de pareceristas. A ideia é a de disponibilizar em conjunto aos leitores de língua portuguesa e estudantes interessados na filosofia das Luzes traduções de textos importantes para a realização desta investigação.

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CAPÍTULO 1

O PROCEDIMENTO FILOSÓFICO DE ROUSSEAU:

APROXIMAÇÃO DO TEMA DO TEATRO

Meu objetivo é conhecer o homem, e meu método é estudá-lo em suas diversas relações. (ROUSSEAU, Nova Heloísa, Carta XVI, escrita por Saint-Preux, Segunda Parte, 1952, t. II, p. 242).

A intenção deste capítulo é explicitar a presença de um procedimento filosófico característico a Jean-Jacques Rousseau, e que se faz perceber na Carta a d’Alembert. Essa estratégia busca lançar novas luzes no que diz respeito à relevância filosófica de uma obra que foi relegada à categoria de escrito de ocasião, portanto, sem importância para a filosofia rousseauniana. Como será mostrado, a crítica ao teatro francês é conduzida a partir de elementos estruturais encontrados em obras consideradas como as mais importantes do autor. Outro ponto a ser comentado, introdutoriamente, é a originalidade da crítica proposta na Carta a d’Alembert.

Ao longo do Contrato social, publicado em 1762, Rousseau propõe um movimento argumentativo responsável por levar o leitor pendularmente do âmbito da norma ou do dever ser para aquele do fato histórico, caracterizado pela variabilidade da circunstância. Assim, logo na abertura do Livro I, o objetivo da obra é exposto como sendo o de procurar na “ordem civil”, inserida na história enquanto convenção humana, algo de “legítimo e seguro”, o que nos encaminha para outro registro, o normativo1. Entendo ‘ordem civil’ como algo ligado à

história, ou seja, conectado a questões contingentes, apoiado predominantemente no que se pode ler no Contrato social, Livro I, Capítulo I. Assim, quando se fala em ‘ordem social’ não estamos lidando com um tipo de direito que venha da natureza, mas que é fundado em convenções (1964, t. III, p. 352). O ritmo da leitura da obra é frequentemente marcado por esse procedimento, como se pode observar pela explicitação do método conforme o

1 A passagem completa é tal como segue: “Quero procurar se na ordem civil pode haver alguma regra de

administração legítima e segura, tomando os homens tais quais são e as leis tais quais elas devem ser. Me esforçarei sempre, nessa pesquisa, em aliar o que o direito permite ao que o interesse prescreve, para que não fiquem separadas a justiça e a utilidade.” (ROUSSEAU, 1964, t. III, p. 351).

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15 qual a investigação será conduzida, tomando “os homens tais quais são”, ou seja, como historicamente são percebidos, e já quanto às leis, elas serão tratadas do ponto de vista de sua legitimidade, “tais quais elas podem ser”.

É precisamente essa movimentação entre o ‘poder ser’ e ‘o que é’, entre o ‘direito’ entendido como norma e o ‘interesse’ de acordo com sua manifestação em termos do que é mais oportuno que chamo de pendular, tal procedimento tem como característica básica promover, veremos ainda de que modo, a conjugação do ideal com o que é empiricamente viável, em acordo com os termos do Contrato social, “aquilo que o direito permite com o que o interesse prescreve”, unindo dessa maneira a justiça e a utilidade (ROUSSEAU, t. III, 1964, L. I, Cap. I, p. 351). O que tudo isso teria a ver com o teatro é o que se trata de saber.

É possível encontrar uma postura balizada pelo mesmo movimento pendular já na Carta a d’Alembert, de 1758. Interpreto, portanto, o horizonte de reflexão dessa obra a partir de uma divisão entre dois polos que se conjugam. Temos de um lado o caso particular e, de outro lado, o ideal, que pode ainda ser dividido em dois: o antropológico e o político. O primeiro tem como marco a natureza e o outro se apoia nos princípios do direito político. Tanto um quanto outro são participantes de um espectro teórico compreendido enquanto constituinte da normatividade. A diferença entre eles é que a natureza se vincula a uma perspectiva concernente à constituição humana, responsável por ser o ponto de referência antropológico para apreciação do caso particular em sua especificidade. Enquanto que os princípios do direito político dizem respeito a um parâmetro humano, fruto da arte política, cujo objetivo é fornecer a norma quanto às leis, à constituição do povo e do Estado, o que vemos acontecer no Contrato social.

No interior da Carta a d’Alembert, a norma política é manifestada pelo princípio de liberdade e igualdade encontrado, segundo Rousseau, entre os genebrinos. Já quanto aos espetáculos, importa dizer, a norma política será representada pela festa cívica, considerada legítima e apropriada para uma República em contraposição ao ambiente exclusivista do teatro francês. A conclusão desse esquema, cujo movimento se dá em uma conjugação entre o ideal e o particular, é dado pelo parágrafo 194 da Carta a d’Alembert, quando se

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16 afirma que não devemos procurar nas sociedades existentes pelo sumo bem, quimera da perfeição, mas pelo melhor possível conforme a natureza do homem e a constituição da sociedade (1967, p. 210-211). Entre o ideal e o factível existe, portanto, uma distância importante.

A questão envolvendo a entrada de um teatro na cidade de Genebra, como é dito no parágrafo 168 da Carta a d’Alembert, é algo capaz de ameaçar a liberdade pública (1967, p.189), o que traz o debate para o âmbito da administração estatal. O parágrafo 214 esclarece ainda que esse acontecimento seria algo importante a ponto de merecer toda a atenção do governo (1967, p. 231). O modo pelo qual a questão é localizada é suficientemente claro: estamos em um terreno político. Posto isso, lembro ainda que no parágrafo 14, como será analisado adiante, foi estabelecido o método pelo qual o teatro seria abordado. Algo sintomaticamente semelhante a algumas fórmulas encontradas posteriormente no Contrato social. Penso no Livro III, Capítulo IX quando o autor mostra que se questionar de modo absoluto qual seria a melhor forma de Governo é uma pergunta “tão insolúvel quanto indeterminada ou, em outras palavras, ela tem tantas boas soluções quanto há combinações possíveis nas posições absolutas e relativas aos povos.” (ROUSSEAU, 1964, t. III, p. 419). O parágrafo 14 da Carta a d’Alembert procedeu praticamente da mesma forma quando estabelece que perguntar se o teatro é bom ou mau nele mesmo é se colocar uma questão vaga, fixar uma relação sem ter estabelecido os termos, pois seria preciso entender antes o contexto social, político e moral do povo para o qual esse divertimento está sendo oferecido. Como o teatro é feito para o povo, é justamente a partir dos seus efeitos sobre ele que se pode medir suas qualidades absolutas (1967, p. 66-67).

