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PARÁGRAFO 13 OU A LIÇÃO DE ROBINSON CRUSOÉ: EM DEFESA DA

Essas coisas estão muito acima ou muito abaixo de ti. Seu estado é o medíocre ou o que pode ser chamado de condição primeira da classe baixa. Uma longa experiência me fez reconhecê-la como a melhor no mundo e a mais conveniente para a felicidade, sem estar exposta nem à misérias e durezas (...) nem embaraçada com orgulho, luxo, ambição e inveja (...) (DEFOE, Robinson Crusoé, Cap. I, Start in life).

Os estados medianos, dos quais se saí mais facilmente, oferecem prazeres acima e abaixo de si; estendem também as luzes daqueles que o ocupam ao lhes dar mais preconceitos para conhecer e mais graus para comparar. Eis, me parece, a principal razão porque é geralmente nas

165 condições medíocres que se encontra os homens mais felizes e dotados com melhor senso (sens) (ROUSSEAU, Nova Heloísa, 1964, t. II, p. 608, Nota).

Fornecida a pressuposição de que o teatro é essencialmente um amusement, somos lançados em variáveis em relação às quais o termo pode ser encaixado. Longe de recusar divertimentos e distrações em nome de uma existência pautada pela seriedade sem intervalos, Rousseau nega a conveniência daqueles divertimentos que não são necessários: “a condição do homem tem seus prazeres, que derivam de sua natureza, e nascem dos seus trabalhos, relações [rapports] e das suas necessidades.” (ROUSSEAU, p. 65, 1967). Aceita-se explicitamente a legitimidade dos prazeres, ponto importante, pois problematiza uma interpretação em relação a qual proponho revisão. Lembremos o que diz Marc Moffat, em sua Apresentação. Conforme o comentador, na querela do luxo haveria uma divisão fundamental, de caráter bipartite, a partir da qual haveria aqueles para quem o teatro seria moralmente benéfico e, pelo contrário, os que julgavam o teatro enquanto prazer, posição equivalente a uma condenação (2003, p. 25).

O prazer torna-se um problema somente se, manifestado por alguma forma de divertimento, aparece para tentar dar conta do vazio de uma existência indolente, se lança o indivíduo para longe daquilo que foi estipulado como seus deveres em uma tentativa de se livrar do peso do tédio, e quando faz isso ganha em capacidade de interessar. Efetivamente, a força de atração do teatro estaria em sua capacidade de nos tirar do tédio, diz Jean-Baptiste Dubos, e Rousseau aceita o diagnóstico, mas opondo a ele não a salvação da alma ou qualquer avaliação com critério religioso, e sim o fato de que, em alguns lugares, o tédio não encontra espaço e desse modo o teatro não seria preciso. A linguagem é essencialmente sócio-política: “Um pai, um filho, um marido, um cidadão tem deveres tão caros a cumprir que eles não deixam nada para ser furtado pelo

tédio.” (ROUSSEAU, 1967, p. 65)103. Temos aqui não só uma estratégia para

103 Traduzo ‘ennui’ por tédio. A tradução brasileira do texto (p. 44, 2015) propõe traduzir o termo por

‘aborrecimento’. Levando em conta importância do termo para as poéticas do período, muitas obras falam de ‘ennui’ que é convencionalmente traduzido por ‘tédio’, além de toda a carga conceitual que o termo abriga, prefiro essa opção.

166 que o autor se afastasse da tradição religiosa, mas uma mudança de perspectiva importante, pois é sob o signo da política que o debate é conduzido. É o tédio, o aborrecimento de si e a inquietude os responsáveis por tornar necessário os divertimentos estranhos à rotina das pessoas. Divertimento, aqui, é analisado segundo o seguinte critério: se pode ou não vincular os indivíduos, se pode ou não fortalecer o liame social. É importante lembrar que essa perspectiva não está atrelada a um ideal de natureza, mas está inserida no reino das aparências, da artificialidade, portanto, uma norma que privilegia certo tipo de desnaturação – vincular as pessoas por meio da civilidade é uma espécie de afastamento das condições naturais –, mas que é politicamente benéfica, capaz de ajudar na construção de um corpo político legítimo.

Podemos, é verdade, conectar o critério que avalia o prazer como bom ou ruim a certa noção de natureza, pelo menos no sentido de que esse critério é também baseado no seu grau de simplicidade. Quanto mais complexo o prazer, ou seja, se depende da participação de muitas pessoas, quanto mais frívolo ele for, ou seja, se não tiver utilidade, mais condenável diante da norma ele será. Isso acontece pois estará afastado da natureza e da boa política em nível mais intenso do que um prazer simples que depende tão somente do próprio agente para ser alcançado.

