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Ainda de acordo com Guy Debord (1956) há uma separação clara en- tre os conceitos de deriva e deambulação, uma vez que enquanto que deriva está ligada indissoluvelmente ao reconhecimento dos efeitos da natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, (cedendo até às requisições do terreno, ficando o peão sob o domínio das variações psicogeográficas), a deambulação, contrariamente, pressupõe todos os aspetos vinculados às noções clássicas de viagem e passeio.

“the street becames a dwelling for the flâneur, he is as much at home among the façades of houses as the citizen is in his four walls. To him the shiny, enameled sign business are at least as good a Wall ornament as na oil painting is to a bourgeois in his salon”. (Benjamin6 in Burgin, 1996, p.142)

Assim, num processo analítico sequencial, retrocedemos no tempo, evidenciando, ao de leve, o conceito de deambulação incutido na obra de Baudelaire, realçado por Walter Benjamim.

A ação de deambular pela turbulência das multidões da cida- de e observando as suas idiossincrasias, provenientes dos pró- prios pensamentos e sentimentos sem, no entanto, o flâneur se encontrar realmente envolvido ou entrar em ação.

Aqui, neste conceito, depreende-se que a deambulação do peão con- siste num voyeurismo passivo e imaginativo.

O termo flâneur7, destacado por Baudelaire (1996) surge num contex-

to histórico de revolução industrial de inúmeras mudanças na cidade, passível de produzir significativas alterações à vivência burguesa, levando alguns autores a questionar as ideias estéticas vigentes na altura, no sentido de serem adequadas ao dinamismo da nova so- ciedade emergente e moderno. Assim, este peão singular, o flâneur, tinha como ambição caminhar, observar e imaginar, sem, contudo, se imiscuir na ação da cidade, sendo apenas um espectador capaz de captar e descrever as novas dinâmicas da cidade. Neste contexto, po- demos afirmar que Baudelaire estaria apenas interessado em imprimir a imagem da cidade, da multidão e das novas dinâmicas resultantes, relatando os seus sons e as suas agitações. O olhar deste peão não se prendia com a geometria e organização física da cidade e das suas ruas, prendia-se sim pela experiencia vivida no ato de caminhar, deambulando, como observador desapegado.

“(...) é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondu- lante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e, contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mun- do, (...)”. (Baudelaire, 1996, p. 22)

Não é possível falar da importância da deambulação sem referir Cesá- rio Verde, o poeta da cidade, o verdadeiro flâneur.

Vê-se a cidade, mercantil, contente: madeiras, águas, multidões, telhados!, (...)”. (Cesário Verde, 1878 – poema cristalizações)

Embora a cidade referida seja Lisboa, a descrição é uma autêntica fotografia do Centro Histórico de Gaia.

Consideramos assim a hipótese de haver uma nova abordagem de deambulação, instalada nos tempos de hoje, nomeadamente com o uso das novas tecnologias e aplicações, onde o flâneur de hoje percorre o caminho real e digital, diversas vezes em simultâneo, na procura de conhecimento, inspiração ou simplesmente voyerismo. 6 Walter Benjamim na obra “Charles

Baudelaire: A Lyric poet in the Era of High Capitalism”

7 Flâneur, conceito que provém do termo francês flâner. Sendo a expressão originalmente usada por Charles Baudelaire no séc. XIX, que se caracteriza por expressar uma ação de carácter deambulatório em contexto citadino.

Walkability

Após um recuo na linha temporal, repleta de um espírito reflexivo e conceptual, avançamos ainda no âmbito da deriva pela cidade aos conceitos atuais e vigentes.

Aqui verificamos a importância crescente de recuperar a memória da deambulação atrás mencionada, visível na gradual necessidade de colocar na agenda política e social a necessidade de simplesmente andar, usufruir a cidade a pé.

Neste âmbito surge-nos mais uma expressão inglesa que na tentativa de tradução, pode carecer do seu sentido principal de coesão, walka-

bility, uma vez que se considera ser mais do que apenas a capacidade

de andar.

Neste sentido, este conceito, amplamente associado à noção atual de

smart cities, cidades inteligentes, é aqui brevemente escrutinado por

Allan Jacobs (1995) e por Mário Alves (Ramos & Alves, 2010), com o auxílio a documentos estratégicos orientadores europeus.