A coincidência de formulação não é fortuita. Ora, é conjugando o que prescreve o direito político com as especificidades dos genebrinos, que se movimenta a crítica à entrada de um teatro francês na cidade natal de Rousseau. Para tanto, é preciso saber o nível de desnaturação pela qual esse povo passou, o que só é desvelado com o devido ponto de referência antropológico, baseado na constituição humana em seu aspecto universal. Voltarei a tratar disso. Para o momento, ressalto que a pluralidade das formações políticas é ainda menor do que o grande número de espetáculos possíveis, de modo que dizer qual seria o

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17 melhor deles, de um ponto de vista universal, diz respeito a um tipo de questionamento vago: diante da pergunta ‘qual a melhor forma de espetáculo?’ é preciso adicionar uma outra conforme a qual se questiona: ‘para que povo?’.

Não se trata, pois bem, de um relativismo ou casuísmo. Se Rousseau diz que a questão sobre o governo ou o teatro está mal colocada quando nos limitamos ao sumo Governo ou ao sumo Espetáculo, é porque seria preciso proceder ao movimento pendular, isto é, seria preciso aliar a norma (o ideal) com o caso particular. A compreensão desse procedimento permite que se possa entender o alcance e o sentido da Carta a d’Alembert sob a luz da produção literária rousseauniana. Isso significa, em termos práticos, que esta pesquisa tem três objetivos específicos, a saber, a chave de leitura exposta por mim servirá para que, primeiramente, se compreenda a originalidade da obra na querela sobre o valor moral do teatro; em segundo lugar, podemos explicitar desse modo como a Carta a d’Alembert faz parte integrante do corpus filosófico do cidadão de Genebra. Não se trata, portanto, de um texto meramente circunstancial, caracterização apressada que talvez seja a responsável pela ausência de uma análise detida dessa obra na maior parte dos comentários de conjunto a respeito do pensamento de Rousseau. Assim, caso o percurso seja realizado com sucesso, será possível resolver definitivamente o paradoxo envolvendo a crítica à entrada de um teatro em Genebra desferida por um músico e autor dramático. Exploremos com mais detalhes o movimento pendular, para desse modo marcar o fio condutor das análises que serão realizadas sobre a crítica ao teatro francês elaborada por Rousseau. Essa chave de leitura não é original, apesar de não ter sido suficientemente explorada quanto à questão teatral. Um dos primeiros a empregá-la provavelmente foi Gustave Lanson, no primeiro decênio do século XX, no artigo L’unité dans l’ œuvre de Jean-Jacques Rousseau, ao indicar, sem muito desenvolvimento, o modo como algumas oscilações na posição do filósofo seriam devidas à articulação entre o que é estipulado pela teoria em confronto com a realidade de cada povo. De fato, o Contrato social defenderá teses mais radicais do que um texto como as Considerações sobre o governo da Polônia, publicado postumamente em 1782. Para Gustave Lanson, se as soluções apresentadas em nível ideal mudaram uma vez inseridas no

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18 plano circunstancial, foi porque os problemas concretos já não eram os mesmos (1912, p. 24).

Sem pretender uma análise exaustiva da história dessa linha de interpretação, vale ainda citar Bronislaw Baczko, que no livro Communauté et solitude menciona o fato de que Rousseau vai além das contradições aparentes quando o leitor percebe a questão por trás das oscilações da sua posição: ‘seria possível conciliar os princípios com as realidades concretas?’ Quanto ao povo da Polônia, seria necessário averiguar se a sua situação política e social suportaria a aplicação dos princípios do Contrato social (1974, p. 414), o que não acontece de maneira límpida. São vários os autores que se serviram dessa abordagem. Roger Masters, Jean-Louis Lecercle e Charles Edwyn Vaughan são outros exemplos que merecem menção2. Victor Goldschmidt, também ele, em

um texto como Rousseau et le droit, mostra como o Contrato social exibe uma divisão fundamental entre o que se pode chamar de essência enquanto norma e, de outro lado, a existência entendida como fato histórico (1984, p. 145).

Não poderia deixar de mencionar que no Brasil temos excelentes trabalhos responsáveis por explorar e levar adiante essa interpretação. Luiz Roberto Salinas Fortes, no livro Rousseau: da teoria à prática, publicado em 1976, desenvolve brilhantemente a deixa de Gustave Lanson e Bronislaw Baczko ao resolver esse problema de contradição até então recorrentemente imputado à reflexão política de Rousseau. A partir da ideia de complementaridade entre o nível da teoria e o da prática, Luiz Roberto Salinas Fortes mostra, com a ajuda da ideia de público abstrato e público localizado, como é possível compreender o modo pelo qual o âmbito normativo, em Rousseau, não iria contra os textos circunstanciais. Posteriormente, Milton Meira do Nascimento no artigo intitulado O Contrato social: entre a escala e o programa, de 1988, se vale dessa mesma linha de interpretação ao distinguir o âmbito da escala ou ideal e, de outro lado, aquele entendido como programático no pensamento político do autor do Contrato social. Privilegiarei nesse movimento do texto basicamente o que essa

2 Refiro-me, em ordem de publicação, ao The political writings of Jean-Jacques Rousseau, de Vaughan

(1915, p. 77); à Introdução de Jean-Louis Lecercle ao Contrato social (Éditions sociales, 1963, p. 30-31) e ao texto de Roger Masters intitulado The political philosophy of Rousseau (1968, p. 305-306). Remeto o leitor ainda ao capítulo 3 da tese de doutorado de Thomaz Kawauche, quando ele traça um panorama da interpretação desses três autores (2011, p. 114-115).

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19 linha de interpretação tem de mais interesse para entender a crítica ao teatro francês: a conjugação entre a norma e o caso particular.

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A tese antropológica responsável por expor o assunto do Livro I, Capítulo I do Contrato social emprega a mesma movimentação argumentativa até agora sublinhada. De uma perspectiva ideal, afirma-se que “o homem nasce livre” e, efetivamente, essa tese é constituinte do discurso antropológico do autor. Contudo, historicamente é possível observar algo contrário a isso, a saber, que “em toda a parte ele encontra-se preso”. (ROUSSEAU, t. III, 1964, p. 351). Não é essa a mesma formulação que vemos na abertura do Emílio, empregando, porém, termos distintos? “Tudo está bem quando sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem.” (ROUSSEAU, 2004, p. 7). Aqui o pêndulo, interessa notar, não é exatamente entre os princípios do direito político e o interesse, mas entre a instância divina e as realizações humanas em sua manifestação histórica. No caso do Emílio, não se trata de rejeitar peremptoriamente o que é mundano em nome do divino, em uma saída talvez do tipo agostiniana, mas sim enfatizar o caráter essencialmente corruptível de tudo aquilo que depende das vontades humanas e se estrutura no consentimento dos indivíduos3. Do ponto de vista político, o resultado não poderia ser mais

importante: que não se queira conferir aos governos uma firmeza que está além do que comportam as coisas humanas, dirá Rousseau no Livro III, Capítulo 11 do Contrato social (1964, t. III, p. 424).

