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Na LSF, o trabalho de Tucker (2014a), voltado para a língua inglesa, foi encontrado no tratamento do verbo give (dar). Esse trabalho não é exaustivo. O que ele faz é demonstrar como expressões metafóricas com verbos leves podem ser analisadas partindo-se de um quadro analítico inicialmente aplicado a expressões em que o verbo encontra-se em seu sentido prototípico. O autor propõe o seguinte:

A questão principal que precisa ser respondida com relação à demonstração do conjunto de processos envolvidos com ‘dar’ é: até que ponto os Papéis de Participante associados ao ‘dar’ prototípico são válidos para usos ‘estendidos’ do verbo, incluindo usos metafóricos?

Em outras palavras, à medida que o entendimento semântico alvo das expressões com ‘dar’ se distancia do modelo prototípico, como isso é refletido na mudança do tipo de processo e dos Papéis de Participante associados aos tipos de processo particulares?82

Para isso, são identificados os papéis de participante presentes nas orações com o verbo

dar prototípico (aquele que indica transferência de objetos) e os testes de agnação aplicados a

cada um deles. Quanto aos papéis de participante, são três os identificados: Agente, Portador- Afetado e Possuído-Afetado. O Processo, por seu turno, é do tipo Relacional83 (ver oração listada em (20)). Os testes de agnação são três: dois correspondem à voz passiva da oração, sendo que um dispõe, na posição de Sujeito, o participante Portador-Afetado (oração (21)), e o outro dispõe, na mesma posição de Sujeito, o participante Possuído-Afetado (oração (22)); o

82 “The principal question that needs to be answered in respect of modelling the range of processes involving ‘give’ is: to what extent are the PRs [Participant Roles] associated with prototypical ‘give’ valid for ‘extended’ uses of the verb, including metaphorical uses?

In other words, as the target semantics of expressions with “give” departs from the prototypical, how is this reflected in any change to the process type and any PRs associated with the particular process type recognised?” 83 Notar, aqui, uma diferença na forma de classificação se comparada com a perspectiva sistêmico-funcional proposta por Halliday e aqui adotada. De acordo com o que foi apresentado no Capítulo 2, orações com o dar prototípico são do tipo [material], conforme será apresentado no capítulo de análise.

terceiro teste refere-se ao potencial dativo, como observado na oração (23), em que o participante Portador-Afetado é expresso por sintagma preposicional com a preposição para.

(20) [Agente] the ex-soldier [Pr.: Relacional] gave [Portador-Afetado] him [Possuído- Afetado] his ticket84 (TUCKER, 2014a, p. 38)

(21) [Sujeito/Portador-Afetado] he [Pr.: Relacional] was given [Possuído-Afetado] his ticket [Agente] by the ex-soldier85 (TUCKER, 2014a, p. 38)

(22) [Possuído-Afetado] his ticket [Pr.: Relacional] was given [Portador-Afetado] to him [Agente] by the ex-soldier86 (TUCKER, 2014a, p. 39)

(23) [Agente] the ex-soldier [Pr.: Relacional] gave [Possuído-Afetado] his ticket [Portador- Afetado] to him87 (TUCKER, 2014a, p. 39)

Os testes usados para identificar os papéis de participante foram os seguintes: O que X

fez foi... (teste para Agente), X (o Possuído) era o que Y (o Portador) não tinha... (teste para

Portador e Possuído) e O que aconteceu com X foi que... (teste para Afetado). A partir desses testes e das três agnações (dupla passivização e potencial dativo), todos aplicados às orações com o verbo dar prototípico, Tucker (2014a) parte para outras ocorrências desse verbo. As ocorrências analisadas são de cinco tipos: (i) Possuidor [+inalienável], em que todos os participantes e teste se aplicam; (ii) oferta de entidade, em que é identificada a transferência de algo abstrato e em que se aplicam quase todos os testes, menos o teste para o participante Possuído; (iii) oferta semiótica em atos de comunicação, que envolve uma mudança de processo (portanto uma mudança dos participantes), embora alguns testes ainda sejam aplicados; (iv)

verbos de ato de fala, que envolve uma mudança de processo e poucos testes se aplicam; e (v) verbos leves, para os quais nenhum dos testes se aplica.

De modo geral, nota-se a adoção de um padrão de oração base (prototípico), a partir do qual são definidos testes de reexpressão, para a posterior análise de outras orações. Com isso, busca identificar qual oração é mais próxima e qual é mais distante daquela base. Isso sugere um importante procedimento teórico-metodológico: na classificação de orações com o uso de processos realizados pelo verbo dar, a relação que se dá com a forma prototípica é uma de

84 “O ex-soldado lhe deu o bilhete.”

85 “Ele foi dado o bilhete pelo ex-soldado” (Estrutura não possível na tradução para o português). 86 “Seu bilhete lhe foi dado pelo ex-soldado.”

gradação. Algumas expressões compartilham todas as características lexicogramaticais, outras não.

Essa proposta de Tucker (2014a) é interessante porque, para certos casos, evita afirmar, de maneira categórica, se o verbo dar, em uma oração específica, é pleno, suporte, parte de uma expressão fixa etc. (como faz Rassi (2015)). Ao contrário, sendo estabelecido o protótipo, analisa-se quais papéis de participante estão presentes nas orações analisadas, compara-se com a “grade” de participantes e testes do protótipo, e especifica-se a região de proximidade do padrão de transitividade na construção da experiência. Essa proposta revela que o trabalho de descrição linguística envolve um processo de categorização, no entanto, as categorias não devem ser vistas como regiões com divisões rígidas entre si.

Os testes indicados por Tucker (2014a) auxiliam na identificação de alguns sentidos do verbo dar. Testes também são aplicados por Halliday e Matthiessen (2004) na identificação de orações materiais, mentais etc. Isso se dá porque, na LSF, é adotada a ideia de que a configuração transitiva evidencia formas de significar. No entanto, Tucker (2014a), apesar de possuir suas bases na LSF, utiliza uma terminologia diferenciada, fruto de um entendimento particular do sistema de TRANSITIVIDADE, o que o conduz a classificações diferentes de uma que considerasse a proposta apresentada em Halliday e Matthiessen (1999, 2004). Além disso, Tucker (2014a), segundo indicado por ele próprio, desconsidera várias outras ocorrências com o verbo dar. Ainda, não aborda a localização dos padrões lexicogramaticais por ele identificados em redes de sistema.