Segundo Jacobs (1995) o conceito de andar, como atividade, walkabi-

lity, assenta em quatro condições primordiais: deve possuir utilidade;

deve garantir segurança; deve ser confortável; deve possuir interesse relevante no processo. Estas premissas assentam assim na necessida- de de alertar para a dignificação da atividade do peão ao longo de um percurso, procurando evidenciar a necessidade de garantir o simples ato de “andar” pela cidade.

Pormenorizando um pouco mais o intuito de Jacobs (1995), a sua pes- quisa comparativa entre quarenta cidades do mundo inteiro, permite apresentar um modelo de percurso/via ideal para a ação de andar. A malha urbana ideal pode assim ser representada por vias pequenas, que dificultem a velocidade das viaturas, com quarteirões pequenos, de forma a dar sentido de segurança e comodidade, e construções envolventes dignas de interesse arquitetónico ou histórico.

Esta análise de Jacobs (1995) vem, de certo modo, validar e confirmar o espaço por entre o qual o peão pode deambular no nosso contexto concreto investigativo, uma vez que reflete a malha urbana ideal para uma plena deambulação no contexto atual.

Assegurando a extrema atualidade política da presente temática, evi- denciamos, a título de exemplo, a definição do conceito walkability pelo Comité Consultivo de Planeamento de Londres. Este documento estratégico descreve com cinco “C” os parâmetros avaliativos que um território deve conter no conceito de walkabilty:

Conectada - A rede pedonal deve estar conectada a fatores atrativos, como intercâmbio de transportes públicos, casas, locais de trabalho e destinos de lazer, acrescido à complexidade de conexão entre rotas. Traduz-se numa melhoria assinalável para a lógica e a coerência da rede pedonal.

Convivial – a atividade de andar deve assumir-se como atividade agra- dável em termos de interação com as pessoas e o ambiente natural e construído, significando uma redução significativa na poluição visual de uma cidade, problemas que reduzem a qualidade do ambiente envol- vente e impedem a criação de espaços públicos de alta qualidade.

Conspícua - As vias e espaços públicos devem ser seguros e con- vidativos, com cuidados com a iluminação, visibilidade e vigilância.

Figura 5

deambular arquivo autor

Incluindo a disponibilidade de melhores sistemas de orientação e sinalética, significando ruas mais seguras.

Confortável - a atividade de andar deve ser feita de forma mais agradável através do cuidado com os diferentes pavimentos, paisa- gens naturais e arquitetónicas atrativas e através de uma eficiente adaptação dos arruamentos e controle de trânsito, significando a dignificação e manutenção de percursos, que tornam a esfera pública um lugar mais confortável para se estar.

Conveniente – devem ser criadas rotas e ambientes que concorram com outras opções menos sustentáveis para viagens curtas através de ambiente de jornada maior e maior prioridade pedestre.

A este documento acima enunciado, juntamos a estratégia do um projeto europeu de avaliação da capacidade de andar, walkability, nas cidades europeias, designado por COST 358 – Pedestrian Quality Needs. Este projeto, financiado pela União Europeia, de acordo com Mário Al- ves (Anexo E07), membro da organização, pretende identificar as neces- sidades concretas dos peões em meio urbano, de forma a ser garantida uma mobilidade segura e agradável, evidenciando o valor acrescentado de uma abordagem sistémica por oposição a uma abordagem sectorial. Aqui, o principal objetivo é a produção de conhecimento sobre as neces- sidades qualitativas dos peões e sobre a forma como essas necessidades se relacionam com intervenções estruturais e funcionais, com a criação e regulação de políticas públicas de apoio aos movimentos pedonais nos países europeus envolvidos no projeto.

“Ao longo da maior parte do século XX, a emoção não foi digna de crédito nos laboratórios. Era demasiado subjectiva, dizia-se. Era demasiado fugidia e vaga. (...) A emoção não era racional, e estudá-la também não era. (...) Nos últimos anos, tanto a neu- rociência como as ciências cognitivas abraçaram finalmente a emoção. Uma nova geração de cientistas transformou a emoção no seu tema preferido.” (Damásio, 2013, pp.59-61)