Voltemos ao Emílio. Como afirma o texto do Livro I, o ideal para a criança, de uma perspectiva educacional, é ser educada pelo pai. Rousseau antecipa, todavia, uma réplica segundo a qual seria complicado para a figura paterna dedicar-se a uma tarefa desse porte, devido aos “negócios, os serviços, os deveres (...).” (ROUSSEAU, 2004, p. 26). Assentindo à demanda do seu leitor hipotético, o filósofo propõe que se escolha um amigo ou alguém de confiança para executar a tarefa de educador. O ponto que me interessa mais sensivelmente é o de que ao ceder diante da réplica, assentindo à utilização de

3 Sobre a oposição entre o que é mundano e eterno em Agostinho ver, por exemplo, o Livro I da obra O

Livre arbítrio (1995). O pecado é ali definido como desejo culpável, ou seja, o apego pelas coisas mundanas

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20 um preceptor em detrimento do pai, já estamos em um caminho da atribulação, isto é, ao largo do que a norma propõe e longe de ser uma exceção adaptar a norma ao caso particular, é antes o caminho por onde percorre a maior parte das ações realizadas por nós, seja do ponto de vista doméstico, político ou social. Não há, por certo, uma perspectiva político-moral que seja atemporal ou aplicável imediatamente ao caso particular. Ao contrário, seja uma norma moral ou os princípios do direito político, ambas devem ser apreendidas como um elemento a ser explicitado no interior de certo contexto histórico ou político específico.

Esse aspecto é bem exemplificado pela figura do legislador, dado que a sua excelência se encontrará justamente na capacidade de saber equilibrar a norma e o fato histórico, fornecendo não as melhores leis, porém, as mais apropriadas ao povo para o qual elas são apresentadas. Essa postura aparece pela primeira vez antes mesmo do Contrato social, pois já no parágrafo 110 da Carta a d’Alembert Rousseau afirmara que uma boa legislação é, do ponto de vista teórico, facilmente encontrada. Entretanto, a grande dificuldade aparece no momento de sua aplicação. Tanto em 1758 quanto em 1762, o que dará sinais de um bom legislador será a sua capacidade de adequar as leis, tomadas em sua legitimidade, com as especificidades do povo para o qual elas foram feitas, ou seja, pensando no que vai ao encontro do seu interesse. A mesma coisa poderia ser dita sobre o teatro.

Meu objetivo neste capítulo é sobretudo colocar em evidência o fato de que existe no esquema de Rousseau um procedimento filosófico característico de sua reflexão. A norma é estabelecida por uma dupla via, pelo que prescreve a natureza e aquilo que é proposto pelos princípios do direito político em confronto com o caso particular. Gostaria de chamar atenção para o fato de que entre o âmbito normativo e o caso particular, entendido como sendo a maneira pela qual se dão as ações humanas, existe uma tensão perene, construída pelo uso da liberdade e da perfectibilidade, que é uma faculdade ou, mais propriamente, uma atitude que em confronto com as circunstâncias ajuda a desenvolver a imaginação e a razão, como é dito no parágrafo 4 da Primeira Parte do Discurso sobre a desigualdade (1964, t. III, p. 142). Em conjunto com a liberdade, a perfectibilidade funciona como um vetor capaz de iniciar uma nova

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21 direção independentemente do que indica a natureza ou as normas do direito político. Essa tensão só é capaz de ser harmonizada, mesmo que temporariamente, por intermédio da arte política, entendida como técnica, artifício humano balizado pelo consentimento dos participantes e que promove a conjugação entre o direito e o fato.

O final do Capítulo I, Livro III do Contrato social merece destaque, pois mostra o modo pelo qual a relação entre a norma e o fato é conflituosa, ou seja, não se pode simplesmente aplicar limpidamente o que está no nível do direito ou do ideal no caso particular, sem dar a devida atenção às suas especificidades. Essa perspectiva é fundamental e a partir dela é possível compreender o que está em jogo quando se pensa na produção literária de Rousseau e sua crítica às artes. O problema da articulação entre o melhor e o mais oportuno (entre o direito e o interesse) apresenta-se de tal modo que, para Rousseau, “o melhor Governo em si mesmo [pode] tornar-se o mais vicioso, se suas relações não forem alteradas segundo os defeitos do corpo político ao qual pertence”. (ROUSSEAU, 1964, t. III, p. 400). No Livro II, Capítulo X do Contrato social são apresentadas as várias condições que tornariam um povo próprio para receber uma boa legislação. Mais de dez são elencadas e, além disso, seriam muito difíceis de serem todas reunidas (1964, t. III, p. 390-391). A norma, portanto, entra em uma relação no mais das vezes de impossibilidade com o fato histórico. A lição a ser tirada é importante: é preciso coadunar os princípios delimitados pela norma com as exigências específicas do caso particular. Se pensarmos na situação da Europa do século XVIII, conforme Rousseau, apenas um país seria capaz de receber uma boa legislação, a ilha de Córsega (1964, t. III, p. 391). Seguindo essa perspectiva, podemos dizer que a festa cívica, mesmo sendo a melhor forma de espetáculo do ponto de vista do direito político, seria inadequada, todavia, para uma cidade com as caraterísticas de Paris precisamente por causa dos defeitos próprios a essa sociedade.

Tudo se passa como se estivéssemos falando de arquitetura. Assim como o arquiteto não pode simplesmente aplicar seu projeto em certa localidade sem antes verificar as características do solo escolhido para saber se vai ao menos conseguir sustentar a construção, aquele que institui boas leis não deve abordá- las somente nelas mesmas, mas sim examinar se o povo para o qual ele as

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22 destina pode suportá-las, conforme se lê no Contrato social (1964, t. III, L. II, Cap. VIII, p. 384-385). O mesmo se dá com a instituição de novas formas de espetáculo, como se pode notar pela concessão polêmica feita no parágrafo 107 da Carta a d’Alembert: “Assim, mesmo se for verdadeiro que os espetáculos não são maus neles mesmos, teríamos sempre que procurar saber se eles não o seriam para o povo ao qual eles são destinados.” (ROUSSEAU, 1967, p. 139). Para Rousseau, d’Alembert não teve o tipo de preocupação do arquiteto ao sugerir que os genebrinos deveriam aceitar em sua cidade um divertimento moldado para os parisienses, sem antever os perigos que uma mudança como essa poderia trazer.

