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vezes sem o conseguir apreender. Faz muitas vezes uso dos espaços sem os decifrar, apenas sentindo-os. Estes percursos entrelaçados têm correspondência a poemas não reconhecidos em que cada peão surge como elemento assinalado por muitos outros, eludindo a legi- bilidade do território.

Certeau (Clark & Brody, 2009) procura identificar as práticas estranhas ao espaço geográfico e geométrico das construções visuais e teóricas, através da referência a uma “outra espacialidade” (referência a “ano-

ther spatality” de Merleau–Ponti, presente na obra Fenomenologia da

perceção, 1999), uma experiência antropológica, poética e mítica do espaço, e a uma mobilidade opaca, difusa e cega, características da cidade agitada atual, fazendo referência a uma cidade migratória ou metafórica que desliza para o texto claro da cidade planeada e legível. Esta análise conceptual de Certeau tem início ao nível do solo, e dos passos dados pelo peão, metaforicamente comparado à apreensão táctil e apropriação cinestésica dos movimentos.

Neste contexto metafórico enfatizada por Certeau, o ato de percorrer é para o sistema urbano o que o ato de falar representa para a lingua- gem. Surge como um processo de apropriação do sistema topográfi- co por parte do peão (da mesma forma como o orador se apropria e assume a linguagem); é uma atuação espacial do lugar (assim como o ato de fala é uma interpretação acústica da linguagem), implicando relações entre posições diferenciadas, e entre “contratos” pragmáti- cos na forma de movimentos (assim como a enunciação verbal é uma alocução, coloca outro oposto ao orador e coloca contratos entre interlocutor em ações).

Nesta desconstrução do discurso, o peão transforma cada significan- te espacial em algo diferente. Uma vez que se por um lado o peão atualiza apenas algumas possibilidades fixadas pela ordem construí- da, por outro aumenta o número de possibilidades, através da criação de atalhos e desvios, através de uma seleção.

Segundo Bartolomeu Paiva (2012) “É a cidade, cuja imagem passou a

conviver com uma semântica efémera, agitando as novas linguagens do tecno-digital, autónomas ou sobrepostas sobre cenários patrimo- niais que alteram as relações de aproximação entre espaço e tempo, pela (re)criação de novas imagens e de novos rituais urbanos.” (p.63).

Nesta continuidade, e de acordo com Álvaro Domingues (2013), a cidade deve ser analisada à luz de uma geografia hipertextual, onde não há lugar a taxonomias fixas, nem narrativas fechadas, devendo o território ser apreciado como hipertexto, onde as diversas unidades de informação ajudam e amplificam a forma, tornando-se links pro- dutores de sentido.

“the world is a labyrinth that must be unravelled, a text that must be deciphered. Each individual scrutinizes it as his life unfolds.” (Moles, 1989, p.129)

Ainda no campo da leitura da cidade, aprofundamos o conceito de legibilidade destacada por Kevin Lynch (2003), no sentido do desenvol- vimento da imagem de um território específico. Esta noção de legibilida- de não é mais do que a facilidade de perceção do espaço. O desenho da

Figura 10

cidade, que para o autor representa uma arte temporal onde os ritmos se adequam aos momentos e aos indivíduos, possui como característica fundamental na sua estruturação a legibilidade, no sentido de ser com- preendida através de uma estruturação global viva, integral e coerente, criadora de símbolos reconhecíveis e memórias coletivas (Lynch, 2003). Segundo Abraham A. Moles (1989), na análise da legibilidade de um ambiente concreto, é possível proceder à analogia a uma página imen- surável e indefinida que se desenrola à nossa volta, no sentido em que é capturado o conhecimento dela, no nosso campo de consciência como moldura onde as ações são inscritas. Neste caso “action landscape” - um texto sem limites, decifrável em que as letras impressas são os elementos da estrutura e os signos reconhecíveis, sendo as frases suces- sivos “decors” da nossa deambulação, que ao desdobrar-se, formam o verdadeiro contexto individual de vida, como a leitura do mundo. Há aqui um paralelo entre leitura do texto e da paisagem. A caminhada individual é deste modo condicionada pela paisagem imediata que ro- deia o peão, onde confrontado com duas perspetivas diferentes e con- traditórias, escolhe o seu caminho ao longo de um campo com múltiplas opções. Tal como num texto, cabe ao designer pontuar e uniformizar o discurso da paisagem envolvente, para que seja percorrido pelo peão de forma coerente e sem hesitações ou sobressaltos. (Moles, 1989)

Ainda dissecando a cidade com se de um texto se tratasse, realçamos a visão ao nível do chão, evidenciada por Renato Miguel do Carmo (In Campos, Brighenti & Spinelli, 2011). Aqui é passível analisar os seus movimentos concretos e a sua essência multicolor, como um “espaço

mosaico”, repleto de unicidades e irregularidades inerentes à sua textu-

ra, digno da sua diversidade e essência heterogénea, sendo “a cidade

como um espaço de deslumbramento, que vale pela especificidade e pela singularidade que encerra.” (p.47)

Nesta abordagem analítica ao nível do chão é destacada a importância do olhar, a observação por parte do peão, a sua perceção e interio- rização, que segundo Carmo (In Campos, Brighenti & Spinelli, 2011)

“deixa-se levar pela urgência do efémero, daquilo que pode acabar a qualquer momento e que, por isso, é necessário registar, tomar nota para depois revelar” (p.47).

Assumimos aqui, corroborando as reflexões de Certeau (Clark & Brody 2009) e Carmo (In Campos, Brighenti, & Spinelli 2011), as duas visões da cidade, topograficamente opostas, uma ao nível do chão, capaz de ir re- velando todas as particularidades do espaço, outra a um nível elevado, enfatizando a visão de um mapa (imagens poderosas e aglutinadoras), de um organismo dinâmico, dissociado das suas singularidades terrenas e simbólicas. Sendo que para um correto e minucioso escrutínio é fun- damental a aproximação à visão através do olhar, não descurando, no entanto, a subida ao nível superior, assumindo assim a dicotomia entre realidade e projeção de uma imagem da cidade.

Figura 11

Figura 12

Figura 13 Arquivo autor

O conceito de paisagem surge-nos no processo de análise concep- tual, intrinsecamente conectada ao espaço e imagem da cidade, uma vez que a noção de paisagem pode traduzir a imagem de um espaço específico.

Neste percurso investigativo, temos como objetivo a necessidade de promover e potenciar a imagem do território, procurando traços permanentes da paisagem através de uma abordagem estética, expe- rimental e efémera.

“Só a paisagem como lógica visual serve de sistema estruturan- te de identidades individuais e locais, proporcionando um olhar com uma outra escala capaz de identificar uma geografia. (...) as narrativas visuais podem servir de plataformas estruturantes da geografia visual de uma região.“ (Rangel, 2009, p.43)