Que melhor obra do que a Nova Heloísa para vermos como o prazer e o divertimento podem ser elogiados no mais alto tom, desde que preservem algumas características essenciais como a inocência e simplicidade. Características conforme as quais, segundo Carta 11 da Quarta Parte do romance, escrita pelo personagem Saint-Preux, os habitantes de Clarens nutrem o gosto pelo repouso, pelo trabalho e pela moderação: aspectos que conservariam a alma sã e o coração livre da perturbação das paixões. Esse quadro está mais próximo da natureza, mas não se confunde com o hipotético estado natural. Onde há uso da liberdade, convenções estabelecidas por pessoas em relação social e política encontra-se necessariamente a arte. Sejamos claros: mesmo em uma pequena comunidade como a de Clarens onde os deveres ocupam a maior parte do tempo das pessoas e, como veremos adiante, as diversões tinham pouco de luxuoso encontra-se arte. A desnaturação pela qual passaram foi diferente daquela dos parisienses, é verdade, de tal

167 maneira que em Clarens o charme de um gozo doce seria o fruto de uma vida laboriosa (1964, t. II, p. 470).

Para Rousseau, a ociosidade e a inatividade causariam tanto a tristeza quanto o tédio, como vemos em mais de um momento na Nova Heloísa (1964, t. II, p. 470) e na Carta a d’Alembert (1967, p. 66)104. O tédio faria com que os

divertimentos alheios às nossas obrigações fossem necessários, aspecto que na Carta a d’Alembert está ligado ao descontentamento de si, algo visto entre os habitantes de uma cidade como Paris, especificamente na sociedade de corte, entre os nobres e boa parte dos socialmente privilegiados pelo antigo regime, aqueles que não precisavam trabalhar. O tédio, ennui ou spleen era o mal do século, e ele é alvo do diagnóstico de Rousseau.

Trata-se de um mal tanto moral quanto social que é confrontado a uma ideia de gozo da vida mais simples do que o encontrado em meios luxuosos. Existe tédio lá onde se encontra uma civilização estabelecida com divisão de trabalho, onde se encontra desigualdade e riqueza excessiva, o que dá vazão a ociosos, enfim, nos lugares onde os desejos dos indivíduos são maiores do que os meios de satisfazê-los. O fato de Paris ser uma cidade grande cujos habitantes eram movidos essencialmente por paixões como cobiça, orgulho, inveja, vaidade e amor faz com que o tédio seja mais intenso, pois ele aparece quando as pessoas não conseguem obter satisfação para as suas paixões. No Livro V do Emílio, o jovem aprendiz aparece sofrendo pela primeira vez com o tédio justamente quando ele se apaixona por Sofia. Não parece coincidência que o amor seja precisamente um dos temas centrais da cena francesa: “Quando o coração se abre às paixões, se abre ao tédio da vida.” (ROUSSEAU, 2004, p. 617).

Nesse sentido, quando pensamos no modo como se dá a relação das pessoas com o luxo ou a maneira como o comportamento de alguém é afetado pelo orgulho, pode-se perceber que o sofrimento com a falta do objeto desejado é ainda maior do que o contentamento trazido por sua posse: situação de eterna precariedade na qual a falta é uma marca que não se desfaz a não ser temporariamente. Nunca a plenitude e a calma, sempre se persegue algo fugidio

104 Na Carta III da Terceira Parte, Saint-Preux escreve ao Milorde Édouard que a criança ociosa está sujeita

168 cuja posse é impossível, por exemplo a total admiração dos nossos pares em detrimento deles mesmos. A fórmula encontrada na Nova Heloísa é lapidar: “As pessoas ociosas, sempre entediadas delas mesmas, se esforçam em dar um grande preço à arte de agradar [amuser].” (ROUSSEAU, 1964, t. II, p. 582). Como aponta pertinentemente Vanessa de Senarclens, o gosto dos parisienses pelo teatro encontrado por lá não é simplesmente atacado circunstancialmente como algo frívolo e sem utilidade cívica, mas também se explica pelo diagnóstico desenvolvido com o objetivo de mostrar uma corrupção moral própria às cidades ricas nas quais se desenvolveram as artes, como já havia sido mostrado no primeiro Discurso, de 1750 (2014, p. 44).