Se o teatro não é aceito em Genebra é porque não há compatibilidade entre o princípio republicano de autonomia política, a pobreza, a pequena extensão de sua comunidade, enfim, a simplicidade com a qual conduziriam suas vidas e, de outro lado, a atmosfera altamente desigual e luxuosa do chamado palco à italiana visto na Comédie française, o principal palco de Paris no século XVIII. Empregando uma analogia agora de ordem médica, Rousseau explicita a mesma dificuldade de conjugação entre a norma e o caso particular da seguinte maneira: assim como o regime das pessoas saudáveis não é próprio aos doentes, do mesmo modo não se deve governar um povo corrompido pelas mesmas leis com as quais se dirige um povo virtuoso. (1964, t. III, L. IV, Cap. IV, p. 452-453).

Essas duas imagens fornecidas por Rousseau, a do arquiteto e a da dieta médica, são pistas importantes capazes de evidenciar a ausência de contradição, casuísmo ou relativismo quando ele diz, por exemplo, que para uma cidade como Paris, diferente de Genebra, seria necessário manter o teatro à italiana. Acrescente-se a isso as peças musicais e uma comédia, Narciso, oferecidas ao público parisiense por Rousseau. Diante de nós apresenta-se não uma contradição, mas, como já afirmei, a tentativa, em um movimento pendular, de conjugar os princípios constituintes da norma com as exigências do caso particular.

O direcionamento responsável por mover esta pesquisa parece agora claro: para compreender a crítica ao teatro francês sob a luz da produção literária de Rousseau é preciso saber coadunar os princípios teóricos com a variabilidade

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23 dos casos particulares, movimento que chamo de pendular para preservar o equilíbrio entre os dois polos e marcar, além disso, sua complementaridade.

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Até aqui se pode afirmar que entre a norma e o fato ou, se quisermos, entre a natureza e a cultura existe uma distância insuperável. Diante disso, não se trata – outra coisa que tentei ressaltar – de tentar aplicar o ideal, a nível de direito, em um âmbito histórico-positivo por via de sobreposição, e nem avaliar o que é de direito baseado unicamente no fato, um raciocínio que entende como legítima a escravidão porque ela existiu em alguns lugares. Ao aplicarmos esse esquema em um texto como o Discurso sobre as ciências e as artes, de 1750, é possível perceber melhor o exato emprego dos argumentos levantados. O diagnóstico severo feito a respeito da sociedade de corte parisiense no chamado primeiro Discurso, pautado por um critério de virtude a partir do qual se valoriza a ausência de artifícios e a simplicidade de comportamento, está bem distante de indicar, em nível prático, a tentativa de constranger os parisienses a se tornarem um grupo de camponeses suíços. Até mesmo porque, caso se tome nas mãos o parágrafo 108 da Carta a d’Alembert, a conclusão a que Rousseau chega é a de que o teatro francês é bom para um povo corrompido, e ruim para um povo bom (1967, p. 140), posição que encontra ressonância no Prefácio a Narciso e será devidamente analisada adiante. Não se trata tanto de propor uma reforma ou revolução quanto de diagnosticar um problema moral e político.

Vimos como a norma pode se apresentar tanto como o que é de direito face a circunstância em sua pluralidade, como no Contrato social, mas também como aquilo que é originário, natural, em face da história, considerada como resultado de um processo de acúmulo de conhecimento em forma de cultura. Essa última perspectiva é explorada no Emílio e ainda no Discurso sobre a desigualdade, de 1755. O que coloca em marcha a narrativa do chamado segundo Discurso é precisamente o movimento cujo objetivo é delimitar, de um lado, o que é originário ao homem (o que chamei de normativo do ponto de vista antropológico) e o que é histórico\circunstancial em nível de cultura, isto é,

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24 Rousseau se propõe diferenciar o que pode ser atribuído à natureza e o que é devido ao artifício humano (1964, t. III, p. 125).

O segundo Discurso é dividido em duas partes cuja complementaridade autoriza a tese pendular: na Primeira Parte temos o estabelecimento da noção de natureza, ou seja, o que é essencial à constituição humana a partir do hipotético estado de natureza. A Segunda Parte, por sua vez, propõe narrar os caminhos percorridos pela desigualdade em sua manifestação histórica. O leitor acompanha, portanto, um encadeamento argumentativo recheado de tensão que o leva da elaboração de um ponto de referência abstrato para a investigação, em outro registro, do processo histórico pelo qual se desenvolve a desigualdade política e moral. O modo como Rousseau retraça o caminho teórico percorrido por ele no final da Primeira Parte do segundo Discurso e, ao mesmo tempo, aponta para onde sua investigação será conduzida permite claramente a divisão pendular por mim proposta: “Após ter provado que a desigualdade é dificilmente perceptível no estado de natureza, e que sua influência ali é quase nula, resta- me mostrar sua origem e os seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos do espírito humano.” (ROUSSEAU, 1964, t. III, p. 162). O estado de natureza faz parte do polo normativo, abstrato, pois é hipotético-racional, o que significa que estamos tratando de algo necessário e universal. Contudo, quanto aos progressos da desigualdade, tais quais são analisados na segunda metade da obra, esses são incontestavelmente de ordem histórica, âmbito de contingência porque é estruturado pelo uso da liberdade humana, conduzido pelas vontades dos indivíduos.

Ainda que esses dois polos responsáveis por dar vida ao movimento pendular não possam ser sobrepostos sem intermediação há, por certo, uma complementaridade, carregada de tensão, entre direito e história, a norma e o fato ou ainda entre a natureza e a cultura. É o que me resta deixar claro nesta parte da investigação: de que modo exatamente se complementam ou se conjugam esses dois âmbitos.

A formulação poderia ser feita em forma de pergunta: por qual motivo conjugar âmbitos claramente opostos? A imagem do arquiteto e da dieta médica usadas por Rousseau apontaram a direção da resposta, agora é hora de aprofundá-la. O segundo Discurso chama atenção para a importância do

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25 estabelecimento de uma norma de ordem abstrata, nunca atualizada, cuja serventia é, todavia, fundamental, a saber, ter um ponto fixo a partir de onde se pode melhor abordar e valorar o caso histórico. É por isso que a respeito do estado de natureza, mesmo sendo hipotético, é preciso ter dele “noções exatas para bem julgar o nosso estado presente.” (ROUSSEAU, 1964, t. III, p. 125). A complementaridade entre o abstrato e o concreto é da ordem da orientação. Exploremos essa ideia.

