6.3 Verbo dar Relacional
6.3.3 Verbo dar intensivo atributivo qualitativo: oração como Portador
Agora veja-se a oração seguinte com a forma verbal dar:
(147) *CEL: <ô Toninho / cê tem que matar o cinco / sô> // *REN: agora cê mata o onze aí //
*REN: nũ dá não // (bfamcv03)
Assim como as orações da subseção anterior, (147) pode ser reescrita utilizando-se uma expressão relacional com o verbo ser. Tem-se, no entanto, uma reescrita na qual o Atributo é o adjetivo possível: nũ é possível não. Isso conduz à interpretação do processo realizado pelo verbo dar em (147), também, como Relacional atributivo qualitativo. Todavia, há uma particularidade nessa oração: o participante na função de Portador não é um grupo nominal, como duas cervejas, aquele pó de pedra etc., mas uma oração, como demonstra a análise na Figura 61:
Figura 61 – Oração na função de Portador
agora cê mata o onze aí
[matar o onze] nũ dá
Portador Pr.: Relacional intensivo atributivo qualitativo
Fonte: O autor (2019). Orações extraídas do C-ORAL-BRASIL.
Isolada de seu contexto de uso, uma oração como nũ dá não possibilita a pergunta teste
O que não dá?, indicando que o processo de atribuição realizado pelo verbo dar (ser possível)
aponta para um participante na função de Portador. Em inglês, é possível, com outros verbos que não o dar, construções parecidas com (147), mas com um elemento – como it, that e this – usado como referente na função de Portador: “Nem todos os estados têm execuções. – Sim, isso
é verdade, mas alguns estados têm” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004, p. 223). Em
português brasileiro, como se vê no exemplo (147), esse elemento, de natureza anafórica, utilizado em referência à oração já enunciada no texto, é facultativo: poder-se-ia ter, além de
nũ dá não, também a oração isso nũ dá não.
A partir das orações analisadas no corpus C-ORAL-BRASIL, percebe-se que a oração na função de Portador pode ser representada como constituinte de sintagma preposicional (encabeçado pela preposição para) posposto ao verbo dar (exemplos (148) a (150)) ou pode ter um de seus participantes internos ou elementos circunstanciais em posição temática (exemplos (151) e (152), respectivamente).
(148) *REN: dá pa fechar o jogo // *CAR: <dá não> //
*ONO: <fechar o jogo> de que jeito //
*CAR: fechar [o jogo] nũ dá não // (bfamcv03)
(149) porque a contração já vinha assim / de três em três passos já nũ dava pa andar // aí deitei no carro lá atrás // (bfammn28)
(150) o que importa é a informação // então nũ dá pa ficar editando / colocando / né / inventando muito // (bpubmn12)
(151) aí agora ela nũ dá> pa poder convidar / né // (bfamcv02) (152) <massa> mole nũ dá pra pôr recheio // (bfamdl33)
Na oração (148), é evidenciada a possibilidade de se dispor o participante na função de Portador tanto depois (informação nova – dá pra fechar o jogo) como antes (informação velha – fechar o jogo não dá) no desenvolvimento do texto. A oração (151) demonstra o participante
ela, da oração para poder convidar ela, em posição temática em relação à oração com o verbo dar: nũ dá pa poder convidar ela => ela nũ dá pa poder convidar. Por seu turno, a oração (152)
evidencia o elemento circunstancial massa mole, da oração pôr recheio na massa mole, em posição temática. Na interpretação aqui adotada a partir da análise transitiva, o verbo dar realiza, em todos os casos, um Processo Relacional intensivo atributivo qualitativo, enquanto
pa fechar o jogo, fechar [o jogo], ela [...] pa poder convidar, massa mole [...] pra pôr recheio
etc. são orações que, estando no nível do grupo, exercem a função de Portador:
Figura 62 – Análise de orações com o Portador como informação nova ou velha
fechar [o jogo] nũ dá não
Portador Pr.: Relacional intensivo atributivo qualitativo
dá pa fechar o jogo
nũ dava pa andar
nũ dá pa ficar editando / colocando / né / inventando
muito Pr.: Relacional intensivo atributivo
qualitativo
Portador
ela nũ dá pa poder convidar
o barco nũ dá pra ver
massa mole nũ dá pra pôr recheio
Por... Pr.: Relacional intensivo atributivo qualitativo ...tador
Fonte: O autor (2019). Orações extraídas do C-ORAL-BRASIL.
Nesta tese, nossa análise repousa sobre o sistema de TRANSITIVIDADE, sistema lexicogramatical que aponta para a forma como a experiência é representada. Dentro desse nicho lexicogramatical, é no sentido relacional, como descrito nesta subseção, que o verbo dar é usado. Mas veja-se que as orações de (147) a (152), embora representem a possibilidade (ser
possível) como um atributo, referem-se a uma avaliação sobre o potencial de ocorrência das
proposições matar o onze (147), fechar o jogo (148), andar (149), ficar editando, colocando,
inventando muito (150), poder convidar ela (151) e pôr recheio na massa mole (152)133. Dessa forma, a partir da metafunção interpessoal, as construções analisadas nesta subseção evidenciam o verbo dar usado na expressão da modalidade.
133 Nessas orações, a avaliação ainda pode ser mais ou menos intensificada: nũ dá muito, nũ dá de jeito nenhum etc.
Para algumas expressões com Processo Relacional intensivo atributivo qualitativo seguido de oração, é possível tanto o sentido ser suficiente (ver subseção anterior) como ser
possível. A oração deu pra servir todo mundo, Jader? (bpubdl07), isolada de seu contexto,
direciona ao entendimento foi possível servir todo mundo, Jader?. Entretanto, analisando o contexto no qual foi usada (alguém querendo saber se uma pizza com um dado número de fatias foi suficiente para um determinado número de pessoas), verifica-se o participante a pizza implícito. Nesse caso específico, o Portador é a pizza, enquanto pra servir todo mundo é uma Circunstância de propósito. Essa análise é exposta na Figura 63.
Figura 63 – Ambiguidade em orações relacionais intensivas atributivas qualitativas
[a pizza] deu pra servir todo mundo?
foi suficiente...? Portador Pr.: Relacional intensivo atributivo
qualitativo
Circunstância de propósito
deu pra servir todo mundo?
foi possível...? Pr.: Relacional intensivo atributivo
qualitativo
Portador
Fonte: O autor (2019). Orações extraídas do C-ORAL-BRASIL.
No caso da interpretação em que o Portador é realizado por a pizza, esse elemento é que faz parte do centro da estrutura experiencial da oração, enquanto pra servir todo mundo é representado de modo periférico. Apesar de essa ser a forma de representação escolhida no exemplo em questão, no C-ORAL-BRASIL o mais comum é que as orações relacionais intensivas atributivas qualitativas com a construção dar para... representem a qualidade do que é possível (ser possível), conforme exposto ao longo desta subseção.