O teatro, no caso de Paris, enquanto divertimento é precisamente o ápice desse esforço, faz parte da tentativa de ocupar uma vida sem motivação. Quando falamos do tédio, na letra de Rousseau, os pobres ou habitantes de uma cidade pequena levam vantagem frente aos ricos presentes em uma metrópole. Isso acontece, pois estão sempre perseguindo um novo prazer para ocupar seu tempo vago, e por isso não conseguem gozar dos pequenos prazeres, esses sim elencados como sadios. Vale a pena citar uma longa passagem sobre isso no Livro IV do Emílio:

O povo pouco se aborrece, sua vida é ativa. Se suas diversões não são variadas, elas são raras; muitos dias de cansaço fazem-no apreciar com delícia alguns dias de festas. Uma alternância entre longos trabalhos e curtos lazeres serve como tempero para os prazeres de sua condição. Já no caso dos ricos, seu grande flagelo é o tédio; em meio a tantas diversões conseguidas a grande custo, em meio a tantas pessoas que se esforçam por lhes agradar, o tédio consome-os e mata-os; passam a vida a fugir dele e a serem por ele alcançados; são esmagados por seu peso insuportável; sobretudo as mulheres, que já não sabem nem se ocupar, nem se divertir, são devoradas por ele, sob o nome de vapores; transforma-se para elas em um mal horrível, que às vezes lhes tira a razão e enfim a vida. (ROUSSEAU, 2004, p. 507).

Atividade, labor, cumprimento dos deveres: três coisas que isentariam o indivíduo do tédio. Não só os espetáculos teatrais seriam usados para combatê- lo, mas também o excesso dos cuidados com a aparência seria menos devido à vaidade do que ao descontentamento de si, de modo que o tempo gasto com maquiagem, escolha de vestimentas e acessórios seriam parte da tentativa de

169 agilizar a lentidão das horas (2004, p. 540). Quanto mais desejos, mais ambição e também mais ociosidade: a multidão e a variedade das diversões não tornariam ninguém feliz, isso porque a moderação de prazeres seria o segredo para não nos tornarmos escravos dos desejos e da inquietação em satisfazê-los (2004, p. 325). Rousseau tira a lição fornecida pela obra Robinson Crusoé, de Defoe, explicitada por mim em epígrafe105. A condição ideal para alcançar a felicidade,

a plenitude e calma é a mediocridade, entendida como termo médio. Que se fuja dos extremos, nem as atribulações dos poderosos, nem a miséria dos muito pobres. O que aparece diante de nós, em termos ideais, é a defesa de uma situação de calma, sem muitas paixões e embaraços, na qual há margem para autossuficiência.

O tédio e a inquietação não acometem aquele que não é nem muito rico nem muito pobre. Exemplo disso pode ser tirado do Livro I das Confissões, quando Rousseau afirma que se não fosse seu destino ele teria preferido uma vida obscura e simples de artesão, como era o caso dos gravadores em Genebra. Nem ricos nem pobres, situação perfeita para não incutir ambição: “teria amado meu estado: teria talvez o honrado, e após ter passado uma vida obscura e simples, porém, igual e suave, teria morrido calmamente entre os

meus”. (ROUSSEAU, 1959, t. I, p. 43-44)106. Parece ser esse o caso da Genebra

do século XVIII segundo a compreensão idealizada de Rousseau. Não era excessivamente pequena para estar muito vulnerável diante dos seus vizinhos, nem era imensamente rica e poderosa. O critério pelo qual apreende-se um certo tipo de espetáculo como o francês, diante da possibilidade de que seja

105 Sobre a relação entre Robinson Crusoé e Rousseau, principalmente o Emílio, indico o artigo de Benoit

Caudoux, chamado Émile et Robinson (2012, pp. 171-205).

106 Rousseau parece ter vivido um pouco esse estilo de vida quando se mudou, com a ajuda da Senhora

d’Épinay, para a Ermitage: “Eis-me então, finalmente, em minha casa, em um asilo agradável e solitário,

capaz de levar meus dias nessa vida independente, igual e calma, vida para a qual fui feito.” (ROUSSEAU,

1959, Livro IX, p. 413). Vai nessa linha o conselho que Rousseau dá ao Abade de Carondelet, em carta datada de 6 de janeiro de 1764. Importante notar que o conselho vem acompanhado de uma condição ou circunstância que o torna útil, a saber, um certo temperamento próprio a apreciar a mediocridade, no sentido de uma vida igual e simples. Até aqui o que é ideal se coaduna com o que é circunstancial: “Se

você só vai para o campo a fim de levar o fausto da virtude, permaneça na cidade. Se você deseja com toda a força exercer as grandes virtudes, a função de padre fará com que isso seja frequentemente necessário. Porém, se você sente em si as paixões suficientemente moderadas, o espírito suficientemente doce, o coração suficientemente são para que você se acomoda a uma vida igual, simples e laboriosa, vá para suas terras, faça com que elas valham algo, trabalhe você mesmo, seja o pai dos seus domésticos, amigo dos seus vizinhos, justo e bom para com todo mundo (. )” (ROUSSEAU, 1975, p. 126).

170 introduzido em uma cidade como Genebra, passa tanto por um critério político normativo quanto por um critério localizado, o da utilidade pública (1967, p. 81).

3.4 O PARÁGRAFO 14 DA CARTA A D’ALEMBERT: SOBRE O EMPREGO DA