No último Livro do Emílio, de 1762, o mesmo procedimento pendular será retomado de modo mais detalhado, e merece nossa análise a título de conclusão deste movimento do primeiro capítulo. Refiro-me ao Livro V, quando é feito um resumo do que será discutido no Contrato social. Rousseau defende a importância do emprego de uma escala, mesmo que ela esteja enclausurada no reino da possibilidade nunca atualizada, pois nos permitiria entender o modo pelo qual o homem foi constituído e também, do ponto de vista político, a maneira pela qual as instituições humanas podem ser legítimas. Ora, essa escala, a qual podemos também chamar de norma, serviria como uma espécie de ponto de referência a partir de onde é possível atribuir à história das instituições políticas uma valoração positiva ou negativa. Conforme afirma o texto, quem quiser conhecer de modo sadio os governos precisa conhecer ‘o que deve ser’ para assim bem julgar a respeito ‘do que é’ (2004, p. 677). Tomemos o caso do viajante, se o leitor permitir uma terceira imagem para fins de analogia, dessa vez feita por mim. Somente pelo fato de que o viajante não pode alcançar com suas mãos a estrela polar isso não significa que ela não seja fundamental de um ponto de vista prático. Afinal de contas, ela lhe permite posicionar-se em relação ao norte e direcionar-se de modo coerente por entre os caminhos concretos por onde passam seus pés.

O resultado dessa postura filosófica é estratégico para direcionar os esforços de investigação desta tese: para Rousseau, antes de observar o desenrolar da história, de voltar a atenção para a sociedade da qual se é parte com o objetivo de, por exemplo, propor algum diagnóstico ou intervenção, é preciso “estabelecer regras para as observações, é preciso fabricar uma escala para nela marcar as medidas que se tiram.” (ROUSSEAU, 2004, p. 677). Essa escala não poderá simplesmente ser sobreposta ao caso particular, como vimos

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26 no caso da legislação, das formas de Governo e tal qual ocorre, como veremos, com a questão do teatro justamente porque é preciso coaduná-la com as especificidades do caso particular.

1.1 ENTRE A NORMA E O FATO: ORIGINALIDADE DA CARTA A D’ALEMBERT

A novidade da crítica rousseauniana ao teatro francês, tal qual formulada na Carta a d’Alembert, não é apenas sua perspectiva eminentemente política, ponto já abordado em mais de um estudo, mas também e principalmente sua estrutura pendular. A crítica ao teatro se apresenta a partir de um movimento argumentativo entre duas perspectivas, a saber, a universal ou normativa, representada pela ideia um corpo político legítimo, e uma perspectiva que pode ser classificada como circunstancial por ser histórica, portanto, contingente.

Quando não se preserva esse procedimento filosófico, corre-se o risco iminente de interpretar de modo equivocado os argumentos levantados, e foi o que aconteceu ainda no século XVIII. Rousseau chegou a comentar essa confusão, de modo teatralizado, na obra intitulada Rousseau juiz de Jean- Jacques, diálogo interessante em que o autor é desmembrado em dois, um Rousseau verdadeiro e outro falso, construído pelos preconceitos dos seus adversários. Na passagem em questão, relata-se a longa confusão que desde o início de sua carreira insistiu em pintá-lo como excessivamente radical, ao misturar a ênfase do diagnóstico moral, que flerta com condições ideais, cuja característica é a de tomar a natureza ou o corpo político legítimo como modelo, com um desejo de reforma concreta, de aplicação do ideal ao particular, impulsionado pela pretensa vontade de retornar às condições originárias:

Obstinaram-se em acusá-lo [Rousseau] de querer destruir as ciências, as artes, os teatros, as academias e mergulhar o universo outra vez em sua primeira barbárie, e ele sempre insistiu, ao contrário, na conservação das instituições existentes, sustentando que sua destruição faria unicamente que se acabassem com os paliativos deixando os vícios, e substituir a corrupção pela pirataria. (ROUSSEAU, 1959, t. I, p. 935).

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27 A importância dessa passagem não poderia ser por demais ressaltada. Que a eloquência por vezes enfática de Rousseau não nos precipite em classificações exageradas, pois não estamos diante de um adversário convicto das artes, cujo desejo fosse aniquilá-las todas juntamente com as salas de teatro, para assim, finalmente, lançar as pessoas no estado de natureza, reino de transparência. A ideia é completamente outra, preservar as instituições4.

Contudo, poderíamos nos perguntar, a título de ilustração, por qual motivo não destruir as artes se elas provocam a corrupção?

O diagnóstico em relação aos prejuízos morais do avanço das artes é, de fato, intransigente. O Discurso sobre as ciências e as artes mostrou como o desenvolvimento delas é causado pela corrupção da sociedade e consegue ainda intensificá-la. Já o Discurso sobre a desigualdade será construído com a intenção de desvelar o que haveria de universal na constituição humana, e como as sociedades puderam chegar no grau de diferenciação encontrado historicamente. A reflexão política, porém, de viés interventor, deve tomar esse processo como um fato dado e a estratégia, nesse âmbito, é usar o mal para desacelerar a corrupção por ele mesmo causada, e não regredir a um estado originário anterior ao estopim inicial de corrupção moral.

Essa espécie de reviravolta (teatral?) cuja movimentação é engatilhada pelo uso pendular de duas perspectivas distintas, mas complementares é brilhantemente explicitada pelo Manuscrito de Genebra. Lembremos da afirmação, essencial para esta investigação, e que será retomada por mim adiante em mais de um momento, segundo a qual é com a ajuda da arte aperfeiçoada que é possível reparar os males infringidos à natureza pela arte começada (1964, t. III, L. I, Cap. II, p. 288). Quanto ao teatro, acredito que se passe a mesma coisa: a escolha não é tanto entre natureza e cultura quanto

4 É essa a lição dada no Livro IV do Emílio: “Esperando maiores luzes, preservemos a ordem pública; em

todo país, preservemos as leis, não conturbemos em absoluto o culto que é prescrito, não levemos os cidadãos à desobediência, pois certamente não sabemos se é um bem para eles colocar fim em suas opiniões em nome de outras, e sabemos muito certamente que é um mal desobedecer as leis.” (ROUSSEAU,

2004, p. 443). Apoiado por um argumento como esse, Rousseau pôde negar logo de partida o benefício da entrada de um teatro do tipo francês em Genebra, cidade na qual esse tipo de divertimento era proibido por lei, como será detalhado no momento oportuno.

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28 entre duas formas de cultura. Com efeito, se o diagnóstico moral é crítico em relação aos avanços das artes é porque se vale, como ponto de referência, da ideia de natureza humana que seria, para o autor, essencialmente simples, marcada pela ausência da maioria das paixões presentes em sociedade.

A natureza enquanto norma envolve substancialmente o uso de um ponto de referência antropológico com o objetivo de marcar a distância entre o estado natural e o estado social, pautado pela artificialização e pela ruptura entre o ser e o parecer. Em Rousseau, entretanto, a ação política está inserida no que pode ser chamado de reino de aparências, e é do interior dessa atmosfera que se deve tentar buscar, com a ajuda da arte aperfeiçoada, personificada e utilizada em boa medida pela figura do legislador, a unidade entre os cidadãos, na tentativa de refrear o processo de corrupção moral que coloca em conflito o interesse público e o interesse particular.

O resultado provisório desse esquema teórico é ilustrativo para direcionar as análises desta pesquisa. Quando falamos do teatro e da festa cívica, polos opostos do movimento pendular, não estamos entre a natureza e a cultura, mas entre duas formas de arte, a começada e a aperfeiçoada. Nesse sentido, veremos como a festa cívica é a norma ou o espetáculo ideal de um corpo político legítimo, ou seja, um tipo de arte aperfeiçoada capaz de ajudar no estreitamento do liame social e o teatro, por sua vez, pode ser acusado de intensificar um desnaturamento prejudicial, do tipo egoísta, ponto que será esclarecido mais à frente.

Antes de entrar em detalhes sobre a Carta a d’Alembert, parece estratégico realizar um movimento de aproximação ao tema do ponto de vista ainda abrangente da relação entre Rousseau e o teatro, objetivo geral desta investigação.

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CAPÍTULO 2

ROUSSEAU E O TEATRO: ENTRE A NATUREZA E A

HISTÓRIA?

All the world’s a stage,

And all the men and women merely players; They have their exits and their entrances, And one man in his time plays many parts. (SHAKESPEARE, 2014, Ato II, Cena VII)5.

Como já apontou Michel Launay, no livro Le vocabulaire politique de Jean-Jacques Rousseau, parte importante do trabalho de escritor diz respeito à arte de escolher as palavras, combiná-las, defini-las, criticar ou transformar seu sentido (1977, p. 10). Ao mesmo tempo, e isso diz respeito ao trabalho do comentador e do leitor em geral, é preciso entender o significado incutido pelo autor em termos essenciais do seu jargão. Postura cujo mérito é evitar estabelecer uma leitura de mão única, anacrônica ou equívoca exatamente porque perde de vista o sentido dos termos e ainda a intenção dos textos. Neste capítulo procuro mostrar como o tema do teatro é um elemento intrinsicamente conectado ao método e também à doutrina filosófica de Jean-Jacques Rousseau. Esse percurso examinará o modo pelo qual a noção de teatralidade funciona como um importante referente teórico capaz de servir como fonte de construção de um vocabulário filosófico, além de pontuar de que forma, na questão do teatro em confronto com a festa, não se trata bem do conflito entre o que rege a natureza e o que foi culturalmente imposto, mas entre duas formas de arte enquanto construtos culturais.

5 “O mundo todo é um palco, e todos os homens e mulheres são meramente atores; eles têm suas saídas

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30 Quando faço menção ao emprego da teatralidade, interessa notar como não se trata tão somente de um recurso estilístico, mas principalmente de um referente teórico responsável por conduzir e explicitar a reflexão política e moral do filósofo genebrino. Veremos também a maneira pela qual sua obra autobiográfica expõe elementos essenciais de sua personalidade a partir de uma atmosfera ligada ao universo teatral. Em poucas palavras, a construção da narrativa dos textos autobiográficos se vale de elementos teatrais para a elaboração do que pode ser chamado de ‘personagem Rousseau’. Essa estratégia se liga ao fato de que a crítica à entrada de um teatro francês em Genebra será corretamente compreendida caso estivermos cientes do papel dessa arte enquanto referente teórico.

A investigação responsável por dar sentido aos meus esforços será concentrada na crítica ao teatro francês realizada por Rousseau, e a obra fundamental com a ajuda da qual faremos isso é a Carta a d’Alembert. Existe, entretanto, uma ligação intrínseca, muitas vezes negligenciada, entre o autor e a poesia dramática (entenda-se teatro em sentido amplo), cujo panorama considero essencial não só para continuar a desvelar em suas premissas e implicações o tema desta pesquisa, mas para explicitar aspectos importantes da produção filosófica rousseauniana. O interesse estende-se tanto ao âmbito teórico-filosófico, em relação ao qual me deterei ao longo dos capítulos seguintes, mas também, como veremos agora de modo sumário, o biográfico e estilístico. Esse trajeto é válido, mesmo necessário, pois o ato de escrita e a vida ou, se quisermos, a teoria e o comportamento estariam conectados: “Aqui, como em todo o resto, meu temperamento influenciou muito minhas máximas, ou melhor, meus hábitos.” (ROUSSEAU, 1959, t. I, p. 1033)6.

O método responsável por conduzir este capítulo é fundamentalmente a análise textual, isto é, mostrar a coerência, consequências e os pressupostos de uma perspectiva filosófica ligada ao

6 Concordo com Jean Starobinski quando diz no Prólogo do livro Jean-Jacques Rousseau: transparência e

obstáculo que “com ou sem razão, Rousseau não consentiu em separar seu pensamento de sua individualidade, suas teorias e seu destino pessoal. É preciso considerá-lo tal como se apresenta, nessa fusão e nessa confusão da existência e das ideias.” (STAROBINSKI, 2011, p. 9).

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31 teatro a partir da investigação dos textos. No caso de Rousseau, o leitor precisa se confrontar com o fato de que há algo de fortemente ligado ao universo teatral em suas obras teóricas e no modo como ele se descreve nos escritos autobiográficos. A leitura desses textos não diz respeito a algo como uma digressão fortuita porque essa análise, mesmo que seja realizada de modo panorâmico, ajudará a mensurar a função e a importância do aparato conceitual estreitamente conectado ao teatro empregado pelo autor. Apresentar aspectos de sua obra vinculados à poesia dramática tem como função montar, em seu conjunto, um quadro de referência conceitual para entender a relação de Rousseau com o teatro, buscando explicitar a inteligibilidade de sua crítica à entrada de uma companhia teatral em Genebra quando vinculada à sua própria produção literária, tendo como horizonte, insisto, o procedimento filosófico pendular apresentado anteriormente.

2.1 A CENA DO MUNDO E A CENA DA VIDA: TEATRO, AUTOBIOGRAFIA E FILOSOFIA EM ROUSSEAU

Normalmente, e não sem razão, presume-se que a vida se localize em um âmbito verídico, o da realidade ela mesma. Isso faz com que uma peça dramática seja a representação de algo, isto é, ela nos apresenta uma narrativa passível de ser compreendida precisamente como simulação da vida, um faz de conta. Pode-se dizer, conforme a definição de arte de indústria presente no Emílio, que é desse tipo de arte que o teatro faz parte (2004, p. 246), pois precisa de muitas pessoas para ser realizado. Com efeito, basta pensar no espaço teatral e sua cenografia, figurino dos atores, maquiagem e até mesmo a própria profissão de ator, na medida em que é um tipo de atividade sem ligação com a produção de mercadorias de primeira necessidade, como trata-se de algo possível tão somente em sociedades com alguma abundância.

O que eu gostaria de apontar é o fato de que Rousseau monta a partir da distinção entre ser e parecer uma oposição basilar capaz de nortear sua reflexão filosófica desde o Discurso sobre as ciências e as artes. Essa

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32 oposição propriamente teatral entre o ‘o que é’ e o que ‘parece ser’ é um registro, além disso, de onde se deriva outras oposições, tal como ‘dizer’ e ‘fazer’ ou ainda ‘autenticidade’ e ‘alienação’, para usar dois termos caros ao trabalho de Bronislaw Baczko (1974), mas poderia usar também o par ‘transparência’ e ‘obstáculo’, para mencionar o título de um livro importante de Jean Starobinski (2011).

De que lado dessas oposições similares ficaríamos, de que lado ficou Rousseau? Responder a essa questão apressadamente é se filiar a correntes interpretativas distintas: se ficou do lado da natureza, o autor pode ser logo aproximado a um primitivista saudoso, caso contrário, a perspectiva que encontra nele a defesa da entrega total do indivíduo à pátria pode ser equivocadamente conectada ao germe do totalitarismo. A resposta para essa questão não é tão dicotômica como pode parecer porque, na verdade, esses âmbitos opostos como natureza e cultura se conjugam de tal modo no esquema teórico rousseauniano que perguntar sobre uma tomada de posição responsável por se vincular a um dos termos em detrimento do outro não faz sentido, como será visto. Além disso, quanto ao teatro, a oposição fundamental não é tanto entre natureza e arte (enquanto cultura) quanto dois tipos diferentes de arte, a aperfeiçoada e a começada.

A relação de Rousseau com as artes, tema que me interessa de perto, foi por demais íntima para partirmos da ideia de uma recusa indignada de toda forma de cultura. Foi como músico e autor dramático que um dia ele solicitou entrada na República das letras, tendo composto sete peças, em mais de um gênero, como a ópera-tragédia intitulada Iphis, que data provavelmente do início da década de trinta, contudo, nunca terminada; um balé heroico, As musas galantes; e uma pastoral, O adivinho da aldeia, responsável pela sua celebridade enquanto músico, representada pela primeira vez em março de 1753. Rousseau também se aventurou pela comédia, com uma peça chamada Narciso ou o amante de si mesmo, redigida em sua juventude, cuja tradução pode ser encontrada no Anexo 4 desta tese. Essa comédia, vale lembrar, contou posteriormente com o retoque de Marivaux e foi representada por duas vezes em dezembro de

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33 1752 pela Comédie française. Rousseau ainda produziu uma tragédia em prosa, inacabada, Lucrécia, redigida em 1754.

O teatro constituiu o terreno onde a ambição literária do jovem aspirante a autor foi cultivada e, já maduro, o célebre filósofo não renegou essas obras, como é verificado em uma carta endereçada ao seu editor, Marc-Michel Rey, datada de 24 de outubro de 1758, ano da publicação da Carta a d’Alembert, quando se comenta a respeito de um compêndio dos seus escritos no qual figuraria, no primeiro volume, o menos importante, contendo as peças de teatro (1967, CC, Carta 716). Lembro ainda da composição de uma cena lírica, elogiada por Goethe, chamada Pigmaleão, cuja data é bem tardia, 1762.

Enquanto esteve em Paris, era nas salas da Comédie française e da Comédie italienne onde ele buscava entretenimento enquanto espectador e, para cortar gastos, nos idos de 1742, recém-chegado à cidade, ia aos espetáculos somente duas vezes por semana, antes de obter ingressos gratuitos destinados aos autores cujas peças haviam sido aceitas na Comédie Italienne (1959, t. I, L. VII, p. 287). Durante dez anos, ele dirá em uma nota do parágrafo 166 da Carta a d’Alembert, frequentou os teatros parisienses nos dias bons e ruins (1967, p. 186).

Foi nas leituras de obras como as de Racine, Molière e Voltaire, em conversas com Marivaux e Diderot, lendo textos teóricos como os de Horácio, Boileau ou Dubos que Rousseau buscou recursos como escritor: ele absorveu como poucos a atmosfera própria a esse universo, o que teve real importância para a formação do seu pensamento e construção do seu vocabulário filosófico.

O teatro, de fato, era o entretenimento por excelência do meio culto francês setecentista, além de ser um tema responsável por promover intensa reflexão filosófica, arrebatando a atenção de vários dos mais proeminentes pensadores da época7. Esse fenômeno, normalmente

7 Indico a leitura da bela nota de rodapé, a de número 2, presente na Introdução do livro de Luiz Roberto

Salinas Fortes, Paradoxo do espetáculo, em que ele aponta o modo como muitos autores no século XVII e XVIII empregavam o termo ‘teatro’ ou ‘espetáculo’ para servir de metáfora para ilustrar alguma ideia (1997, p. 21-22). Citemos dois exemplos usados no estudo de Luiz Roberto Salinas Fortes. Fontenelle, nos

Diálogos sobre a pluralidade dos mundos, diz que a natureza “é um grande espetáculo que se parece com a ópera.” (FONTENELLE, 1724, p. 22). Assim, o cientista seria justamente aquele que se infiltraria nos

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34 chamado de teatromania, é brilhantemente manifestado pelo perfil intelectual de dois dos mais representativos filósofos do século XVIII francês: Voltaire e Diderot. Não só eles escreveram peças, como Rousseau, mas defenderam o benefício moral dessa arte, cada um a seu modo, além de mostrarem interesse pela vivência do ator. Voltaire, é verdade, contracenava em representações particulares e, no caso do Diderot, ele mesmo relata no Paradoxo sobre o comediante como teria balançado entre a filosofia e a profissão de ator (2005, p. 314)8. A glória na carreira de

dramaturgo era o ápice da carreira literária e talvez isso ajude a entender porque tenha servido como uma espécie de operador retórico, não só para Rousseau, como para a filosofia do período.

Vejamos mais detalhadamente como a reflexão filosófica de Rousseau se liga ao teatro na medida em que, por exemplo, ele se vale de um léxico do tipo teatral para construir tanto um vocabulário filosófico quanto para proceder a uma crítica da sociedade do seu tempo. Trabalho que ainda está por fazer, haja vista o pequeno, mas interessante livro introdutório de André Charrak intitulado Le vocabulaire de Rousseau (2002). A ideia da obra é basicamente explicar a partir de verbetes os principais termos com os quais o filósofo genebrino se expressa. Em meio a verbetes como ‘vontade geral’, ‘educação’ e ‘cidadão’ não há, surpreendentemente, nenhuma menção a termos como ‘teatro’, ‘teatralidade’, ‘aparência’, ‘representação’ ou ‘ator’.

As referências diretas à poesia dramática, porém, se multiplicam na letra de Rousseau, apresentando-se incessantemente em seu horizonte de reflexão. Elas aparecem na forma de exemplos, metáforas ou recursos de escrita, mas também, algo em relação ao qual mais me interessa sublinhar, bastidores desse espetáculo para estudar o funcionamento das roldanas, cordas e engrenagens graças às quais o personagem ganha voo diante de uma audiência estupefata. Voltaire, no Ensaio sobre os

costumes, compara o universo a uma “vasta cena de pilhagens abandonadas à própria sorte. ” (VOLTAIRE,

1818, p. 537).

8 R. S. Ridgway, no artigo intitulado Voltaire as an actor (1968), comenta sobre as peças privadas nas quais

Voltaire participava como ator. Sobre Diderot, Yvon Belaval, no livro Esthétique sans paradoxe, trata da relação entre Diderot e o teatro no primeiro capítulo da obra, chamado de A vocação teatral, momento em que o comentador aponta a ausência de informações seguras sobre a infância e adolescência de Diderot, contudo, seria possível dizer que foi no colégio Louis-le-Grand a descoberta de sua vocação para a arte teatral, além de sua primeira experiência com a prática do ator. (1950, pp. 13-45).

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35 enquanto categoria a partir da qual se pode refletir sobre temas filosóficos, buscar um vocabulário para lhe dar forma, além de ser o registro a partir de onde o filósofo genebrino ambienta sua vida. Concentremo-nos primeiramente no último ponto, o da ambientação dramática da autobiografia.

*

No Livro VI das Confissões, Rousseau se reconhece tímido tal qual certo personagem de Marivaux, o Marquês de Legs (1959, t. I, p. 250), no Livro IX a comparação recai sobre outro personagem, George Dandin, de Molière (1959, t. I, p. 472): aproximações ainda mais interessantes por se tratarem de personagens teatrais. É esse o registro no qual ele situa não só a descrição de sua personalidade, mas também as suas ações, algo claramente elucidado quando um episódio vivido por ele é referido como se fosse uma cena (1959, t. I, L. IV, p. 141). Ao contar certo episódio de infância, a anedota da nogueira, em tom de gracejo o filósofo genebrino desafia seu leitor a não tremer durante a leitura dessa horrível tragédia: “Oh vós, leitores curiosos da grande história da nogueira do terraço, escute a horrível tragédia (...) e abstenha-se, se puder, de tremer.” (ROUSSEAU, 1959, L. I, p. 21). Vale dizer que o seu processo de reflexão é descrito como caracteristicamente conturbado de modo semelhante à mudança de decoração do palco da ópera italiana (1959, t. I, L. III, p. 113-114).

A narrativa autobiográfica, responsável por propor seu retrato, pintado exatamente de acordo com a natureza em toda a sua verdade, como é dito na Apresentação à Primeira Parte das Confissões (1959, t. I, p. 3), se vale curiosamente do teatro, reino da aparência, não só enquanto metáfora, mas também em forma de vocabulário. Esse aspecto corrobora o fato de que, apesar da oposição, o âmbito artístico e o da natureza se conjugariam. Teremos oportunidade de voltar a esse ponto com o objetivo de esclarecê- lo.

Se as peças teatrais de sua autoria são hoje pouco lidas, passagens memoráveis de outras obras revelam como é intenso o uso da literatura e de recursos propriamente teatrais enquanto estratégia argumentativa. Basta

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36 tomarmos nas mãos a inflamada prosopopeia de Fabrício, presente no primeiro Discurso, a cena do estabelecimento da propriedade, em forma de apóstrofe, na abertura da segunda Parte do segundo Discurso ou ainda a chamada Iluminação de Vincennes, relatada na Carta a Malesherbes: são artifícios essencialmente literários capazes de mostrar como o recurso aos lances teatrais se apresentam frequentemente como desfecho ou introdução aos elementos propriamente teórico-filosóficos. Sua obra pedagógica intitulada Emílio bem poderia, como afirmou Luiz Roberto Salinas Fortes, ser vista como uma peça dramática preenchida por cenas pedagógicas e episódios patéticos, tal qual o do charlatão da feira com seu pato magnetizado, mas também as danças e pantomimas (1997, p. 24-25 e 142).

O recurso ao teatro pode ainda ser o da metáfora explicativa ou exemplo erudito, aspectos amplamente instrutivos para entendermos a conexão entre a arte dramática e a construção de um léxico filosófico. É o que acontece quando, no Livro I do Emílio, de modo a corroborar a maneira pela qual a ama-de-leite seria importante na antiguidade, ele cita o fato de que nas peças de teatro dos antigos normalmente ela é a confidente (2004, p. 40). Em um texto pouco conhecido como o Ensaio sobre os acontecimentos importantes em que as mulheres foram a causa secreta é empregado uma metáfora ao mesmo tempo importante e frequente na letra do autor: ao tratar sobre um tema historiográfico se fala em história do teatro do mundo (1961, t. II, p. 1257-1259). É como se o observador e estudioso da história testemunhasse no palco no qual se estruturam as sociedades o desenrolar do enredo das ações humanas. Ao pensar na estrutura e, como veremos, na gênese da socialização, assim como a da sociedade, é também o registro teatral aquele escolhido para dar forma à descrição.

Mesmo em uma obra científica, como é o caso das Instituições químicas, esse tipo de metáfora aparece, como se pode ver no Livro 2, Capítulo I, primeiro parágrafo, quando a natureza é comparada a um teatro em relação ao qual poucos conseguiriam enxergar o conjunto, arrebatados por um ou outro aspecto mais marcante ou mais acessível à sua compreensão. Metáfora que será retomada adiante por mim. No Livro IV do

Referências

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